Cinema e Narrativa histórica: A abordagem de Silvio Tendler em "Utopia e Barbárie".

Cinema e narrativa: A qualidade mimética da montagem

Considero aqui a partir de um envolvimento como pesquisador, a importância básica que há para um estudante de formular questões que o intrigam. Uma inquietação constante com nosso objeto sempre foi, sem dúvida, o motor de nossos estudos. Suponho que a história, ou a análise histórica por si, inclusive, como recorrência a uma literatura qualquer do passado, considerada anterior no tempo, é de fundamental importância para o método científico de qualquer área do conhecimento.

Uma dessas áreas, porém, causou-me forte impressão: o cinema. Através da leitura da Poética de Aristóteles, entendemos que as artes, para os antigos, funcionavam de forma a estabelecer uma impressão mimética no espectador. Precisariam, sobretudo, a poesia, que de acordo com o estagirita, teria um papel mais elevado que o papel da história, causar uma idéia do possível, do verossímil. No caso particular do cinema isto ocorre de forma realmente impressionante. O impacto que imprime no espectador uma peça cinematográfica é tamanha, que desde suas origens, os políticos, tais como Trótski em 1923, fizeram questão de alertar em seus escritos sobre a necessidade de controle do mesmo.

O então escritor e diretor da biblioteca-filmoteca de Paris, Marc Vernet, em 1994 (2), discorre em artigo publicado na brochura “A estética do filme” sobre o encontro do cinema com a narrativa, enunciando três razões básicas, para um encontro que considera fortuito e um “fato de civilização” dada a sua importância para o próprio cinema. Dentre essas três razões a primeira seria a da imagem figurativa em movimento.

Vernet explica que, o fato do cinema, através da representação visual, se apropriar da imagem de um objeto, que por uma convenção social é reconhecível, é por sua vez um ato de ostentação que implica dizer algo a propósito desse objeto, além, é claro, dos seus próprios significados intrínsecos. O autor parte do principio de que qualquer objeto já é um discurso em si, uma amostra social, pois, tende a recriar em torno dele o universo social ao qual pertence. Nisso está implícito ainda o realismo cinematográfico do movimento, tomando a imagem representada como imagem do devir e, por conseguinte, em perpétua transformação, em constante movimento. A representação cinematográfica figurativa agrega, portanto, o elemento do movimento e da duração para compor seu realismo dentro do “aqui” e “agora”.

Em seguida, a contribuição da análise estrutural literária evidenciou que uma típica história pode reduzir-se ao encaminhamento de um início e um final e pode ser esquematizada por uma série de transformações que se encadeiam através de sucessões. Tudo isso, é claro, levando em conta as técnicas de montagem: os fotogramas encadeados que constituem o campo e outros elementos técnicos, ficando de fácil percepção o fato de o realismo cinematográfico encaixar-se tão perfeitamente na forma de um romance ou de uma peça de teatro.

Seguindo o raciocínio, partimos, seguindo Vernet, para o terceiro motivo diretamente relacionado: a busca de legitimidade. Dentre eles, o mais histórico, pelo tímido estatuto inicial do cinema nos primeiros tempos de “invenção sem futuro” como declarava Lumierè. Sendo assim, em parte para ser reconhecido como arte que o cinema se empenhou em desenvolver suas capacidades de narração.

Assim, suponhamos que o cinema, como discurso artístico, participa ativamente das disputas sociais a partir, também, da ideia foucaultiana preconizada em “A ordem do discurso”, na qual pontua:

“[...] o discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é objeto do desejo; e visto que – isto a história não cessa de nos ensinar – o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (3).

Paulatinamente, as tecnologias cinematográficas se aperfeiçoaram utilizando não só as outras artes em seu serviço; levando em conta não apenas a narrativa e suas diversas formas de produção, mas, sobretudo, os recursos tecnológicos. Partindo do fotograma, da evolução das câmeras até chegarmos hoje no que conhecemos de mais avançado nos equipamentos digitais, nos softwares de edição e nos recursos sonoros. A busca intermitente do cinema por uma maior relação de verossimilhança com a realidade impressiona o espectador.

Faz do cinema em nossos dias, uma das artes que mais mimetizam a narrativa literária com, as quais, as pessoas vivem relações de familiaridade e até intensas de envolvimento com a “telona”.

É justamente, nesse momento, que podemos recorrer à questão do afeto. O método fílmico do cineasta Silvio Tendler explora claramente esta característica marcante da sétima arte de imprimir uma memória afetiva, com a qual o espectador tende a envolver-se e tomar parte no próprio presente, no “aqui” e “agora” através de uma verossimilhança com o passado produzida pelo cinema. E onde entra a história nessa relação do cinema com o espectador?

Memória afetiva em “Utopia e Barbárie”

A película em questão foi o resultado de dezenove anos de filmagens e viagens pelo mundo unidas a diversas citações de obras consagradas. Inclui extenso painel de entrevistas com cineastas, filósofos (Susan Sontag, Leandro Konder, Gianni Vattimo), jornalistas (Franklin Martins), escritores (Eduardo Galeano, Amir Haddad, Augusto Boal), militares (Gen. Apolônio de Carvalho, Gen. Giap), políticos (Dilma Roussef, Arnaldo Carrilho) e dezenas de ativistas. Montado com imagens históricas de arquivo e excertos do cinema político (Eisenstein, Rossellini, Pontecorvo, Solanas, Amos Gitai), ainda traz em off três atores exercendo a narração. Esta, lado a lado com os documentos de arquivo e os depoimentos, dá o toque mais pessoal do cineasta na composição.

A utopia dos vencidos e a barbárie dos vencedores é o ponto de partida no qual Tendler busca apoio para uma obra sobre as gerações de 1968 no mundo. Várias memórias de pessoas que viveram esse ano e essa década de 60 são organizadas. Vários depoimentos são concatenados sob os auspícios de narradores inspirados numa das teses do filósofo Walter Benjamin. Justamente aquela que fala sobre o anjo da história. A tese de número IX, que segundo Michael Löwy (4), seria uma das mais interpretadas e que teria, inclusive, marcado a imaginação de uma época.

O resgate da memória realizado por Tendler não se dá pela construção de uma linha contínua da militância de esquerda, mas por fragmentos que freqüentemente são tomados desconexos. Momentos violentos de choque em que o tempo se contraiu, as coisas aconteceram muito rápido, de modo incontrolável e imprevisível, lançando as pessoas envolvidas entre a utopia dos vencidos e a barbárie dos vencedores. "Utopia e Barbárie", com efeito, embute a filosofia da história de Walter Benjamin, e não a toa cite diretamente uma das célebres teses desse marxista judeu, surrealista e melancólico. Também não é coincidência a presença de Leandro Konder, acadêmico estudioso de Benjamin, dentre os entrevistados.

“Nunca houve um documento de cultura que não fosse um documento de barbárie”. Essa frase de Benjamin retirada de outra de suas teses sobre a história permeia toda a defesa política realizada pelo historiador-cineasta. Ela é dita por um dos narradores em algum momento da película. Tendler seleciona e focaliza alguns movimentos de contestação do século XX. Viajando enormes distâncias recolhe documentos sobre as mobilizações, principalmente, as de guerrilha, no Vietnã, Camboja, México, Chile, Brasil, Argentina, Estados Unidos, Palestina, Argélia e República Dominicana. O seu critério parece dirigir-se a alguns dos momentos da história oficial, nos quais, teria passado o rolo compressor dos aparelhos de Estado imperialistas.

O documentário lança suas teses sobre o passado recente. Declara, inclusive, que o furor revolucionário de 68: “o orgasmo da história”, teria se transformado numa “brochada” nos anos 90. Para Tendler, a história não deve ser considerada como algo distante. O cineasta argumenta que tem preferência pelos transgressores da história, mas que o personagem histórico mais distante no tempo com o qual trabalhou foi Castro Alves, numa produção que não tenho informação se foi lançada. O fato é que a questão que fica acerca do cinema engajado de Tendler seria se ele não radicalizaria demais na sua verdade do cinema. Não há dúvidas, pois, que sua posição, coloca a história meio que como serviçal do cinema. E, salientemos, como afirmou Ferro:

“Assim como todo produto cultural, toda ação política, toda indústria, todo filme tem uma história que é uma História, com sua rede de relações pessoais, seu estatuto dos objetos, onde privilégios e trabalhos pesados, hierarquias e honras encontram-se regulamentados, os lucros da glória e os do dinheiro são aqui regulamentados com a precisão que seguem os ritos de uma carta feudal. [...] não existe empreendimento industrial, militar, político, religioso que conheça diferença tão intolerável entre o brilho e a fortuna de uns e a obscura miséria dos outros artesãos da obra”. (5)

Conclusões

Resumindo, um filme não é apenas um filme. O cinema não é apenas uma sala com um projetor. Mas, assemelha-se muito mais a uma indústria, e com relações de trabalho. É claro que esse tipo de expressão artística não é sempre um trabalho acadêmico, mas a impressão que nos é transmitida é a de um livro munido de fontes legitimadas, de citações relevantes. Qual será então o seu efetivo valor de memória?

Diante dessa questão notamos que a história está sempre sendo significada pelo “aqui” e “agora”, pela arte, pelas práticas sociais diversas. Notamos que o lugar ocupado pelo cinema como o do entretenimento, ou do pictórico contém elementos de contestação política. Elementos que podem ser construtores de memória muito eficazes. Tão relevantes como qualquer outro e até mais, na medida em que é mais publicado, ou mais consumido, mais visto. E aqui caberia até mesmo a questão a ser analisado o papel do Estado na promoção do financiamento ao chamado campo cultural. A promoção da cultura protegida por lei como financiamento, inclusive de filmes, como entretenimento e diversão dos cidadãos, por um lado, mas também como um terreno acirrado de disputas pelo maior espaço do lembrado, por outro.

Nós historiadores não queremos fazer da escrita da história uma arte. Essa, digamos que é a preocupação maior de alguns conservadores da academia. O fato é que a disputa é, sobretudo, por um método autônomo do historiador, e isso não é impossível de ser mantido. Que nós pesquisemos, que escrevamos, que acessemos as fontes de forma organizada e rigorosa e nos coloquemos como porta-vozes de uma realidade histórica, isso é bem viável. Assim, a história constrói uma memória dentro do seu próprio campo de atuação, um campo restrito, de fato, mas que manteria toda a legitimidade do trabalho específico do historiador. Entretanto, isso não diminui o valor de outros atores sociais como o cinema que se utilizam da história e também constroem memória com a sua eficácia e o seu espectador definidos.

O fato de se manter o método historiográfico não exclui o que de envolvimento há no pesquisador. Sua postura política, e até a seleção dos termos que usa para se expressar, enfim, todos os condicionamentos do “aqui” e “agora” inerentes a qualquer pessoa. Historiadores do cinema como Silvio Tendler não se excluem do direito de expressar justamente a verdade do cinema utilizando-se da verdade da história. Tudo isso é apenas um exemplo de como as produções científica e cultural estão em profundo contato. Uma prova de que, como teorizou Bakhtin, os campos da sociedade que eram tidos como incomunicáveis estão em movimento de influência mútua.

Notas

(1) - AUMONT, Jacques et al. A estética do filme. Ed. Papirus: São Paulo, 1995. pp 89-99.

(2) - FERRO, Marc. Cinema e História. Ed. Paz e terra: Rio de Janeiro, 1992.

(3) – FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no College de France. Ed. Loyola: São Paulo. 1996

(4) – LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses sobre o conceito de história. Boitempo: São Paulo, 2005.

(5) - FERRO, Marc. Cinema e História. Ed. Paz e terra: Rio de Janeiro, 1992.

Bibliografia consultada

ARISTÓTELES. Aristóteles: Poética; Organon; Política; Constituição de Atenas. São Paulo: Nova Cultural, 2000.

AUMONT, Jacques et al. A estética do filme. Ed. Papirus: São Paulo, 1995

FERRO, Marc. Cinema e História. Ed. Paz e terra: Rio de Janeiro, 1992.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no College de France. Ed. Loyola: São Paulo. 1996

LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses sobre o conceito de história. Boitempo: São Paulo, 2005.