Uma história emocionante sobre Copas (texto-bônus ao Recanto das Letras)

Na Copa de 30, o menino estava com 11 anos e só tinha ouvido falar em jogos de futebol porque ele acompanhava as pequenas notas que saíam no jornal que o pai comprava. Sabia que teria um campeonato no Uruguai por isso, e nada mais. Acho que nem soube que o Brasil foi mal nesse torneio e que o país que recebeu a competição se sagrou campeão.

Na Copa de 34, o garoto completou 15 anos uma semana antes das pelejas começarem, na Itália. O jornal que o pai comprava na banca diariamente continuava a ser o mesmo e, portanto, aquelas raras notas acerca dos confrontos na Europa eram lidas avidamente pelo pré-adolescente (aliás, este conceito nem era importante na época). Agora ele soube que o Brasil tinha ido mal de novo e que também de novo o país-sede ganhara a disputa.

Na Copa de 38, com 19 anos, o rapaz já estava a trabalhar numa firma de contabilidade. Fazia três anos que labutava ali. O pai continuava fiel ao jornal, mas naquele ano o jovem, além das extensas e boas reportagens do papel, tinha comprado um rádio. Que diversão! Até a mãe se empolgou em ouvir os jogos no aparelho. Ficavam os três ali, na sala, quietos. Só gritavam nos tentos de Leônidas e companhia. E que berros davam! O Brasil ficou em terceiro e o trio vibrou demais. Enfim, uma alegria no futebol.

Como as Copas de 42 e 46 não aconteceram, na de 50 o homem já era um senhor de 31 anos e era casado há três. Tinha um filho que coincidentemente nascera na mesma data do pai e completava um ano alguns dias antes do campeonato iniciar. E a Copa era no Brasil! Mas, claro, o homem não abandonou o pai e a mãe e levou a esposa e o bebezinho para ouvirem as partidas na casa do pai. Que espetáculos eram os jogos, um após o outro! Na final contra o Uruguai, a taça já estava ganha, ainda mais porque o Brasil jogava precisando só empatar... E o homem até pensou em comprar entradas pro Maracanã para todos da família, mas desistiu. Todos ficaram tristes quando o país perdeu. A casa do pai parecia um velório, de tão frustrados que todos ficaram. O homem abraçou o pai e eles choraram. Foi a primeira vez que o filhou viu o pai chorar.

Na Copa de 54, o homem contava 35 anos e seu filho, 5. Os dois, mais o pai / avô estavam bastante confiantes, já que em 50 tínhamos sido vice. O homem comprou um rádio novo só para se degustar e dar ao filho o que o pai tinha lhe dado 20 anos antes: o prazer de gostar de Copas. Julinho Botelho era o ouro brasileiro. Mas havia a Hungria. Avô, pai e filho se decepcionaram mais uma vez. O avô prometeu que nunca mais perderia o seu tempo torcendo pro Brasil, já que ‘nunca vamos ganhar isso aí’. Pelo menos, a Hungria perdeu pra Alemanha e o avô e o filho gostaram de saber que aqueles arrogantes caíram na final.

Na Copa de 58, quase quarentão, o filho se tornara um advogado renomado na cidade, mas quando a competição começava, ele voltava a ser a criança de outrora. Com o pai, este quase setentão, e ao lado do neto de 9, mais uma vez ouviram o torneio. Sim, o avô voltou atrás e decidiu dar mais uma chance ao time. Se deu bem. Viram Pelé e Garrincha, dois jovens, conquistarem um lugar na equipe. A festa foi a mais alegre possível quando o Brasil ganhou da Suécia na final. De novo, pai e filho choraram, mas agora de felicidade e emoção. O avô pôs o neto no pescoço e saíram pra rua e comemoraram o troféu de melhor do mundo.

Na Copa de 62, por motivos tais, pai e filho estavam brigados. Fazia seis meses que não se falavam. A esposa do filho tentou uma reaproximação dos dois, em vão. ‘Não tem volta’, disse o filho. O pai era a tristeza em pessoa. Seria a primeira vez que acompanharia um torneio sem o filho do lado. Ouviram longe um do outro. O Mundial foi outra coisa assim. Nem o bicampeonato do Brasil fez o filho abrir um sorriso no rosto. O pai ficou igual, depressivo. Na final contra a Tchecoslováquia, foi dormir. O neto, agora com 13 anos, vibrou. Mas vibrou sozinho, com os amigos da rua.

Na Copa de 66, o filho estava com 47 anos. Começavam a nascer os primeiros cabelos brancos. Por incrível que pareça, a pendenga com o pai continuava. Mal se olhavam, se cumprimentavam. Não pelo pai e sim pelo filho. O neto, com 17, não sabia se ficava com o avô ou com o pai. Ah, sim: agora eles tinham comprado uma televisão. O pai do homem também, mas era uma de segunda mão. Sem o filho, o pai não achava graça na Copa, de novo. O filho quase cinquentão também. Era só o neto adolescente que sentia o gosto de torcer pelo Brasil. Porém, desta vez nem teve muito tempo. Assim que o Brasil foi eliminado, o neto foi se encontrar com a namorada. Pai e filho ficaram cada um na sua casa, vendo o mesmo programa: a Resenha Facit, da TV Globo.

Na Copa de 70, tudo resolvido. Pai e filho tinham se reconciliado logo após a Copa de 66. Agora, a Copa dos sonhos. Ao vivo, na televisão, e não interessava que era em preto-e-branco. O pai comemoraria 80 anos no fim do ano e o filho, com 51, já estava pensando numa festa surpresa a ele. O neto, com 21, ia prestar vestibular para Direito também, como o pai e ao avô. A Copa voltou a ser a festa na casa do pai, e o espaço estava tomado por bandeiras verdes e amarelas. A cada partida, uma comemoração. Na vitória contra a Itália, pai, filho e neto se abraçaram longamente. E comemoraram ainda a aprovação do neto no vestibular de Direito.

Na Copa de 74, o pai já não estava mais. Dias depois da festa surpresa organizada pelo filho, ele passou mal. Sabe como é, problemas relacionados à idade, pressão alta etc. O pai agora era ele, com 55 anos e só quis acompanhar a Copa de 74 por causa do filho, de 25, que também já estava quase formado e prestes a se casar. Não teve muita graça porque a toda hora eles lembravam do avô, mesmo sendo aquela a primeira Copa que viram em cores. O Brasil perder foi o alívio que desejavam, pois o avô havia visto o Brasil ser campeão três vezes.

Na Copa de 78, aos 59, o pai estava aposentado e o filho, de 29, tinha terminado o noivado meses antes do matrimônio. O avô era uma doce lembrança. Pai e filho torceram como loucos na Argentina. O pai fez força pra não chorar quando via os sorrisos do filho a ele e se recordava dos momentos que tinha passado décadas antes, com o seu pai. O ‘campeão moral’ não convenceu a dupla, que terminou a Copa reclamando da roubalheira que foi os argentinos terem vencido o Peru por 6 a 0.

Na Copa de 82, o filho, com 33 anos, havia resolvido morar sozinho. O pai, com 63, apoiou, para o desespero da mãe, que só choramingava. Todavia, já sabe: época de Copa é todo mundo junto e o filho e o pai, com a mãe, assistiram aquele timaço com Sócrates e companhia ganhar os jogos até chegar no jogo com os italianos. Triste dia aquele de julho. O filho quis chorar, mas se segurou. O pai, acostumado com as derrotas e vitórias desde a primeira Copa, em 1930, nem ligou. ‘Teremos outras, filho’, disse. O filho resmungava e dizia muitos palavrões. Muitos mesmo.

Na Copa de 86, com 67 e 37 anos, pai e filho resolveram fazer uma loucura. Viajaram ao México para assistir o torneio. Tinham certeza de que o Brasil repetiria 70 e, na mesma terra, conquistaria o tetra tão sonhado. Juntaram dinheiro durante anos para tanto. Compraram passagens e a parcelaram em várias vezes. Valia a pena. Veriam a conquista brasileira de perto. Mas o que viram foi um tal de Michel Platini estragar a festa. Esses franceses... Ainda assim, não acharam que tinham desperdiçado dinheiro.

Na Copa de 90, o filho de 41 anos não estava casado. Seguia morando sozinho, assumia a solteirice convicta e não queria filhos de jeito nenhum. O pai, aos 71, sofria com a mãe, doente demais naquele ano. Havia descoberto um câncer. O filho se desesperou. Chorava dia após dia, se lamentando, pois sabia que a cura não viria. Mal sentaram na sala para ver aquele campeonato. A mãe morreria no dia da final da Copa. Enquanto a Alemanha ganhava da Argentina, pai e filho velavam a mãe, sem saber sequer os placares dos quatro jogos que o Brasil fez em 90. Eles não estavam nem um pouco interessados.

Na Copa de 94, pai e filho estavam mais conformados com o desaparecimento da mãe. Contudo, sobre a Copa, não. O pai tentava animar o filho, mas este ainda estava ressabiado com a equipe de Carlos Alberto Parreira. A maioria dos jogadores vinha do fiasco de 90 e não inspiravam confiança. Como este técnico pôde convocar Dunga e Branco de novo? Na medida em que o Brasil ganhava, pai e filho foram se acostumando ao jeito retrancado de jogar do Brasil. Na decisão contra a Itália, os dois relembraram a final de 58, quando estavam 36 anos mais jovens e não os senhores de 75 e 45 anos de agora. Pularam da cadeira quando Baggio errou o pênalti. Saíram de carro buzinando e tremulando a bandeira.

Na Copa de 98, pai e filho quase foram a França assistir os jogos. Não que eles aspirassem uma taça de penta pro Brasil, mas uniriam o útil ao agradável: conheceriam Paris e torceriam. Aos 79 anos, o pai estava orgulhoso do filho, um juiz de fama nacional aos 49 anos. O Brasil ter chegado à decisão foi mais um brinde aos dois, que nem se incomodaram com a goleada imposta pela França. Saíram daquele jogo e foram direto pra uma lanchonete e ainda brindaram com alguns franceses que estavam lá.

Na Copa de 2002, uma tragédia sem tamanho. Aos 83 anos, o pai viu o filho de 53 morrer em um desastre aéreo. O filho estava indo a um congresso na Espanha e o avião caiu. Não teve sobreviventes. Só faltavam 5 dias para a Copa começar. O filho havia prometido ao pai que chegaria a tempo de ver com ele a Copa a partir das oitavas-de-final. Eles tinham comprado uma camisa da seleção para cada um, ambas com o número 10 nas costas. Desolado, o pai não sabia o que fazer. Veio as lembranças dele com o seu pai e com o filho, em 58, 62, 70... Começou a ficar só no quarto, trancado, sem comer, só dormindo. Nem a conquista do penta ele viu. O corpo do filho desembarcou no Brasil um dia antes da final da Copa.

Na Copa de 2006, aos 87, por mais difícil que poderia ser, o pai aos poucos superava a perda de seu filho. Bem de saúde, bem disposto, vivia sozinho em um médio apartamento. Viu em casa os jogos direto da Alemanha. Na verdade, só seguiu mesmo os do Brasil, e olhe lá. Assim que o jogo em que o Brasil foi derrotado pela França acabou, saiu para ver um filme. Nada mais era importante. Ele procurava coisas pra pensar para não ficar só pensando na esposa e no filho. Não adiantou muito.

Na Copa de 2010, o pai chegou aos 91 anos de idade. Para ser mais bem cuidado, e por não ter mais parentes vivos, resolveu se instalar num asilo. Pelo menos teria gente olhando por ele. Chegou ali no mês de janeiro de 2009, para ser mais exato. Fez alguns amigos. Podia bater papo, almoçar e jantar sem ter de se preocupar com nada, só com os seus livros e discos que trouxe de casa, uns 15 ou 18. Mas a sua maior intenção é ver a Copa de 2014, a segunda no Brasil. Estará com 95 anos. Espera chegar lá sem estar com qualquer doença e poder apreciar novamente um campeonato por aqui. Se conseguir, prometeu que vai contar aos parceiros de dominó como foram as Copas em que assistiu com o seu pai e seu filho. Ele não se acostumou a ver uma Copa sozinho e a de 2010 já seria a segunda, porque a de 2002 não conta.

O pai continuava se lembrando do seu pai (1890-1970), do seu filho (1949-2002), da sua esposa (1922 – 1990) e dele próprio (1919 – ), numa mescla de alegria, felicidade e emoção. Tudo valeu a pena.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 08/06/2010
Reeditado em 09/06/2010
Código do texto: T2307199
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