A vida breve, louca e exagerada de Cazuza (publicado originalmente em 16/6/2004)

Cazuza, pasmem, voltou à vida em pleno século 21. Escolheu o ator Daniel de Oliveira para dar nova roupagem à sua imagem. Se existem reencarnações é discutível. Agenor de Miranda Araújo Neto vive entre nós hoje. “Cazuza – O Tempo Não Pára”, da diretora Sandra Werneck, está nas salas dos cinemas desde sexta-feira e escandaliza pela forma, conteúdo e uma interpretação quase perfeita de Oliveira (a perfeição seria se ele próprio fosse “o” cantor). Os exageros do astro pop mais conhecido dos brasileiros nos anos 80, ao lado de Renato Russo, encantam gerações até esses dias. A morte dele aos 32 anos em decorrência da Aids foi o começo de uma paixão correspondida entre jovens que nem eram para gostar dele, mas o idolatram. Os nascidos entre 1960 e 1976, estes sim, o acompanharam desde seus versos iniciais no Barão Vermelho ao seu agonizante retiro propagado na capa da revista Veja em 1989, quando já definhava feito areia fina nas mãos. A estrela que se apaga.

Mas sua biografia tem absolutamente nada de tristeza. Longe disso. E o longa exibe demais o lado maluco. Tudo era felicidade. Rodeado por amigos de farras, bebia, se drogava, mantinha relacionamentos homossexuais, compunha canções regozijantes, que serviam de auto-retrato tanto a ele quanto aos adolescentes refratários da chamada “década perdida”, o lixo. Na fita, Marieta Severo encarna Lucinha Araújo, mãe do compositor. Suas perseguições aos trajetos do filho, para protegê-lo dos agouros das estradas da vida, não adiantaram para Cazuza. Tudo que ele aprontou – no filme isso fica bem claro – o fez porque sabia que seus pais iriam busca-lo seja onde fosse, mesmo que o lugar fosse o inferno. João, seu pai, divulgador da gravadora Som Livre, lhe dá tardes irresponsáveis, com fartura de álcool e maconha. Reginaldo Faria, intérprete do lado paterno dos Araújo, sabe pouco ou finge não saber de nada sobre as travessuras do poeta-filho. As aventuras debandavam aos shows.

Shows estes nos tempos de Barão Vermelho lotados, a partir do segundo disco. O anterior teve crítica amarrotada e fez raro ou nenhum fã. O seguinte encheu as casas cariocas de gente, pulando e dançando ao som de “Pro Dia Nascer Feliz”, “Bete Balanço”, “Todo Amor que Houver Nessa Vida” etc. Emplacou de forma empolgante. Cenas de sexo e drogas acontecem antes do anúncio da doença mortal, que ele escuta dos médicos em 1985. É curioso notar as incertezas da medicina de 20 anos atrás, quando a Imunodeficiência Adquiria tapava olhos e ouvidos dos profissionais vestidos de branco. O AZT surge como esperança de horas melhores, porém, Agenor (o nome passa limpo pelos 90 minutos de filme, sem uma citação – somente de Cazuza e Caju o ídolo caído é chamado) sabe o destino desonesto que tem. Desse instante em diante da película, Daniel de Oliveira parece arrancar do túmulo de Cazuza a alma gaiata. Fica impressionantemente semelhante ao autor de “Boas Novas”.

O figurino caprichou nesse sentido. Seria como se os trajes do ex-vocalista do Barão tivessem sido emprestados a Daniel. A aparência do ator ajuda, e como. Nos primórdios dos sets de filmagem, teve de engordar para viver Cazuza. Depois, na fase terminal do cantor, emagreceu 14 quilos em três semanas. Recorreu, para isso, a inibidores de apetite e dieta super-rigorosa. Quando veste bandanas, óculos transparentes ou escuros, com o rosto afinado pela magreza e bronzeado (artificialmente), vira menecma do bardo. Cazuza, de uma forma ou de outra, desceu dos céus novamente para nos avisar da urgência de usufruir os segundos a que temos direito. O Rio de Janeiro nunca mais seria o mesmo com a vinda apaixonada do poeta-ícone dos anos 80. Os concertos, entre os quais o do Rock in Rio, de janeiro de 1985, são repaginados, entupidos e embalados pelos acompanhamentos de milhares de pessoas espremidas que deliravam a cada gesto simples dos versos de sucessos opulentos e robustos.

O caso amoroso entre o protagonista e Ney Matogrosso desaparece na obra de Werneck. Para a diretora, “a duração é curta e não daria para mostrar tudo”. Vá lá. Mas se o roteiro apeteceu exibir os últimos anos de Cazuza, seus encontros com Ney não poderiam ser arremessados para fora da janela. Apesar desse deslize, o transcorrer indica o comportamento arredio de Caju. Suas frases filosóficas sobre praias fluminenses, bebedeiras e felicidade recheiam o filme. Fica a impressão de que querem endeusá-lo de qualquer jeito. A necessidade disso é nula. Os erros cometidos por ele (se aproveitar cada hora é erro realmente) são aperfeiçoados (para pior) na juventude da década atual e da passada. Afirmar sua má companhia, as amizades inebriantes e presas a ele como guilhetas dos escravos, é desprestigiar o incrível bon-vivant que amou todos que passaram por seus olhos e beijou-o com mero carinho. O ser “incorrigível” que Cazuza era para seus pais foi o mesmo que hipnotizava platéias vãs.

A morte dele seria fracassada se ocorresse diferentemente, e não devagar, trágica e anunciada como aconteceu. Vi recentemente entrevista com o jornalista e escritor Flávio Tavares e ele discorreu sobre o assunto: “Imagine Jesus Cristo tomando antibióticos, numa cama. Ou então Getúlio Vargas ou Juscelino Kubitscheck acamados... Não dá, né!”. Heróis como Cazuza e tantos por aí devem vagar despretensiosamente pelos locais que desejar. A síntese real da película é arvorada em pantomima (sem enganar ninguém) quando, já se encostando no fim da existência, no colo de um amigo, é levado às águas salgadas que tanto sentiu.

A praça pública onde o cantor poderá pular e se esfregar remexendo-se ao ritmo das melodias, ao tom do microfone alto, estará de portas fenestradas para ele quebrantar possuído de sapiência reles e pândega. Estavam presentes no cidadão Agenor Neto a audácia de quem abordou o navio preparado e zarpou, contagiando todos os passageiros. Conheceu, descobriu e lapidou tesouros com romantismo de que, sob o luar, se embebeda e tece versos. Podemos fazer regressar o tempo? Se pegarmos uma manivela e a girarmos ao contrário, tal como sucedeu ao autor teatral Richard Collier (Christopher Reeve) em “Em Algum Lugar do Passado” (1980), seremos despachados à jato a qual período da História que quisermos? Talvez. Quem sabe. Às vezes a revelia tem traços de força e argumentação. Cazuza rompeu preconceitos, recebeu xingos de nomes injuriosos e não ligou. Esculpiu suas mágoas e as menoscabou. Ele não era uma pessoa feliz. Mas se foi com um sorriso quieto.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 21/05/2009
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