Os bons dias de Mário Lago (publicado originalmente em 17/11/2004)

Mário Lago, quando ultrapassou a risca dos 80 anos de praxe, começou a pronunciar a seguinte frase: “Vejo que a vida está viciada em mim. Só espero que ela não tome uma overdose”. Mário Lago teve várias facetas: escritor, compositor, ator, autor, cantor, poeta, e, acima de tudo, “boêmio de água mineral”, como o próprio se definia. Talvez Lago seja o George Burns brasileiro. Para que não sabe de quem se trata da figura, Burns foi um dos atores mais engraçados que Hollywood já viu. Porém, este centenário são (morreu em 96, poucos meses depois de apagar 100 velinhas) não fez comédias. Sua fama de bem-humorado deve-se ao fato de George Burns ser expert em boas tiradas, criador de comentários para lá de indiscretos e espirituosos. Além disso, tinha os famosos charutos como marca registrada. Mário Lago desapareceu no penúltimo dia de maio de 2002. Compará-lo com americano é proposital: ambos foram típicos bon-vivants. Aproveitaram a sua passagem por aqui para estraçalhar (no bom sentido) quem passasse do lado. Mário nasceu em 1911 e viveu tudo que se possa imaginar.

Observou com contemplação a derrubada de três presidentes: Washington Luís (1930, devido a golpe que galgou Getúlio Vargas ao poder), João Goulart (1964, golpe militar) e Fernando Collor de Mello (1992, impeachment). Nos anos 1940, 1950 e 1960 exerceu como ninguém o comunismo. Era do “partidão” (apelido do Partido Comunista Brasileiro). Quando os fardados dominaram o país, até 1985, Mário esteve preso várias vezes. Formou-se em direito, mas não tinha vocação para a profissão das leis. Nessa época, ao lado de mestres peraltas garridos do porte de Custódio Mesquita, Roberto Martins e Ataufo Alves, iniciou nas composições. Fez “Ai, que saudade da Amélia” inspirado numa empregada da cantora Araci de Almeida. Muitos o chamaram de machista por versos de “Amélia” do tipo forte de “Aquilo sim é que era mulher”/“Amélia não tinha menor vaidade”. A música, ostentada primeiro nos carnavais cariocas (Lago é das terras fluminenses), rapidamente entrou para o gosto popular. Quem, por exemplo, já não declamou alguma vez “Amélia que era mulher de verdade...”?

Outras composições ocorreram como que jorradas de uma cachoeira. “A onda”, “Quem chegou já tá”, “Fracasso”, “Número um”, Faz de conta”, “Ficarás” e, como não poderia deixar de ser, as decorosas “Nada além”, “Aurora” e “Atire a primeira pedra”. Nesta última, particularmente, há, segundo jornalista Sérgio Cabral, o verso mais inteligente da música brasileira: “perdão foi feito pra gente pedir”. A dupla restante, principalmente “Aurora”, são executadas em bailes, festas, carnavais etc. Até poucos meses antes de morrer, ele viajava com seu show “Contos e causos de Mário Lago”. Nestes encontros, o cenário era nulo: somente reles mesinhas com cadeiras, o cantor e Mário, que de vez em quando também dava suas canjas, entre uma e outra história mirabolante. Contar coisas, aliás, era o que o compositor mais sabia fazer. Desfrutou, nas décadas de 1940, 1950 e 1960, quando tudo era diferente, de rodas de discussões empolgadas, sobre política, mulheres, Brasil, canções. Dormir antes das duas da manhã não acontecia de modo algum. A água mineral vazava pouco. E ele agitava.

No cinema, Lago raramente trabalhou. Rodou, ao lado do atordoado Glauber Rocha, “Terra Em Transe” (1967), fita esta não menos atordoada. Freqüentou as rádios mais disputadas e detentoras dos maiores índices de audiência (Nacional, Pan-Americana – hoje a Jovem Pan). No ramo televisivo, ele deu passos largos na TV Globo. Novelas como “O Casarão”, “Barriga de Aluguel”, “Hilda Furacão” alavancaram sua popularidade. Mário nem se importava. Costumava afirmar: “Não fico lembrando de coisas passadas e dizendo ‘No meu tempo...’. Meu tempo é hoje e vivo o hoje”. Lançou livros, nos quais de destaca “16 linhas cravadas”, onde ele se deliciou em escrever crônicas de 16 linhas. Assim como o empresário Roberto Marinho (falecido em agosto de 2003) e o ator Osvaldo Louzada (tem 92 anos atualmente), sempre vimos Mário Lago com a aparência idosa. A calvície, onde cabelos brancos eram pouquíssimos, mas sempre encanecidos, davam o tom dessa característica. Felizmente, o meio de comunicação das massas, a TV, reconheceu sua importância história e o homenageou há três anos.

O fato aconteceu no programa “Domingão do Faustão”, Globo. Em novembro de 2001, ele foi recebido como deveria: aplaudidíssimo. Assistiu depoimentos de companheiros-fãs do trabalho dele, se emocionou, e prometeu, de brincadeira, claro, comemorar seu 200º aniversário, tamanha era sua felicidade naquele instante. Os deuses da arte deveriam suspirar. A magia de Mário Lago ultrapassou os limites do convencional. De família de classe média, estudou piano com a esposa de Villa-Lobos, vizinhos dos Lago. Atuou com Paulo Autran, grande mestre do teatro. “É um presente que ganhei”, se referindo tanto a Autran quanto a Glauber. Na “Pérola” (como era conhecido o hotel Copacabana Palace, no Rio de Janeiro), na infância e juventude um sonho distante, pôde pisar depois quando quis. Estas reviravoltas do destino o contagiavam. “A vida é uma grande surpresa. Você nunca sabe como será amanhã, se o pão estará bom, se o leite estará quente. São essas pequenas surpresas que fazem da vida uma maravilha”, dizia. Tinha orgulho dos filhos e netos e do casamento de mais de 50 anos.

Se a unanimidade é burra, Mário Lago as emburreceu em simples estalares de dedos. Se o mais fácil é confundir, ao invés de explicar, ele contribuiu para isso de forma assombrosa. Se os militares mandões o jogavam no encarceramento fedido e o humilhavam, este carioca fez desse seu problema um mero deslize da sua biografia. Se o comunismo utópico não deu certo, Mário Lago se contentou em apenas ir comprar o jornal do dia seguinte. Se as tristezas pendiam para ser perenes, ele ia para a poltrona mais próxima e redigia uma nova canção. Se as alegrias se amontoavam como cartas de jogo de baralho, o artista descia do degrau da autoconfiança e se reunia com seus velhos amigos no bar da esquina. Se os elogios se acumulavam, aquele ser humano com mais de 80 anos de idade botava tudo no bolso do pijama e dormia sem pensar no assunto. Se mais e mais gente o provocava, o ex-membro do PCB balbuciava trechos de “Nada além” nos ouvidos de quem falava com ele. Se a vida fosse o entojo que é infinitamente, Mário Lago não teria sequer existido. Mandaria alguém no lugar dele.

Um alguém frouxo, incapaz de (imitando Olavo Bilac) ouvir e entender as estrelas. Certamente.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 07/06/2009
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