O caso do “Exército da Borracha” (publicado originalmente em 28/8/2004)

Muito se discutiu, falou e comentou sobre os 50 anos do suicídio do ex-presidente do Brasil, o gaúcho Getúlio Vargas, completados na última terça-feira, 24 de agosto. A data ainda veio a calhar, pois simultaneamente a esta recordação aparece a fita “Olga” (2004), dirigida por Jaime Monjardim, que narra toda a trajetória da judia alemã Olga Benário, entregue à Alemanha nazista pelo governo de Vargas. Mas pouca gente sabe de um caso dito isolado ocorrido entre 1942 e 1945, período no qual a estada dos getulistas estava no fim. Não me refiro aqui à aliança firmada pelo líder brasileiro com os aliados contra países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), após longos anos de simpatia com a direita e o nazi-fascismo, para ajudar na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Quero retomar aqui o caso dos 55 mil brasileiros que foram para a Amazônia trabalhar na captura do látex e, assim, levantar os Estados Unidos na produção de borracha. Vargas fez acordo com os EUA e conseguiu verba enorme aos seus projetos de siderurgia e rearmamento bélico. Autêntica barganha ao contrário. Troca desleal.

A propaganda organizada para alistar os denominados “soldados da borracha” é considerada a de mais baixo nível possível, por se tratar de juntar numa só promessa mentiras, falsas esperanças e confusão. Demasiada confusão. Getúlio garantiu que quem conseguisse maior número de quilos de borracha seria agraciado com 35 mil cruzeiros (tremenda bolada à época). Claro, não cumpriu. Aliás, dos 55 mil “corajosos”, 31 mil morreram no trabalho, seja por malária, ataques de onças ou a total e ampliada desorientação no “infinito verde”. Nos três anos de duração, o “Exército da Borracha” fez 90 mil toneladas do produto, contribuiu para a administração norte-americana e, como recompensa, tiveram o esquecimento e foram ignorados pelo gaúcho de São Borja. A maioria deles, endividados com os patrões seringalistas, continuaram na selva amazônica cortando árvores. Para se ter vaga idéia do que representou esta perda imensa de vidas (quase 57%), a porcentagem dos pracinhas (brasileiros combatentes na Itália na II Guerra) é infinitamente menor (1,78% - 451 mortes em 25.344 soldados).

Houve gente que levou suas famílias rumo a aventura. Deram-se mal. A perspectiva de futuro melhor, onde dinheiro brotaria do solo, não veio. Do Ceará, por exemplo, migraram 30 mil pessoas. Atualmente, grande parte dos sobreviventes supera os 80 anos de idade e é radicado no Acre. Wolney Oliveira quis recuperar esta fascinante e ao mesmo tempo trágica história e montou o documentário “Batalha para a Vitória” (2004). Esta película de 55 minutos estreou no 14º Cine Ceará, em junho, e deverá ser exibida em breve pela TV Cultura. O conteúdo não muda tanto de outros trabalhos do tipo, pois há nela depoimentos de ex-seringueiros e imagens de arquivo. Em reportagem da revista Época (edição de 29 de março deste ano), a jornalista Paula Mageste abordou o tema de outro lado do cubo. Analisou o pedido de equivalência de pensão reivindicado por idosos que estavam no “Exército da Borracha” aos dos ex-pracinhas. Os soldados da FEB (Força Expedicionária Brasileira) recebem dez salários mínimos mensais mais 13º. Os do Amazonas, pensão vitalícia de dois salários desde 1988.

Segundo a matéria, se a medida de igualdade salarial for aprovada pelo Congresso, representará rombo de 23 milhões de reais por mês nas despesas do governo. O caso demorará para ser resolvido. Alguns ex-militantes do látex estão tão decepcionados que têm a seguinte opinião: “Já estarei morto quando sair o veredicto”. Jornais de meados da década de 1940 nada publicaram. Preocupados com a censura do Estado Novo (regime ditatorial de Vargas – durou de 1937 a 1945) e em paparicar setores getulistas, estampavam nas capas comemoração do aniversário do Estado Nacional (nome encobridor do Estado Novo), entre fatos amargos, como o oitavo ano de Eurico Gaspar Dutra no Ministério da Guerra. Era esculhambação generalizada. Enquanto se fazia essa propaganda, adolescentes animados com o patriotismo espalhado por cartazes da “Batalha da Borracha” se inscreviam para viajar até os cantos desconhecidos do Brasil. A viagem durava em média três meses e eles iam de caminhão, trem ou navio (neste caso, da pior classe). A exaltação resultou em frustração, descontentamento e medo.

A Istoé também fez reportagem. Esteve nas bancas na última semana de 1998 e continha quase iguais informações citadas em Época. Quem quisesse se alistar tinha de fazê-lo através do SEMTA (Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia). Os trabalhadores, jogados nas secas nordestinas, agora, pensavam eles, podiam ir a um lugar onde tinha água e a plantação seria a salvação. Quando chegavam, recebiam enxoval: calça de mescla azul, blusa branca de morim, chapéu de palha, um par de alpercatas, caneca de folha-de-flandres, um prato fundo e talher, uma rede e um maço de cigarros. O desastre prosseguia no quesito financeiro. Cada vez que o patrão gastava com o empregado, seja por comida, roupa etc, era tudo descontado dos seringueiros, ou seja, dívida crescia absurdamente. Em junho de 1945, combatentes da FEB retornaram ao Brasil e foram recepcionados com alegria, homenagens e glórias. Pode-se afirmar que no momento no qual os pracinhas beijaram o solo nacional, outros brasileiros como eles enfrentavam os próprios desgostos na guerra da borracha.

Nesta semana, onde relembramos a morte do “pai dos pobres”, nenhum veículo comunicador, seja jornal, revista, internet ou televisão, puxou o caso do “Exército da Borracha” na memória. Feitos principais de Getúlio, como seus discursos inflamados, a modernização do país e sua intimidade no Palácio do Catete (sede do governo federal no Rio de Janeiro) caíram na pauta da imprensa em geral. Vargas, o senhor dos humildes, o paladino dos oprimidos, defensor dos fracos... Nada disso. É, sem dúvida, a figura política brasileira do século 20. Fez bastante pelo Brasil, mas escondeu mazelas de proporções gigantescas. Como todo governo direitista dos anos 1930, perseguiu comunistas, torturou gente, assassinou inocentes. No segundo mandato, entre 1951 e 1954, tolerou as pressões de Carlos Lacerda enquanto deu. Depois do atentado na rua Tonelero, onde Lacerda foi ferido com um tiro no pé, a situação de Vargas apertou. O presidente suportou o quando pôde. A 24 de agosto de 1954 se matou. Várias manchas, entre elas o “Exército da Borracha”, entraram, como ele, para a história.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 30/05/2009
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