Cine Culturix

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De tempos em tempos, a título não sei de que, francamente, sobe certa vontade de desfiar raciocínios acerca de produções cinematográficas e afins. Talvez seja um exercício de consonância. "Big Little Lies”, seriado norte americano de 2017, sete episódios, encerra em si mesmo e digo isso pois vão lançar uma segunda temporada, mas a primeira, vou te contar, pelo andar da carruagem da produção artística nacional desse segmento, dentro de 100 anos conseguiremos, se tanto, produzir algo similar.

E olhe, a questão não reside simplesmente na abundância ou escassez de talento, técnica, profissionalismo, recursos… O problema é que nos falta maturidade para realizar um trabalho desses.

Vi um sujeito outro dia escrever o seguinte: No Brasil, qualquer demonstração real de cultura é no mínimo ignorada ou tachada de conservadora, reacionária, retrógrada ou elitista.

Cinema da gema, a meu ver, embute o seguinte algoritmo: modelo de situação de vida. Daí por diante fica a critério dos criadores a paleta que pode oscilar do bom gosto a escatologia. Esse último anda sendo explorado sem dó nem piedade pelos caliginosos de vigia.

"Big Little Lies” é um bom exemplo do algoritmo citado. Mostra o dia a dia de alguns casais nas imediações de Monterey (Califórnia), e para o presente texto pouco importa a amarração da trama que tem início com um suposto assassinato, suposto a princípio, mas antes a interação deles tanto entre si quanto com a vida em geral. É um crochê bem urdido com atuações impecáveis de Nicole Kidman, Reese Witherspoon, etc.

O que salta a vista em termos de comparação, além da infantilidade absurdamente presente nos trabalhos pátrios, repousa no fator dignidade. Desculpe dizer, caro conterrâneo, nesse momento somos um país tiranizado por loucos e assassinos, um povo ludibriado por mentiras oficiais ininterruptas e sugado por impostos insanos, fatores que nos roubam a dignidade, pode esbravejar quanto quiser, saiba porém que desmoralização e desumanização são ferramentas importantes seja na guerra psicológica, seja na tortura intencional. Tipo de mecanismos desenhados para enfraquecer pessoas.

Outro modelo de situação de vida maduro, “Nelyubov" ("Sem amor"), do russo Andrey Zvyagintsev, lançado no Brasil em fevereiro do ano passado, exibe uma Rússia capciosa através da história de um menino de 12 anos que desaparece e a saga dos pais na tentativa de encontrá-lo.

De Ortega y Gasset: Nunca ninguém escreveu um livro que explicasse satisfatoriamente por que alguém fez alguma coisa.

Vale o mesmo para o cinema. Zvyagintsev mostra a carência do país em local 100 quilômetros distante de Moscou, cidades sem nome, coisa que parece ter sido comum no passado, conjuntos habitacionais cinzentos, imensos, polícia não funciona, voluntários funcionam pelo menos no quesito boa vontade, a contemporaneidade ali é levemente descortinada através dos personagens enfocados. O título da obra - irretocável.

Do mesmo ano, "The Florida Project”("Projeto Flórida”), dirigido por Sean Baker, seria o avesso do trabalho russo. História de uma mãe e de uma filha que moram numa espelunca, ponto. A atriz que faz a mãe, Bria Vinaite, esbanja um profissionalismo de ponta no papel de uma “mina" na casa dos 25, tatuada da cabeça aos pés, cafajeste, ou se preferir um tanto rude, aliás é possível construir o que você quiser nesta personagem, já passou pela cadeia, conhece substâncias ilegais, patati patatá, porém, o amor que ela manifesta para essa filha se iguala aqueles do tamanho do mundo. Eu pelo menos vi assim. Há quem discorde.

Onde não achei discordância até agora foi sobre "Big Little Lies”. Quem viu, gostou.

Esses seriados da HBO de um fôlego só, ou seja, que não se estendem por várias temporadas, tem a princípio uma equação feita para te cozinhar durante um tempo e na vigésima terceira hora acontece a conclusão com farta dose de inteligência. Isso equivale a respeito por quem está assistindo.

Caso do "The Night Of”, co-dirigido e co-escrito pelo craque Steven Zaillian. Apesar de estar na praia “policial”, trata-se de uma ensaio sobre a inocência. John Turturro brilha como o rábula com problemas dermatológicos.

Agora, verdade seja dita, durante o fugaz exercício de critério por onde enveredamos, figura uma latente interseção em todos os personagens inscritos nas obras expostas acima - pessoas corriqueiras, todas elas, sem exceção. De certa forma, o sonho de Chesterton, "A coisa mais extraordinária que há no mundo é um homem comum, a sua mulher comum e os seus filhos comuns".

Anos atrás, também em série, só que desta feita assinada pelo Aaron Sorkin, ("The News Room”), há uma fala da Jane Fonda, quando os produtores do programa fictício choramingam para ela: oh, nós perdemos a credibilidade. Ela retruca, com aquela entonação energética que lhe é caraterística, algo que vale para todos nós: - So, get it back!
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 16/03/2019
Reeditado em 05/06/2020
Código do texto: T6599232
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