A Decodificação de uma Sociedade através da Cinematografia

Leonardo Lisbôa

O Barbacine, o nosso Cine Clube de Barbacena encerrou seu ciclo sobre Lars Von Trier.

Este cineasta europeu ousou decodificar a sociedade estadunidense com sua triologia exibida às quartas-feiras pelo meio cultural acima identificado entre outros filmes exibidos (o trio de películas em questão foram Dogville, Manderlay e Dançando no Escuro – os outros do mesmo produtor foram Ondas do Destino e o Anti-Cristo, para não esquecermos).

Para melhor compreensão da sociedade enfocada recorremos à História, ciência mestra.

Recorremos à obra, então, da coleção “História da Vida Privada”, volume 5, que analisa o período “Da Primeira Guerra a nossos Dias”, dirigida por Philippe Ariès e George Duby, publicada pela Companhia das Letras no ano de 1992, 3º reimpressão, em 1994. Fugimos às normas acadêmicas para citações e, portanto, as páginas indicadas nas citações abaixo referem-se à esta consulta.

Afirma “...Heidegger de que a raiz do passado está no futuro. É verdade que a compreensão da história vivida passa pela idéia que os homens de uma época tinham em relação a seu futuro. ...todo indivíduo é o produto de uma história tríplice – nacional, familiar, individual...

É próprio de todos os fracos – sejam indivíduos ou grupos – elaborar estratégias (percebidas apenas nos discursos que as veiculam) de compensação, cujos argumentos se voltam para as grandezas do passado e a negação daquilo que incomoda no presente. ...Max Lerner observa com razão que os europeus têm o “complexo de Atenas”, ou seja, eles se identificam com os atenienses e comparam os americanos aos romanos, complexo este que se funda na afirmação de que ‘o vencido é superior ao vencedor, e o vencedor se nutre do espírito do vencido’. Os americanos têm a quantidade, mas nós temos a qualidade; eles têm o poderio, nós temos o refinamento; eles têm a riqueza, nós temos a cultura; eles têm o futuro, mas não tem passado. São alguns temas sempre retomados por um nacionalismo enfurecido.

Para evitar esse gênero de simplificação, faz-se necessária uma abordagem intercultural. ...Claude Lévi-Strauss: ‘Toda cultura pode ser considerada como um conjunto de sistemas simbólicos cujo primeiro nível é ocupado pela linguagem, as regras matrimoniais, as relações econômicas, a arte, a ciência e a religião. Todos esses sistemas visam expressar certos aspectos da realidade física e da realidade social, e sobretudo as relações que esses dois tipos de realidade mantêm entre si e que os sistemas simbólicos mantêm entre eles’.” (p. 530 e 532).

O filme, “Dançando no Escuro”, traz dois representantes de sociedades estatizadas. Bill, o policial e guardião da ordem nos estados Unidos da América. E Selma, imigrante e operária, vinda da extinta Tchecoslováquia.Dois destinos que irão se cruzar neste drama de Lars Von Tier: Dançando no Escuro.

Selma foi para os EUA para trabalhar, juntar dinheiro e pagar a operação para Gene, seu filho, que também herdou a doença que leva à cegueira. Mal que está presente em sua genética.

Ela diz que quando sente que a pressão está demais ela faz “algumas brincadeiras”. Ou seja, ela se imagina dançando e cantando em musicais. Enfim, ela reinventa sua vida (Cecília Meireles – ‘a vida, a vida só é possível sendo reinventada’). Este relato é feito quando Bill a visita e conta que está sem dinheiro e com as prestações da casa atrasadas e que Linda é uma consumista compulsiva (crítica de Lars à sociedade consumista dos EUA e do mundo capitalista em geral – critica também ao romantismo, ou seja, Bill amava Linda mais do que tudo e estava disposto à canalhice e ao latrocínio por saber que Linda estava com ele só pelo bem estar que seu dinheiro herdado – e agora perdido – lhe proporcionava).

O segredo de Selma – relatado a Bill, como troca de confidências - é que iria ficar cega, e sabia disto desde criança. Sabia também que sua prole herdaria o problema, mas mesmo assim quis ter um filho por puro capricho feminino de se sentir na obrigação de ser mãe.

Cega, ou quase lá, sua audição é desenvolvida e para ela todo barulho torna-se música. Ela transforma os ruídos e sons em orquestra para seus sonhos de ser a estrela de musicais com seus sapateados.

Bill em outro momento, sempre aparentemente generoso, pede dinheiro emprestado à Selma por saber que ela dispunha de uma quantia que guardava para pagar a operação ocular de Gene. Cirurgia que evitaria o desenvolvimento da cegueira.

Selma recusa e diz que o dinheiro era para aquela única finalidade.

Bill a visita novamente em seu lar. Despedem-se, mas Bill, sabedor de sua cegueira, não vai embora. Silente, camufla-se para descobrir onde sua inquilina guardava a soma do dinheiro. Rouba, portanto.

Selma ao dar pela falta sabe que o ladrão só pode ser Bill. Aí os êxtases e as desgraças se instalam.

Lars nos blinda então com os sonhos de Selma, seus musicais fantasiosos, e nos choca, nos machucam com outro extremo: a perversidade de Bill e Linda, a injustiça daquela sociedade que é vil com os mais fracos, a cegueira da falsa justiça, a incompreensão dos estadunidenses com os imigrantes, a crueldade da sentença de morte, com a morte torpe (Que sociedade é esta que desacredita o humano e pune com a morte? Que se iguala ao bruto criminoso sentenciando o fim da vida? Não importa, o que importante é o teatro da execução. O cumprimento da Ordem Estatal. E é uma sociedade que se diz ultrapassar o desenvolvimento humano com seu cristianismo hipocrizante e facilitador de seu imperialismo).

O ambiente de trabalho, quando ela se põe a ‘sonhar’ nos remete aos “Tempos Modernos” de Chaplin: tudo é máquina e maquinicamente os operários são transformados. O que importa é a produção e não o bem estar social dos trabalhadores. A fábrica é seletiva assim como a sociedade capitalista é: os menos dotados não tem vez e deverão ser suplantados pelos bons. Seleção natural darwiniana no meio social, é a idéia do capitalismo selvagem. Que vença os bons. O defeituoso fisicamente é como o produto mal acabado. O lixo espera estes e a morte, o humano inapto.

A seleção extrapola a fábrica e atinge a arte. Selma fazia parte de um grupo que apresentaria uma peça teatral. Por ser quase cega, e não podia ler o roteiro e não tem firmeza de seu lugar no palco – ainda que saiba sapatear, dançar e cantar – ela se vê substituída e levada à desistência.

Nos momentos difíceis, além dos surtos fantasiosos, para Selma – para nós, espectadores, são mágicos, poéticos, artísticos – ela tem Kathy e Jeff, amiga e enamorado, seus anjos da guarda.

Para Selma, na vida o importante é a cura para seu filho e os ruídos, barulhos de tudo e de todos, que ela transforma em música e canto. Não importa a beleza visual do mundo. O som para ela é a maior estética da vida. O mundo, externo e interno, é a música que só ela consegue captar.

O filme é um convite para avaliarmos as mentiras de Bill e do mundo alheio e nossas fantasias, e as verdades de Selma, seus sonhos e nossas visões de mundo. Faz-nos enxergar, através dos olhares de Lars Von Trier, a ética da diversidade da sociedade humana.

É irrelevante dizer que as músicas, canções e danças que Selma nos presenteia são antes de tudo artes de Trier e sua equipe compactada na sua cinematografia. Todos e tudo – matéria, pessoas e obra de arte – transformados em obra-prima uns pelos outros: atores, diretores, produtores.

Extremos. Sempre extremos neste filme. E como cena final, o canto melancólico de Selma e o cumprimento súbito de sua sentença.

É lars Von Trier um sofredor do transtorno bipolar? Opa! Desculpem-me os mais entendidos e para ficar menos chocante: É Lars Von Trier um homem com transtorno de humor? É isto que ele quer declarar com cenas opostas: doces sonhos / cruel realidade, poesia / brutalidade, vida / morte; canto / condenação?

Há de ser este filme revisto diversas vezes para que não seja simplesmente assistido, mas sim para que se façam múltiplas leituras individuais (cada um interpretando diversas vezes) e coletivas (grupos trocando diversidades de impressões).

Só assim que o estado de estupefação que ele deixa à primeira vez será suplantado e digerido.

Será devidamente entendido o que Lars Von Trier mandou como recado com a sentença no fim de “Dançando no Escuro” e que aqui reproduzimos abaixo?

“Dizem que á a última canção, mas eles não nos conhecem. Só será a última canção se deixarmos que seja”.

Para esta mente, para a mentalidade própria de Trier, quem ou o que são eles?

Para finalizarmos,

“A educação americana visa inculcar na criança o desejo de conquistar sua autonomia, desenvolvendo todas as suas potencialidades e ao mesmo tempo respeitando as normas (o que gera um certo conformismo). Desde cedo, fazem-lhe entender que terá de deixar a família na adolescência, pois sozinhos poderá, nessa perspectiva bastante voluntarista, ‘se tornar ele mesmo, dar vida a si próprio’, segundo a expressão de R. Bellah. Tudo é e deve ser possível. Não se trata de rejeitar ou renegar a família, e sim de se desprender do passado e não se imobilizar em suas raízes. Cabe tomar a iniciativa, correr o risco, mas se mantendo “popular” entre seus pares, de ganhar conquistando a estima dos que foram vencidos pela própria pessoa ou por outros. E isso, afirmam, é possível para todos, o que explica que os “excluídos” do Bronx ou de outros lugares guardem alguma esperança. As estruturas sociais são sentidas como fluidas, e não viscosas.

Por ser o americano um homem livre e responsável, o Self-help [iniciativa própria] assume uma importância desconhecida.... (p. 575).

Barbacena, MG, 01/03/2011.

Leonardo Lisbôa
Enviado por Leonardo Lisbôa em 01/07/2011
Código do texto: T3068671
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