Crise de identidade (publicado originalmente em 3/7/2004)

“Homem-Aranha II” (2004) recebeu vastos elogios. O merecimento neste caso é discutível, mas em determinados tópicos vale pela performance do vilão da vez, o doutor Octopus, um ser com vários tentáculos que deixam amedrontados os habitantes do município de Peter Parker, Manhattam. A fita um, lançada em meados de maio de 2002 e com sucesso estrondoso hoje (vide as locadoras de vídeos), consagrou o ator Tobey Maguire e a bela Kirsten Dunst, intérprete de Mary Jane, o amor escondido do herói com teias. Porém, há um grave entrave nesta continuação do enredo. Ninguém, creio eu, percebeu que se trata de plágio. Isso mesmo, uma imitação barata e desonesta de outro filme muito famoso nos anos 1970 e 1980: “Super-Homem II” (1980). No roteiro de “Homem-Aranha II”, Peter Parker se vê entre seguir a carreira de defensor dos fracos ou simplesmente largar tudo em nome da paixão por Mary.

A escaldante ruiva de olhos azuis está prestes a se casar com outro rapaz e o dilema enerva Peter. O protagonista realmente abandona a vestimenta vermelha (na cena do filme, joga a roupa no lixo) e avança para conquistar de vez sua amada. Basta o mau-feitor dos muitos braços aparecer para ele se arrepender e reatar as brigas do bem contra o mau. Quem assistiu a “Super-Homem II” sabe exatamente que o que descrevi aqui é transparente na película rodada há 24 anos. Clark Kent (feito magistralmente por Christopher Reeve), implora aos verdadeiros pais, de Krypton, para perder todos seus poderes e se transformar em uma pessoa comum, filha de Deus, como no verso daquela música, e ficar para sempre junto de Lois Lane, jornalista como ele do Planeta Diário e sua musa inspiradora. O desejo é atendido e o repórter se depara com os problemas da vida real: tem dores nas costas, olha seu sangue inédito quando apanha de um senhor briguento numa lanchonete etc. Estradas más daí.

Tudo muda quando (oh... diretores de “Homem-Aranha” sem criatividade) três vilões vindos da terra natal do Homem de Aço ameaçam destruir os Estados Unidos, iniciando por Metrópoles, cidade onde se passa a história. Clark Kent, então, quer voar de novo para proteger a população. Retorna à velha forma e trucida os bandidos sanguinários, liderados pelo arquiinimigo Lex Lutor.

É necessário entender em quais anos o filme de Super-Homem foi trabalhado assim como em quais datas os gibis do Spiderman assuntam sobre essa “depressão melancólica”. Richard Donner, diretor das películas do herói da capa vermelha, rodou-as simultaneamente. As gravações duraram exatos 19 meses, entre 1976 e 1978 (a estréia de “Super-Homem I” ocorreu em dezembro de 1978, no 40º aniversário do homem-pássaro). Já o mascarado tem sua primeira crise de identidade também em 1978, quando no gibi Peter Parker pede a mão de Mary em casamento e ela recusa. Meses antes, em 1977, os desenhistas criam seqüências onde o nova-iorquino enlouquece.

No filme do aracnídeo, os efeitos especiais garantem o ingresso. Os movimentos dos tentáculos mecânicos impressionam. O aparelho com o qual Alfred Molina (ator na pele de Octopus) ensaia as maldades pesava 45 quilos. Em cada um dos quatro braços gigantes, quatro pessoas estavam lá para controlá-lo. Enfim, muitos truques para um enredo que pode até influir crianças e adolescentes, mas não aqueles fãs do Super-Homem que viram dezenas de vezes as passadas cheias de enobrecimento e cuja trilha sonora é recordada sempre.

No elenco de “Homem-Aranha II”, J.K. Simmons nobilita ao dar vida ao editor do jornal Clarim Diário. Ele é a cópia perfeita dos desenhos dos quadrinhos. Com sua fala rápida e o bigodinho característico, dá toada do bom humor. “Você está demitido”, esperneia o jornalista superior a Parker, o ingênuo. De ingenuidade, Maguire não tem nada. Alcançou a marca de 17 milhões de dólares contra somente quatro milhões do anterior. Santas e financeiras estas teias. Quer dizer, santas, financeiras e agora nada criativas teias. Está programada para 2007 a feitura do terceiro episódio de “Homem-Aranha”.

Vem mais – São milhares os fãs que compraram antecipadamente bilhetes para a estréia do segundo. No Brasil, onde a película um foi vista por 8,5 milhões de pessoas, 42 mil “afoitos” foram aos cinemas semanas antes para garantir cadeiras na “fila do gargarejo” na quinta-feira passada. Ainda sobre a fita original, de dois anos atrás, o lucro apenas nos primeiros três dias de exibição atingiu a maçante marca de 115 milhões de dólares, num total de 820 milhões. E como os estúdios descobriram esse filão das revistas em quadrinhos, outro par de heróis estreará neste ano. “Mulher-Gato”, com Halle Berry, decepciona no trailer. Esculacharam no uniforme da felina, que fica muito mais para ser usado em boates quentes a combater o crime. As curvas de Halle estão em cima, mas não era para tanto. “O Justiceiro” é outra incógnita. Mas parece ser pior que todos os outros reunidos.

Insustentável – “Homem-Aranha II”, apesar dos confetes e serpentinas, dificilmente baterá o número de espectadores de “Titanic”, até hoje o recorde visto na história das casas cinematográficas brasileiras. A quantidade de pessoas que assistiram ao desastre do navio europeu de abril de 1912, pendurado na tragédia segurada por Leonardo Dicaprio e Kate Winslet, ultrapassou 18 milhões. O país não via uma fila daquele tamanho desde “A Dama do Lotação” (1978). Baseado nas crônicas cotidianas de Nelson Rodrigues, o filme com Sônia Braga laçou 14 milhões de testemunhas. A fita tinha cenas de alta voltagem entre a atriz e seus comparsas na arte da loucura, sem dúvida aperitivo doentio quando se fala em sets de filmagens tupiniquins no período da ditadura militar. Depois dos anos 1990, durante o governo Collor, o trabalho braçal voltou, mas se compararmos o total de gente em “Cidade de Deus” (2003, três milhões de pessoas) e “Carandiru” (2003, quatro milhões), com o já citado “A Dama do Lotação” será covardia brava. Com “Homem-Aranha I e II”, então, nem se fala.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 24/05/2009
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