A história do cinema é pródiga de fatos que deslocaram o objetivo de sua formação, cujas composições podem ser vistas por diferentes patamares. A tentativa de se realizar filmes pode pressupor diversos dilemas entre os que conseguem e os que sentam em frente à tela, contrassenso apresentado quando se tenta firmar em qual categoria este se encontra apesar de, desde o começo do século XX, já vir sendo tratado como sétima arte. O modo como o púbico encara o cinema em relação a outros tipos de manifestações culturais, a exemplo do museu, mudou. Mesmo com novos meios em que o cinema decorria, houve, a partir dos anos 1960, o desenvolvimento da “política do autor”[1], cujo objetivo era abstrair a concepção artística e a contemplação da massa. No texto O paradoxo da sétima arte, Jacques Rancière propunha a ideia de derrubar a barreira entre a cultura popular e a criação artística em si com o intuito de conceituar o cinema como um espetáculo que possa produzir qualidade a fim de abrir espaço para a crítica no meio artístico.
O pensamento do desenvolvimento do cinema se poria na constituição de um parâmetro conceitual sobre a visibilidade posta em prática na formação da arte, assim como o surgimento de seu público-alvo. A distinção entre os produtos típicos da cultura de massa e da camada erudita designaria o modo como e para que o cinema fosse visto. O intuito de se colocar as produções cinematográficas no mesmo ângulo de outras manifestações culturais é a tentativa de se igualar a chamada arte de museu, por exemplo, e aquela vertente popular. Segundo Raymond Williams, o cinema poderia fazer o indivíduo relativizar mais seu pensamento e, portanto, desenvolver um mundo moderno, “baseado na ciência e na tecnologia, fundamentalmente aberto e móvel e, deste modo, não apenas popular, mas também dinâmico. Talvez mesmo uma mídia revolucionária”[2]. Na escrita literária, por exemplo, a distinção entre o culto (erudito) e o popular partia do princípio de que a literatura estivesse a par de qualquer contexto artístico. O cinema poderia propiciar o mesmo ideal de outras formas de cultura – como a literatura e o museu – por também desenvolver a capacidade mental e moral de muitas pessoas e cuja natureza também proporciona a difusão do conhecimento e da civilidade. O filósofo afirma no seu texto:
Que um espetáculo seja ou não considerado arte não depende exclusivamente daqueles que o propõem ou da autoridade daqueles que o impõem [...] A ideia dominante até então era a de que a sala escura estava afeita ao divertimento, e, o museu ou a galeria, à arte[3].
O que se tentava descobrir – como Rancière mostra - é o que está no cerne da estrutura cultural em qualquer sociedade. Todo e qualquer esclarecimento artístico tenta promover o culto ao conhecimento através da razão, como havia no imaginário iluminista. Assim, o cinema poderia ser visto como um lugar para simples diversão ou para crítica aguçada de seus telespectadores ou vice-versa. Algo que também pode ocorrer nos museus: o visitante de outrora os visitava com o desejo de absorver alguma informação ou firmava o anseio em apenas distrair-se como se estivesse em um parque de diversões.
Na dupla estrutura da cultura, pode haver a construção da crítica tanto para o culto quanto para o popular, estabelecendo as tendências a algum estilo, independente de ocorrer ou não um tipo de empecilho para a difusão cultural. Exemplo disso ocorreu no Brasil depois do golpe de 1964 que derrubou o governo democrático e deu início à Ditadura militar, época em que o país conseguiu se fortalecer sob o aspecto sociocultural. Esse fato fez surgir novos intelectuais modernizantes que possibilitaram a abertura de pensamentos contemporâneos no critério cultural.
A situação social brasileira na década de 60 permitiu o surgimento de novos conceitos como o do Cinema Novo que tinha como lema “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”[4], cujo objetivo era salientar o conceito dos fatos e, a partir deles, refletir sobre o contexto social em que o país se encontrava através de uma linguagem coloquial e própria do período vivido. Com o fim do Cinema Novo, devido à forte censura e opressão dos militares, surgiu o Cinema Marginal, que, por não possuir um nexo interno, não foi reconhecido como movimento, mas estabeleceu-se como um ritual relativo à contracultura, fazendo críticas à sociedade de consumo e da comunicação em massa, além da presença de elementos cinematográficos do exterior, principalmente norte-americanos. Além de utilizar os vestígios da memória e determinadas construções narrativas, o cinema tende a combinar fatores que levem os espectadores a vivenciar determinadas críticas sobre assuntos que reverenciem os termos da razão, seja na forma culta ou popular. A arte cinematográfica tenta partir de critérios que a tornem uma prática cultural, social e afetiva. O cinema pode, de fato, postular questões referentes a conceitos de natureza política, filosófica e social como qualquer outro tipo de manifestação artística. No entanto, as regras sobre o objetivo de a pessoa ir ao cinema ou produzi-lo podem ser diferentes. Pode-se acreditar tanto no ato da diversão quanto na construção de um espaço de pura crítica e dever.
A questão em si gira em torno da identidade daquele que utiliza o cinema com algum objetivo. O indivíduo possui uma identidade social, que descreve alguma atribuição simultânea dada a ele, e a pessoal, que é uma narrativa dentro de valores combinados em fatores diferentes. Logo, segundo Racière, o cinema pode usar um plano de abertura para a excelência artística e configurar-se como a crítica utilizada em outros meios.
O cinema pode, claramente, partir de manifestações de pensamento através de métodos reflexivos os quais, hoje, passam por técnicas de modernização, direcionados tanto ao mercado quanto para pura análise sociopolítica. Percebe-se que a sétima arte pode ser direcionada a qualquer categoria social e com qualquer objetivo, seja diversão ou crítica. Assim afirma Orson Welles: “O cinema não tem fronteiras nem limites. É um fluxo constante de sonho”.



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[1] RANCIÈRE, Jacques. O paradoxo da sétima arte. Folha de São Paulo, São Paulo. 01 maio 2005. Disponível em: . Acesso em: 08 jun 2013. [2] WILLIAMS, Raymond. Política do Modernismo. Tradução André Glaser. São Paulo: Editora UNESP, 2011, p.109. [3] RANCIÈRE, Jacques. O paradoxo da sétima arte. Folha de São Paulo, São Paulo. 01 maio 2005. Disponível em: . Acesso em: 08 jun 2013. [4] CINEMA Novo. Disponível em: < http://www.infoescola.com/cinema/novo/>. Acesso em: 08 jun 2013.
Ricardo Miranda Filho
Enviado por Ricardo Miranda Filho em 11/03/2015
Reeditado em 11/03/2015
Código do texto: T5165888
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