Totalmente independente (publicado originalmente em 19/3/2013)

Um mundo ao qual não estamos acostumados. Ou, se estamos, nos recusamos a ver, porque apreciar tal colorido é depreciativo demais. Porém, é cinema. Cinema com ‘C’ maiúsculo. Uma pitada de neorrealismo italiano, transportado para uma comunidade miserável dos Estados Unidos, onde lá estão Wink (Dwight Henry) e a filha Hushpuppy (Quvenzhané Wallis). Mergulhados no ostracismo da pobreza, ele tem uma doença terminal e teima em não se tratar, e ela sonha com a mãe, enquanto prepara uma sopa de bichos sem saber ao menos pegar numa colher. Este é o cenário de ‘Indomável Sonhadora’ (2012), filme independente muito bem realizado, bem dirigido e com atuações de se tirar o chapéu. Indicado a quatro Oscars (filme, diretor, atriz e roteiro) teve o ‘azar’ de contar nesta cesta com belos trabalhos amontoados (‘Lincoln’, ‘Amor’ e ‘O Lado Bom da Vida’). Mas foi aplaudido bem.

‘Indomável Sonhadora’ pode ser comparado com ‘A Feiticeira da Guerra’ (2012), filme feito no Congo, com produção canadense, um dos concorrentes a melhor longa-metragem estrangeiro. É a somatória de fatores que juntam os dois. Parecem parentes próximos. Filmes-irmãos, talvez. E nesta aproximação, as realizações transformam belas histórias em emoções à flor da pele. Quvenzhané, por exemplo, é um achado. Esta garota de nome difícil tinha seis anos (seis!) quando rodou o filme. Benh Zeitlin, o diretor, arrancou dela a estrondosa maneira de atuar. Numa sequência na qual briga com o pai e esmurra o peito dele, fazendo com que Wink caia de dor, é das cenas mais chocantes e tocantes da sétima arte, em se tratando de cinemão puro, o clássico. Vittorio DeSica suspiraria se a assistisse.

Na história, além de ter de lidar com esses problemas, pai e filha enfrentam uma tempestade na comunidade em que vivem. Vem a inundação, a destruição dos lares, e é necessário fazer algo, ou a desgraça será completa. Wink tem a ideia: explodir a barragem de uma represa próxima para que a água saia das ruas. Enquanto isso, ele e Hushpuppy passam dias num barquinho. A menina aprende a caçar peixes e a pensar na sua existência. Nada é fácil para a dupla e alguns amigos a ajuda. São os vizinhos igualmente pobres, com as casas caindo aos pedaços. É o embate entre almas, todas unidas.

Li artigos acerca de ‘Indomável Sonhadora’ e notei pontos diferentes. O roteiro, baseado em uma peça de teatro, não delineia a época em que passa o drama. Seria o futuro, onde o aquecimento global já atingiu ápices estratosféricos? Qual é a representatividade dos javalis gigantes, naquele jogo face a face com Hushpuppy (aliás, outro momento grande do longa)? O script mistura ficção, fantasia Disney e realidade empedernida. São diálogos duros, francos, mastodônticos, do tamanho ou maior do que os tais javalis. ‘Indomável Sonhadora’ representa alternativa à sétima arte presa à tradição vil de violência, tiros, efeitos especiais e os fracos, mas de bilheteria. Aqui, o segundo plano é o primeiro.

‘A Feiticeira de Guerra’ é um pedacinho mais profissional, mas eu não posso menosprezar ‘A Indomável Sonhadora’ por este fim. Rachel Mwanza, protagonista de ‘A Feiticeira de Guerra’, pode ser comparada a Quvenzhané Wallis? Claro que sim, mesmo porque ambas, apesar de inexperientes, por serem jovens, são muito bem dirigidas (no caso de Rachel, o diretor é Kim Nguyen). Os elencos, de igual forma, são equilibrados, com brutalidade na interpretação. Porém, ‘A Indomável Sonhadora’ vence minimamente no carisma de Quvenzhané. Não fosse ela, suponho que o filme não decolaria.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 20/03/2013
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