Ignorância como virtude
 
      O filme Birdman do diretor Alejandro Gonzáles Iñárritu, 2015, coloca uma questão principal: em que poderia a ignorância ser uma virtude?
      O que resta a fazer quando um homem medíocre, entenda-se ignorante, almeja o sucesso e, por não ser talentoso, inteligente, carismático, competitivo, dono dos meios de produção, da terra, ou qual seja a fórmula dos valores morais vigentes de sua época, apenas contar com a sorte? O tema da virtú x fortuna é recorrente na tradição filosófica racionalista ocidental. Nesta, quanto mais a razão puder sobrepujar o azar, outro nome do mal acaso, mais fama e fortuna duradoura se obterá. O filme de Iñárritu parece deixar margem de esperança para o contrário. O acaso seria um bom protetor e direcionador da boa sorte, inclusive, em situações agravadas por caos e doenças como é o caso do personagem de Keaton. A questão é saber separar o que é verdadeiro nesta hipótese do que é manipulação ideológica de estúdio de Hollywoood, a saber, que é interessante, no interior de um sistema classista, que as massas acreditem que se ficar em uma posição de espera e submissão o acaso as protegerá, como cantado por aqui por uma banda nacional. Na linha de que o antinatural pode casualmente acontecer, é interessante observar como a figura da gravidade vem sendo desafiada de inúmeras formas, seja pela razão ou pela paixão, tanto em filmes de animação quanto de não animação, no cinema atual. Tome-se,por exemplo Horton e o mundo dos quem, 2008, do nacional As aventuras do avião vermelho, 2012, ou Os pinguins de Madagascar 3, 2015. Neste, abusa-se do acaso como proposta de resolução de problemas.
 

     Seria o acaso uma espécie de consciência política onipresente capaz de promover uma distribuição justa tanto dos males quanto, e principalmente dos bens, sobretudo daqueles produzidos pelas mãos do próprio homem? Longe disso, a defesa de sua soberania parece apontar mais para o projeto de implantar na face da terra os princípios morais que legitimam a servidão voluntária absoluta. Projetado para os espaços vazios, sua gênese abrigaria no interior deste receptáculo o grau zero de sua legislação universal. Mas, como se pode pensar nesta hipótese de uma força controladora de tudo se esta força não controla nem a si mesma? Assim, claro que no nível atemporal o devir caótico rege tudo o que há, mas, na provisoriedade do mundo sublunar um pouco de razão não deveria prevalecer? 
     Existe certa doçura em constatar que o acaso pode de fato produzir muitas coisas boas que nos levará serenamente às nossas sonhadas conquistas, mas, voltemos à realidade, ele pode ser tomado como conteúdo formatador de opinião e indutor de conformação. Mesmo o saber não sabido precisa advir para ser transformado em algo que não exerça uma sobredeterminação heteronôma. Se a razão era a esperança de que algo pudesse ser esperado a partir das possibilidades de cálculo, agora, no filme de Iñárritu é o acaso que pode determinar de forma inesperada que o inesperado aconteça. O ponto é: não espere, não sofra, pois a qualquer momento, de forma inesperada aquilo que você deseja, mas, não espera, virá. Quem não diria que seria muito bom ganhar alguns milhões na loteria! Contudo, poderia existir forma mais abjeta de colocar um sujeito em relação com o devir? Que autenticidade poderia existir numa vida se ao final esta constatasse que tudo o que lhe aconteceu, de bom ou ruim, se deu por mera obra do acaso? A humanidade já rechaçou providência similar ao enterrar deus. Ícaro sonhou voar com asas de cera, deu no que deu. De volta à terra. O solo sob nossos pés, e um desejo sustentado em ato. Arriscar tudo, não seria esta a melhor opção?
     No filme, o acaso parece ser uma mão invisível que vai levando a todos ao pior e ao melhor. Seletivo, o filme reduz ou elimina as inúmeras tentativas e erros que a ação do acaso exige para ser bem sucedido. A vida real não faz isto. A realidade impõe que a razão esteja no controle para evitar a intromissão aleatória e fatal do azar. O que pode a razão contra os infortúnios do acaso? Pergunta Maquiavel em O Príncipe. Se ao menos a metade já estamos no lucro. O tema lembra o livro The Dice Man, de Luke Rhinehart. Nele, um homem entediado vai até as últimas consequências ao tomar o acaso como diretor de sua vida. O final é pessimista. Num mundo onde as cartas estão marcadas e só os mais fortes sobrevivem, restaria uma saída: o consolo aos ateus de que se não há um Deus que olha por nós, como acreditam, há o jogo infinito do devir agora usinado, empacotado e colocado a nosso favor. Para que você suporte a desesperança da sua vida, o cinema pode conseguir e lhe conceder que a cidade em que habitas se transforme em uma cena assim. Doravante, não há com o que se preocupar. Invista no seu delírio e ele, contrariando a gravidade, se encarregará de te levar às alturas, mesmo que no solo de algum beco sujo e frio do real o seu corpo estatelado reste se decompondo após uma queda fatal.    
SP 26/01/2015