Complexo de Édipo às avessas (publicado originalmente em 19/2/2005)

Não foram poucos os textos sobre “Psicose” (1960), clássico do suspense que leva o emblema de Alfred Hitchcock na direção. Teses de mestrado, doutorado, refilmagens, temas de palestras e de discussões de grupos, a fita é comentada de sempre em sempre, anos depois da estréia. O principal ingrediente desse tempero, o qual garante os aplausos até hoje, está na história, no capricho das cenas e da trilha sonora. Já se sabe que a cena marcante é aquela do chuveiro. Conhece-se também como o som daquele instante amedrontou meio mundo, com os acordes de violino violentos. Temos a noção exata do talento absurdo de Anthony Perkins, intérprete do dono da pensão mal-assombrada Norman Bates. Mesmo assim, eu, particularmente, ainda tenho muito a aprender sobre este longa-metragem. Recentemente, revi em DVD. Continua esplêndido, sobretudo com imagens restauradas digitalmente, o som melhorado e tudo o mais. Mas hoje me restringirei a comentar os extras. Antes disso, a seguir, nos próximos dois parágrafos, para aqueles que cometem o imenso erro de ainda não ter assistido a este épico chamado “Psicose”, emendarei breve resumo sobre o enredo indicado a quatro Oscars.

Bates é um pacato dono do Motel que leva seu nome. Esconde, por trás de seu rosto ingênuo e desprotegido, o mais feroz e aterrorizante dos seres humanos: de psicopata. No outro lado da história está Marion Cane (Janet Leight), funcionária igualmente na dela, até certo ponto frágil. Ela acaba de roubar 40 mil dólares de seu chefe e decide fugir. Depois de gastar o motor do carro durante mais de 24 horas, ela estaciona seu veículo na pensão de Norman, a fim de descansar da viagem. Aí o diretor põe sua mão e, quando a platéia tem toda a atenção voltada à Marion, que é a protagonista, Hitchcock a retira de cena no momento magistral que todos pelo menos algum dia já ouviram falar. Passado o susto do chuveiro, o protagonismo muda de dono e vai para o personagem de Perkins. Aliás, os bons minutos do filme pertencem a ele. Seu estilo de observador patético, olhando por um buraco feito na parede a musa Janet trocando de roupa, é de se gargalhar. As sombras voltam nas ilustrações da casa onde reside Norman, revoltado com sua mãe, que não o deixa em paz e reclama direto no seu ouvido.

Claro, sabemos que ele matou a mãe e que guarda o corpo dela no sótão. Imita a voz dela. A loucura dele chega a este ponto. E vai além quando se veste com as roupas dela para matar pessoas. Depois da pobre ladra Marion, é a vez do detetive que investiga o desaparecimento do dinheiro sentir a dor da morte na pele, na seqüência não menos clássica da escada, na qual a câmera, no rosto dele, acompanha a queda. Fica com a irmã de Marion a responsabilidade de desvendar quem é o matador em série. E quando gira a cadeira e descobre o corpo da senhora Bates, tudo se soluciona. Na prisão, enjaulado, os olhos de Bates definem o que é o filme: ele não faria mal a uma mosca, nem àquela que pousa suavemente na mão dele e anda, solta, por lá. Além da direção, “Psicose” apareceu no Oscar indicado a direção de arte, fotografia e atriz coadjuvante para Leigh. Apesar de apontado como uma das maiores produções dos anos 1960, a fita ficou com as mãos abanando na festa da Academia. Não importa. Os registros captados pelas lentes sagazes de Hitchcock preenchem os vazios das estátuas.

Agora, aos extras. Em primeiro lugar, é o próprio diretor inglês quem leva o público a passear com ele nos cenários da película. “Entrem, é por aqui...”, diz Alfred com a fineza de um mordomo competente. Mostra os quartos, a recepção do motel, o banheiro famoso (onde ele faz suspense com o que poderá ocorrer lá dentro), os sets detalhadamente construídos. Vai ainda à casa de Norman e lá faz os mesmos trajetos, como se mostrasse a residência para alguém que deseja comprá-la. Ademais, há entrevistas com os participantes (do elenco, apenas Janet deu depoimento – ela faleceria pouco tempo depois). As explicações sobre como Hitchcock trabalhava, sua preocupação em fazer sempre o melhor possível. É curioso que Anthony fosse escalado. Predominavam nas películas dele Cary Grant e James Stewart. Não menos entendido foi trazer Leigh para compor o filme, pois entre as musas do diretor, a que mais se destacava era Grace Kelly. Mas daí a imaginar Grant ou Stewart encarnando loucos, insanos assassinos, seria demais. Naquela época, a reputação profissional do ator valia muito. Um papel como o de Norman Bates poderia representar a derrocada de um ator. E o risco era grande.

Neste cipoal de informações, “Psycho” (título em inglês) custou ralos 800 mil dólares para ser montado, rendeu 40 milhões. Nada mal. Por opção de Hitchcock, a fita foi filmada em preto e branco para, segundo ele, “não ensangüentar demais a história”. O melhor disso tudo é que o diretor, por míseros nove mil dólares, comprou os direitos do livro de Robert Bloch (autor da trama), distribuiu a obra entre amigos, mas sem desvendar o fim. A escolha do elenco, discutida no parágrafo anterior, se deu porque o mestre do suspense quis utilizar a mesma base dos atores que trabalhavam na série de TV exibida nos Estados Unidos. Nos anos de 1983, 1986 e 1990, todo aparato da película foi jogado no lixo com três estúpidas continuações. Em 1998, o pior: o remake do autêntico. E o que era de se esperar aconteceu: ganhou os Framboesas de Ouro (antifesta do Oscar, que premia os piores do ano) de diretor e seqüência e concorreu por atriz. Mas isto são questiúnculas que nem valem a pena notar. “Psicose”, o de 1960, se sobressai gloriosamente. Como tem que ser. E, naturalmente, como sempre será. São os minutos sem cor mais angustiantes, tenebrosos, tensos e célebres dos últimos 50 anos.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 20/06/2009
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