Senhoras e senhores, o caipira Mazzaropi (publicado originalmente em 10/3/2004)

As calças quase sempre deixavam as pernas descobertas. As botas estavam gastas, feias, e, às vezes, até furadas. As camisas, a maioria listradas, se caracterizavam pela sujeira ou pelo tamanho menor, pois ficavam apertadas. O bigode não podia faltar. A maneira mansa de falar e o modo acaipirado cativavam de imediato. E não eram imitações. Ele pronunciava as palavras daquele jeito mesmo. A forma simples de olhar as pessoas com as quais conversava tornou-se clássica. Assim, Amácio Mazzaropi fez 32 filmes em 29 anos de carreira. Oriundo do circo, o paulistano nascido em 1912 na cidade de Taubaté começou a trabalhar em um programa radiofônico na Rádio Tupi de São Paulo nos últimos anos da década de 1940.

A imagem dele tornou-se conhecida com o advento da televisão, e impulsionado pelo autor, ator, roteirista e diretor Abílio Pereira de Almeida, realizou seu primeiro filme, “Sai da Frente”, em 1952. Seguiram-se aí “Nadando em Dinheiro”, no mesmo ano, e “Candinho”, em 1954. Logo de início, o sucesso na bilheteria fixou-se como marca registrada. As filas nas portas dos cinemas chegavam a dobrar avenidas. Todos queriam ver o caipira mais admirado do Brasil. Aos poucos, o comediante lapidou seu personagem. Até os anos 1960, o ator pertenceu à Cinedistri, onde montou “O Noivo da Girafa” (1957) e “Chico Fumaça” (1958). A partir daí, fundou a própria produtora, a PAM (Produções Amácio Mazzaropi).

Em Taubaté, comprou um enorme galpão onde, depois de algum tempo, todos os filmes eram feitos ali. Aproveitou uma fazenda também para as filmagens. Sempre com os mesmos cenários e diálogos, mas com artimanhas diferentes, se transformou em um consagrado produtor e se aventurou na direção e argumentação. Utilizou elencos repetidos e o brilho da conquista não cessou. “Faço cinema para o povo, não para os críticos”, costumava repetir, quando era pisado pelos jornalistas especialistas. Conseguiu um bom faturamento ao longo do tempo. Satirizava novelas, como fez em “Betão Ronca-Ferro” (1969, em “homenagem” a “Beto Rockfeller”). Países, idem: “Meu Japão Brasileiro” foi um deles. Nada era demais.

O mundo era mágico e com um saco repleto de onirismos. A vida no campo, o trabalho no mato e os animais que davam o sustento para uma família eram ingredientes indispensáveis. Às vezes, isso mudava. Em “O Corintiano” (1966), Mazzaropi interpretou um barbeiro fanático pelo time alvinegro, que naquela época, como atualmente, maltratava os torcedores com jogos péssimos que contribuíam para a escassez de títulos. Curiosamente, o Corinthians contratou no mesmo ano o ponta-direita Garrincha, totalmente machucado e irrecuperável. Mais frustrações. Claro que não recebia prêmios pelas obras criadas, mas apenas o orgulho do público satisfazia o ator. Tudo poderia ruir, menos o aplauso constante dos fiéis espectadores.

A platéia gargalhava com suas estripulias na cidade grande. Era o Chico Bento na fase adulta. Vestiu o uniforme do Jeca Tatu e saiu por aí. Quando cantava “nheco, nheco, nheco, a véia puxa-saco...” e andava dando passos desengonçados, as pessoas não queriam ensiná-lo a caminhar, mas o deixavam solto para que ele pudesse realizar suas metas e cumprir as tarefas. Não era conhecedor de um vocabulário rico, mas sabia lograr a vida com mais qualidade e perfeição, a simples, cuja exigência não passava de um sorriso humilde e bondade serena. Como diretor, destacou-se em “As Aventuras de Pedro Malasarte” (1960), “Puritano da Rua Augusta” (1965), “Portugal, Minha Saudade” (1973) e “A Banda das Velhas Virgens” (1979).

Com a idade avançada, as filmagens não eram mais seqüenciais, em ritmo alucinante. O esmero a partir daí tinha mais importância. Em um de seus filmes, “Zé do Periquito” (1960), contou com a participação de Agnaldo Rayol e Hebe Camargo. A dupla contracenou e cantou em meio a um pasto enlameado e repleto de porcos e galinhas. Poucos meses antes de morrer, em 13 de junho de 1981 em decorrência de um câncer, Amácio, avesso a entrevistas, esteve no programa da ex-companheira de trabalho Hebe Camargo, na TV Bandeirantes. Lá, contou várias piadas e fez graça com as senhoras sentadas à sua frente, como antes nos cinemas e circos, mas naquele momento estava ao vivo, em carne e osso. A ingenuidade em pessoa. A derradeira película foi “Jeca e a Égua Milagrosa” (1980).

Depois do falecimento, a lona circense caiu e o cinema genuinamente nacional nunca mais esteve perto das peripécias do caipira. Os olhos esbugalhados de Mazzaropi se fecharam, e com eles toda a harmonia da câmera com o campo. As desigualdades voltaram a fazer parte da nossa vida. Talvez elas sempre estiveram presentes, mas foram acobertadas pelos filmes simples do taubateano por um período. Nesse interregno, o trono do Jeca continua vago. Quem sabe, para sempre.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 06/05/2009
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