A confissão de um viúvo de cor branca (publicado originalmente em 7/2/2004)

Quando decidiu traduzir o livro “Lolita” para o inglês, o autor, o russo Vladimir Nabocov (1899–1977), não se conformava: “Tive de abandonar meu idioma natural, minha rica, fluida e infinitamente dócil língua russa em troca de um inglês de segunda categoria, desprovido de acessórios” lamentou, nas páginas finais do romance. Não era para menos. “Lolita” apenas recebeu o devido reconhecimento quando deixou de ser somente escrito em russo.

Perguntas sobre como e quando foram geradas as peripécias delicadas e juvenis da estonteante Dolores Haze (nome de batismo de Lolita), são complicadas, pois a explicação levaria linhas e mais linhas. Para não me estender tanto sobre o papel e ir logo ao set de filmagem, os primeiros relances sobre o relacionamento de um jovem senhor de 40 anos com uma menina de 12 surgiram quando Nabokov estava acamado. O escritor sofreu preconceito de todas as partes quando fez as primeiras apresentações a editoras. Teve, já depois de morto, como é praxe, aliás, reconhecimento esperado: a obra foi eleita, em 1998, o quarto melhor romance inglês do século 20.

De fato, esse tipo de conto é incomum na literatura. Principalmente se vier acoplado uma qualidade esmerada. Nas décadas de 40 e 50 Vladimir concluiu os escritos. No cinema, estreou em 1962, dirigido por Stanley Kubrick. A fita pouco se baseia nas informações contidas no livro. Kubrick rodou a história como se ela tivesse ocorrido nos anos 60, e não entre 1947 e 1952. Assim, deu ares novos a seqüência. Foi bem, porém, parecem faltar pitadas essenciais. Só quem leu pode verificar. “Lolita”, no cinema de 42 anos atrás, recebeu poucos aplausos. O público receoso e preconceituoso não aceitava.

Há quase sete anos foi filmado novamente. Desta vez, quem pegou o roteiro foi o diretor Adrian Lyne. Encabeçaram o elenco Jeremy Irons, Melanie Griffith e Dominique Swain. Com respeito máximo ao livro, o filme retira com acuidade frases de personagens e as transporta direto para a boca dos atores. Gestos também. É uma das raríssimas exceções do mundo cinematográfico onde o “remake” tem transcendência sobre o primeiro, chamado injustamente de “original”.

Na época com 15 anos, mas interpretando uma garota de 12, Swain teve dublê nas cenas ousadas. Foram poucas, mas na dose correta. Não há momentos de sexo. Não é necessário. A cara de travessa sensual de Dominique diz tudo. O sorriso dela, em uma cena onde acorda seu padrasto-amante, é um delírio de tão belo. Com locações nos Estados Unidos e França, a película acerta em cheio para aqueles que se deliciaram ou não com as páginas ardentes de Nabocov. A base da narrativa é simples: um intelectual europeu vai aos Estados Unidos para lecionar, mas se vê completamente apaixonado por uma ninfeta, filha de uma senhora que aluga um quarto a ele.

À medida que os fatos transcorrem, por sorte ou azar do protagonista, a mãe é colocada fora do jogo, e o casal, disfarçado de pai e filha, inicia uma viagem sem fim pelos hotéis americanos. No livro, o próprio narrador, o professor Humbert Humbert, contaminado pelo priapismo, relata com minuciosos detalhes toda a viagem: as estradas, as árvores, enfim, a paisagem em geral. Nas cenas entre a dupla incestuosa, impera a malícia dos toques de Dominique. A adolescente tem ares de mulher fatal.

Mas Dolores quer mais. Não se contenta com os luxuosos quartos onde tem, ao lado do amado, todos os sonhos de uma criança precoce nas artes libidinosas. Aos poucos, ela arquiteta um plano categórico para escapar das garras do falso marido. Há passagens onde Lô (assim chamada por H.H.) se confunde com uma zabaneira. Em outras, adota o comportamento de uma doce e inocente criatura, para, assim, obter tudo o que quer do professor. Existem também cenas carregadas de chistes, como a conversa sobre a sexualidade de Lolita entre Humbert (que engasga, de tão nervoso) e a reitora da escola da garota.

Nos anos 40, a obra de Nabocov foi organizada, depois de muito sacrifício, por uma editora francesa especializada em livros pornográficos. A partir daí, rodou o mundo. O título desta coluna refere-se, quando se usam jargões jornalísticos, a linha-fina do livro, ou seja, uma explicação brevíssima sobre o conteúdo das páginas. “Lolita” não é um buzugo, como magistrais leitores de sessenta anos atrás pensavam. Está muito longe disso. Os sentimentos expostos por um réu que vê a morte cada vez mais perto contêm simultaneamente agruras e nobreza. Confundem-se com o amor a proteção do pai e as volúpias da filha. Uma realização exultante. Vale a pena apreciar.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 03/05/2009
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