CINEMA MARGINAL - O DEBOCHE DO LIXO PARA MATAR A FOME

Cinema Marginal - O deboche do lixo para matar a fome

(Artigo escrito em parceria com Roberto Maty para o curso de Prod. Áudio e Vídeo, da ETEC Jornalista Roberto Marinho, São Paulo, SP)

Uma nova ordem estética

Década de 1960: a ditadura militar instalada no Brasil não permite qualquer tipo de liberdade de expressão. Arte e cultura, cerceadas, subsistem nesse cenário político desolador, onde a “oficialidade” cria a falsa noção da experenciação artística pelo viés do entretenimento. A novela televisiva e a música romântica representam bem esse período, numa lógica midiática imediatista, do poder que domina pela acefalia da cultura de massa.

Entretanto, como a atividade cultural é insurgente, questionadora e cética, alguns insatisfeitos se unem à procura de novos canais de expressão e formas narrativas. Surgem assim diversos movimentos contraculturais, como a Tropicália e o Teatro Oficina, que influenciam cultural e artisticamente toda a sociedade.

Os cineastas insatisfeitos do mesmo período, críticos da condição do país e da lógica cinematográfica instaurada, se ligam dentro um movimento de grande representatividade, o Cinema Novo. Alguns, todavia, questionam também essas narrativas “afetadas” e oníricas, assim como os modelos de produção cinematográfica do país. Procuram outras possibilidades estéticas, éticas e produtivas de como fazer um filme. São esses questionamentos que darão origem àquele movimento que na historiografia do cinema brasileiro ficou conhecido como Cinema Marginal.

Inspirados no filme “À margem”, de Ozualdo Candeias (1967), esses cineastas observam a necessidade de suas histórias serem entendidas por todos, pois consideram as produções do Cinema Novo intelectualizadas demais para atingir o grande público. Gravado às margens da Marginal Tietê (em São Paulo) e em outros lugares que mostram essa cidade, o filme de Candeias retrata o lixo urbano e as pessoas à margem da sociedade. O sistema de consumo é mostrado grotesca e ironicamente numa narrativa dividida em pequenas histórias. Se o Cinema Novo trouxera a estética da fome, o Cinema Marginal trazia a do lixo.

A discussão crítica entre os Cinemas Novo e Marginal é constante, pois os segundos se opuseram ao modus operandi tanto da produção, quanto da narrativa e de mercado defendidos sustentados pelo movimento novista. Também ignoram a censura e o estado, enquanto os cineastas capitaneados por Gláuber Rocha tentavam estreitar as relações estatais almejando uma cinematografia formal no país. Os “marginais” buscam outra forma de produzir, prezando o baixo custo e um discurso antiestético, onde o bem feito não é necessariamente bem vindo. Não sendo possível a ação política direta, a contestação se dá de forma sutil, diluída no deboche às vezes surreal, inserido nos enredos e tramas dos filmes.

Marginais organizados

Embora até hoje pareça, para alguns, uma anomalia prática, o Cinema Marginal propunha uma sólida organização de diretores e produtores, principalmente dos cineastas paulistas, cariocas, baianos e mineiros. São três os principais centros de produção à época: a Boca do Lixo, em São Paulo, a Boca da Fome, no Rio de Janeiro e o Inferno, em Salvador. 1968 é o ano em que o Cinema Marginal ganha força. Vários filmes são lançados, muitos são censurados, alguns sequer entram em cartaz. Um deles, todavia, faz sucesso entre o público e ganha vários prêmios em diversos festivais: “O Bandido da Luz Vermelha”, de Rogério Sganzerla.

Em torno de Sganzerla aglutina-se o movimento paulista que consegue uma boa inserção no mercado exibidor, graças à produtora Belair. Além do diretor de “O Bandido da Luz Vermelha”, também fazem parte do movimento paulista Ozualdo Candeias (que também filma “Meu Nome é Tonho” e “A Herança”), Andréa Tonacci (que idealiza “O Grande Bang Bang”) e João Silvério Trevisan (que dirige “Orgia ou O Homem que Deu Cria”).

No Rio o principal nome é Júlio Bressane, que ainda hoje faz grandes filmes. Além de “O Anjo Nasceu”, fez “Barão Olavo, o Horrível”, “Crazy Love”, “Cuidado Madame”, “A Fada do Oriente”, “A Família do Barulho”, “Lágrima Pantera”, “Memórias de um Estrangulador de Loiras”, “O Rei do Baralho” e “Matou a Família e Foi ao Cinema”, todos estes entre os anos 1969 e 1973. Outro destaque carioca é Elyseu Visconti, cujos principais filmes são “Os Monstros de Babaloo” e “O Lobisomem” e “O Terror da Meia-Noite”. Em Minas Gerais, Neville d´Almeida é o grande mentor, juntamente com Sylvio Lanna, João Batista de Andrade e Geraldo Veloso.

Muitas obras do movimento não são aceitas nos festivais. O motivo, segundo alguns dirigentes, seria a falta de condições técnicas. Com isso os marginais excluídos acabam organizando mostras paralelas. Em Brasília é criada a 1ª Mostra de Horror Nacional.

O cinema de quem faz e polemiza

“O Bandido da Luz Vermelha" estabelece um marco mas não é o único grande filme de 68. “Câncer”, de Glauber Rocha, também sai do papel, assim como “Jardim de Guerra”, de Neville d'Almeida e “Hitler no III Mundo”, de José Agripino de Paula. Mesmo antes de ser reconhecido como grande cineasta, Sganzerla já era muito cultuado como crítico de cinema do Jornal da Tarde e do Estadão. Ele e mais alguns jovens se identificam com algumas defesas do Cinema Novo e são chamados de Cinema Novíssimo (1966-1967) por alguns críticos.

Na evolução dos fatos, porém, acabam por radicalizar e caminhar na direção oposta. Isso desperta a fúria de Glauber que escreve o artigo “Udigrudi”, em que questiona o suposto ineditismo dos marginais.

As condições ideológicas da época permitem que algumas das propostas antigas sejam reavivadas de forma mais contundente, sem o freio a que foram submetidas no começo da mesma década. Há grupos armados de esquerda e as torturas físicas dos militares são denunciadas. Prega-se a contracultura, a antiestética, a rebeldia que reflete-se na efervescência do tropicalismo e da vanguarda teatral, através do Oficina. O advento da pop-art nova-iorquina completa o círculo preconizado por Duchamp.

A característica preponderante do Cinema Marginal é o uso de história em quadrinhos, propagandas, romances, meios de comunicação em massa (rádio e TV), jornalismo sensacionalista, elementos estéticos urbanos, referências às chanchadas e um certa linearidade hollywoodiana em suas obras. Seu retorno financeiro se consolida como uma característica rara no cinema brasileiro. Rogério Sganzerla faz seus dois primeiros filmes com produção quase independente e consegue um bom sucesso comercial. Com o dinheiro recebido, aplica na criação da produtora Belair juntamente com Júlio Bressane, que entra com suas finanças pessoais. Os filmes da nova empresa são responsáveis pela maior radicalização do grupo marginal, no questionamento da narrativa cinematográfica. No total, a produtora produz vários filmes entre longas e curtas. Destacam-se “Barão Olavo, o Horrível”, “Família do Barulho”, “Cuidado Madame”, “Betty Bomba”, “A Exibicionista”, “Copacabana Mon Amour”, “Sem Essa Aranha”.

Também são deste período os títulos “As Libertinas” (1969), de Reichenbach, Lima e Callegaro e “Audácia, Fúrias dos Desejos” (1970), de Reichenbach e Lima. Outros filmes também são produzidos no mesmo período.

Influência

Se os novistas utilizam a técnica da infiltração (almejando fundar uma indústria e distribuidora estatal), os marginais partem para o confronto, fazem filmes que ignoram tudo e todos. Os primeiros vinculam-se ao movimento do cinema autoral (com ecos principais na França e Itália), ao passo que o segundo grupo antecipa muitas das futuras "invenções" dos independentes americanos, amargando, porém, uma terrível solidão e um isolacionismo que é fatal para todos. Outra divergência visível é o enfoque dado aos personagens. Se os cinemanovistas procuram o arquétipo, cada qual representando a classe social à qual pertence, os marginais insinuam-se mais livres e individualizados. Se Manuel (“Deus e o Diabo”) e Fabiano (“Vidas Secas”) representam o camponês nordestino, os assassinos de “O Anjo Nasceu” ou os vagabundos de “À Margem” são apenas eles mesmos, sem subterfúgios.

Contestando costumes e rompendo com a linguagem linear, os jovens cineastas fogem da discussão sobre processos políticos e sociais. Para eles, “cinema marginal” é, antes de tudo, uma cinematografia apoiada num modelo de filme pobre. Ao retratar a situação real do país com seus deboches e ousadias, rompem com o intelectualismo do cinemanovistas para tentar encontrar o grande público. Sua base é a linguagem grotesca e erótica, sem resquícios de moralismos éticos.

Essas diferenças parecem mais pertinentes e surgem mais à vista, do que as possíveis (ainda que bem plausíveis) afinidades técnicas entre as duas escolas: plano-sequência, câmera na mão etc. Ao contrário dos novistas, que tinham com o precursor e padrinho Nelson Pereira dos Santos, com a mesma idade e origem intelectual, os marginais são de várias faixas etárias e classes sociais. Vão desde um cinquentão proletário (Candeias), a jovens burgueses rebelados (Bressane), passando por escritores (Agrippino) e diretores de teatro (Álvaro Guimarães).

Hoje, quando ambos os movimentos se dissolvem pela ação corrosiva do tempo, restam os filmes. E suas influências, não mais as que receberam, mas as que exerceram nos cineastas que chegam depois. Por outro lado, os ex-marginais – ainda, e sempre, marginalizados – e alguns de seus descendentes continuam pregando, e fazendo um cinema radical de muita artesania.

O fim do movimento se dá de forma trágica. No início dos anos 1970, a tensão política obriga uma boa parte deles a emigrar para a Europa. Para o exterior vão Julio, Rogério, Neville e Andréa, entre outros. Quando Neville retorna ao Brasil, sua reestréia nos cinemas brasileiros rompe com o passado através de seu longa “A Dama do Lotação”, 5ª maior bilheteria da história do cinema nacional, com quase 7 milhões espectadores. Ao final da mesma década, os filmes marginalizados tornam-se cults e vários festivais são criados para divulgar essas películas: a Semana do Cinema Maldito em Ipanema, a Semana do Cinema Marginalizado Brasileiro, a Mostra do Cinema e o Ciclo de Cinema Bandido.

Além da linguagem cinematográfica subversiva e um amor ao cinema que vai além do ativismo político direto, os marginais professam influências óbvias de Godard (“Pierrot Le Fou”, “A Chinesa” e “Weekend”); dos neoexpressionistas americanos (Welles, Fuller, Aldrich, Kubrick); e do humor das chanchadas (daí o deboche, que passou longe do Cinema Novo, pelo menos no anterior a Macunaíma). Junte-se a esse caldeirão a literatura de Oswald de Andrade, Jorge Mautner, José Agrippino; a arte conceitual de Hélio Oiticica; a música popular desde Mário Reis à Tropicália, passando por Jimi Hendrix; e o teatro de Zé Celso Martinez Correia (em alguns cineastas influência mais evidente que o próprio Glauber).

O Cinema Marginal apresenta diferenças estéticas substantivas entre seus práticos. Observáveis até com certa facilidade se comparadas as obras viscerais de Sganzerla e Trevisan, com a filmografia zen de Bressane e Candeias, notabilizam, contudo, uma congruência paradoxal: todos insistem no tradicional 90 minutos, sem ousar nos formatos mais longos ou curtos, como fizeram os rebeldes novaiorquinos.

Fontes:

http://www.infoescola.com/artes/cinema-marginal/ <Acesso em 17/09/2012>

http://tropicalia.com.br/ruidos-pulsativos/marginalia/cinema-marginal <Acesso em 18/09/2012>

http://www.overmundo.com.br/overblog/a-emergencia-do-cinema-marginal <Acesso em 17/09/2012>