Os negros no Brasil desde Zumbi dos Palmares (publicado originalmente em20/11/2004)

Vinte de novembro é dia da consciência negra. Escrevo em letras minúsculas as palavras “dia”, “consciência” e “negra” propositalmente. Não há o que comemorar. A data fora apontada com o dedo devido à morte de Zumbi dos Palmares, em 1695, após brava resistência de 65 anos. Nada de revanchismo aqui. Chamava-se de quilombos os aldeamentos fortificados de escravos fugitivos, às vezes distanciados milhares de quilômetros das grandes cidades e povoações. Ficavam em locais de difícil acesso. O grupo de Palmares (região onde atualmente estão Alagoas e Pernambuco) foi o que mais se destacou, seja pela organização administrativa ou pelo nível hierárquico respeitadíssimo. Em relação às artes, a raça negra não possui um representante tão expressivo desde os éolos polêmicos de Abdias do Nascimento. Nascido em Franca, interior de São Paulo, Abdias dedicou grande parte da vida dele a atuação, livros e política. Rompeu a primeira barreira de preconceitos ao formar-se aos 24 anos em Economia, na Universidade do Rio de Janeiro, em 1938. Vários óbices seriam dissipados.

Os atalhos percorridos por ele tinham iniciado antes ainda, quando o ator participou da Frente Negra Brasileira (FNB) – espécie de reunião de artistas do teatro. A forma da FNB seria aprofundada em 1944, quando Nascimento criou Teatro Experimental do Negro (TEN), o qual dirigiu até 1968. A fama viria com a convivência farta de Nelson Rodrigues, que conheceu ao freqüentar o café carioca “Vermelhinho”, na Cinelândia. A peça “Anjo Negro”, escrita por Nelson, estava para sair do forno há vários anos, mas sempre era adiada por forças maiores. Ao encarar Abdias, o “reacionário” não teve mais dúvidas e datilografou os atos finalmente. Escrever sobre negros, diz Ruy Castro em seu livro “O Anjo Pornográfico”, “era uma antiga idéia” de Rodrigues. Mas existia sério entrave: a produção que cercava Nelson exigia uma pessoa branca para o papel principal, e esta seria pintada de preto. No fim das contas, era Abdias mesmo quem interpretaria a “prima-dona”. A ditadura militar brasileira fez de Nascimento um exilado. Ele pisou nos Estados Unidos na última curva da década de 1960.

Lá, entre 1969 e 1982, largou o ofício teatral e se dedicou a lecionar, tarefa que exerceu também na Nigéria. Nas faculdades norte-americanas (e nas nigerianas) vestiu o traje de professor de Cultura Afro-Americana. Ao retornar à terra natal, 22 anos atrás, filiou-se ao PDT de Leonel Brizola e recebeu votos suficientes para ser eleito deputado federal. Entre seus escritos, a peça “Sortilégio”, de 1957, é até hoje a mais lembrada. Somam-se aí as autorias de “O genocídio do negro brasileiro” (1978) e “O negro revoltado” (1982). Em bases dos EUA, conheceu sua esposa, Elisa Larkin. Não se importando às reverências, conta hoje 90 anos vividos sob os espectros da condição do negro aqui e no mundo todo, causa que ele tanto luta. Milton Gonçalves é outro que ocupa tranqüilamente lugar cativo na lista dos artistas negros mais celebrados do país. Mineiro da cidade de Monte Santo, aos 70 anos continua firme nos trabalhos que comanda, sejam eles bons ou ruins. Recentemente, viveu um dos encarcerados de “Carandiru” (2003), dando banho de emoção quando permanecia na “solitária”.

A escalada profissional de Gonçalves é semelhante a de Abdias. No encerramento aos anos 50, esteve na formação do Teatro de Arena de S. Paulo. Brilhou em montagens como “Ratos e homens” (1956), “A mandrágora” (1963), “Arena contra Zumbi” (1964), entre outras. Nas telonas, filmou “A Rainha Diaba” (1974), “Cidade Ameaçada” (1960), “O Beijo da Mulher Aranha” (1985) etc. Quando criança e jovem, foi jogador de futebol de uma equipe amadora, sem sucesso. Recai, porém, sobre a figura de Abdias do Nascimento, o marco maior da representação negra na arte tupiniquim no século 20. Depois dele, vieram outros, mas o estímulo não foi nem é o mesmo. A desunião de uma classe desequilibra todo o porte nacional. Ao ganhar fervoroso processo judicial contra o racismo, Glória Maria (jornalista da Rede Globo) acordou o espírito combativo para esta bandeira novamente. Pouco tempo depois, nada mais era comentado sobre o assunto. Por aí, passeatas com homossexuais, pró ou contra Bush, alertando para a paz mundial, ocorrem. Esporadicamente, o movimento negro ressurge.

Nesses últimos giros do calendário, o ponto mais discutido acerca dos negros foi a embaraçosa cota nas universidades. A roda-viva rola solta, abordando teorias contra ou a favor. Leva-se em conta que pesquisas comprovam que o negro geralmente tem menos poder financeiro para pagar escolas particulares nos ensinos médio e fundamental e, por isso, não passaria em vestibulares concorridos (e, se passasse, não acompanharia o ritmo de ensino como os que vieram de instituições particulares). O presidente Lula, numa de suas eternas furadas internacionais, disparou quando visitava certo país do continente africano, que, por ter determinada qualidade, “nem parecia da África”. O líder do Brasil dá o exemplo do descendente de escravos, pernambucano de nascimento. Ao não terem oportunidades de trabalho, quem tem mais talento se sobressai. O que dizer de Elza Soares, Ruth de Souza, Pelé, Tony Tornado, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Hélio de la Peña etc? Sinceramente, nós seríamos mais pobres sem eles. Mesmo assim, não lhes dão devido e merecido valor. Vergonha.

Enquanto em outros países o racismo é escancarado (quarta-feira passada, na Espanha, no jogo entre o time da casa e a Inglaterra, os torcedores espanhóis vaiavam e/ou xingavam cada vez que um atleta negro inglês pegava na bola, o que gerou revolta no Primeiro-Ministro britânico Tony Blair e também concluiu-se em reclamações na Fifa – Federação Internacional de Futebol; exemplo típico de maus comportamentos), no Brasil ele é mascarado, de maneira vergonhosa. Em entrevistas, ninguém ousa soltar frases ditas preconceituosas, pois tem medo da conseqüências. Num lugar povoado desde o descobrimento, passando pelas raízes indígenas, até a assinatura da “Lei Áurea”, a 13 de maio de 1888 pela Princesa Isabel, amenizar este tipo de assunto só prejudica quem possui a cor negra. Eles ganham salário abaixo da média dos brancos, na televisão (com raríssimas exceções) são tratados de forma caricatural ou como famílias pobres. Jogadores de futebol negros são parados por policiais que não acreditam que aqueles carrões pertencem a pessoas como eles. Ignomínia condescendente, pois.

E pensar que nosso maior gênio da literatura, Machado de Assis, que pouco foi à escola, era mulato, gago e epilético. Não podemos considerar plangência essa coincidência da vida. Afinal trata-se do criador de Capitu, a “garota de olhos de ressaca”. Negros de todo o Brasil, uni-vos!

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 07/06/2009
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