A ironia do espelho (publicado originalmente em 11/11/2014)

Havia uma época, bela até, quando o cinema era engajado e feito de forma manual, artesanal praticamente. Um tempo em que o computador era sonho maluco, efeito especial se baseava em tolas insinuações e o mote central se resumia à palavra do personagem, às suas reações em closes perfeitos e ao silêncio, as pausas tchekhovianas. Este período de ouro se acabou, mas não totalmente. Cheguei à cruel conclusão: o efeito visual matou a sétima arte, ao invés de beneficiar. O avesso disto, e deveria ser o regular, são, por exemplo, os filmes rodados por uma trupe de jovens daqui da cidade, em uma espécie de cinessérie, na verdade, é websérie (é veiculado somente no YouTube): ‘Ofícios de Jacareí’.

A ideia é fácil: trazer à tona algumas profissões protagonistas do passado e esquecidas neste presente. São seis documentários em curta-metragem – têm menos de dez minutos cada um – onde a expectativa vence o cotidiano. Ali, momentos banais, como a chegada dum alfaiate ao seu trabalho, são retratados com delicadeza e comoção. É dada a devida atenção a um sujeito que durante sua vida toda se dedicou a uma mesma função. E agora, em pleno século XXI, ele vê o mundo não escanteá-lo, mas apertá-lo em diversas outras atividades afins. E quem hoje em dia necessita daquele homem que sabe costurar, fazer barra etc? Muitos. Todavia, não os vemos por aí. E ‘Ofícios de Jacareí’ os exibe.

Profissões como consertador de rádio (!) e sapateiro estão entre as captadas pelas sensíveis e claras lentes dos cineastas envolvidos. Em um planeta do descartável, a arte praticada por eles pode ser, e tende a ser, das melhores. Ao fazer emergir estas pessoas especiais, curiosamente, o ‘Ofícios de Jacareí’ comete a ironia do espelho: filmam carreiras entre aspas decadentes, mas, na verdade, ainda na ‘crista da onda’, com o ganha-pão sincero ali; e eles, cineastas, fazem isto cultuando o cinema dito ‘do passado’, ao qual citei no começo da coluna, porém, que tinha de ser o mais importante. A sétima arte moldada por eles equivale às ocupações a que se prestam. Coincidências em um tempo sombrio.

Hoje, dia 11, às 20 horas, estreia o primeiro episódio. Tanto no YouTube como no Facebook o canal começa com ‘Santos – Ofício Alfaiate’. Não é escusado afirmar que a qualidade do material é de alta categoria e que dá a impressão de que a produção poderia estender a duração das histórias para, no mínimo, uns 15, 20 minutos. Esse gosto de ‘quero mais’ é evidenciado pelos ‘extras’ do produto, e o making off é um deles. A batalha para encontrar estes personagens levou tempo. E o resultado final é excepcional. Cinema de primeira grandeza. De nada ‘fora’ precisa para se consolidar.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 11/11/2014
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