O Coringa e o mito de Sísifo

Para o escritor e filosofo Albert Camus, a vida dos homens era tal como o mito de Sísifo: uma rotina diária, sem sentido próprio, determinada por instâncias como a religião e o sistema capitalista de produção. No mundo administrado, levantamos de manhã, trabalhamos, comemos, reproduzimos etc., e tudo isso não faz o menor sentido, já que se refere a modos de pensar que se impõem ao indivíduo sem que ele participe da estruturação desse modo de vida, como se não tivéssemos escolhas. A vida de Arthur Fleck, segue essa dinâmica, mais num contexto muito bem especifico de uma sociedade em profundo colapso social, a historia se passa no ano de 1982, e esse panorama foi muito bem escolhido para a função narrativa, nesse contexto, os EUA atravessava uma das suas mais graves crises sociais, a guerra fria estava em seu auge, a derrota da guerra do Vietnam, a proliferação de drogas nos grandes centros urbanos, o surgimento de gangues lutando por territórios, e por fim, o capitalismo enterraria de vez o sonho hippie de paz, amor e liberdade, e é nesse contexto que Arthur Fleck, nos é apresentado.

Já no inicio do longa Arthur Fleck, que trabalha de palhaço, brinca em frente a uma loja com um cartaz que anuncia: Everything must go. Aqui a narrativa já anuncia que tudo na vida de Arthur precisa ir embora, Arthur está em processo de desconstrução, a sociedade em colapso, transtornos mentais, uma vida sem perspectivas, uma infância marcada por abusos, mas engana-se, que achar que Arthur é apenas uma vitima da sociedade, há muito mais camadas subjacentes em cena, que são reforçadas pela direção, produção, musica diegética e escolha da estética cinematográfica da Nova Hollywood, referencias de filmes desse movimento como, Taxi Driver de 1976, O Rei da Comédia de 1982, Laranja Mecânica de 1971 são usadas aqui de forma a construir todo o cenário tanto da construção do Coringa, quanto da desconstrução do Arthur Fleck.

Ao contrario de seus antecessores o ator Joaquin Pheonix teve em mãos o árduo processo de construir o personagem ao mesmo tempo que desconstrói outro, em uma cena ele tenta com muito esforço alargar um sapato de palhaço que não cabe em seus pés, Arthur é por tanto um homem que não tem lugar num mundo que insiste em rejeita-lo, Arthur é um homem invisível que anseia por atenção, lele não teve uma figura paterna, ele não tem a atenção para seu talento de comediante, não tem o amor da moça que ele deseja, não tem a atenção da terapeuta que o atendo e por fim, não tem a atenção da sociedade que o está destruindo como ser humano, Arthur ri incontrolavelmente por um distúrbio mental, mas sua vida não tem a menor graça. Sua postura é curvada, seu olhar é perdido e inseguro, como de uma criança rejeitada, ele transita por ruas sujas e caóticas e para chegar em casa tem que subir uma enorme escadaria, enquanto sobe Arthur vê sua vida se deteriorando a cada dia, como afirmava Camus em seu livro ensaio sobre O Mito de Sísifo.

Só vemos todo o esforço de um corpo tenso ao erguer a pedra enorme, empurrá-la e ajudá-la a subir uma ladeira cem vezes recomeçada; vemos o rosto crispado, a bochecha colada contra a pedra, o socorro de um ombro que recebe a massa coberta de argila, um pé que a retém, a tensão dos braços, a segurança totalmente humana de duas mãos cheias de terra. Ao final desse prolongado esforço, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem profundidade, a meta é atingida. Sísifo contempla então a pedra despencando em alguns instantes até esse mundo inferior de onde ele terá que tornar a subi-la até os picos. E volta a planície”

– Camus, O Mito de Sísifo, p.138

A medida em que Arthur se desconstrói, o Coringa vai se tornado visível, a paleta de cores do filme, antes desbotada e sem vida, agora da lugar a cores vivas e quentes, sua postura é ereta, próprio das pessoas convictas, seu olhar agora é fixo e poderoso, parecendo enxergar além das questões humanas, Arthur está morto, ele morreu assim que matou aqueles homens no metro, a sociedade, o universo em desequilíbrio e o fator aleatório finalmente destruíram Arthur Fleck, e desse mesmo caos criaram o Coringa. Enquanto desce a escadaria que exigia tanto de seu esforço para subir, ele dança, o Coringa dança porque conseguiu se libertar da simples amarra do mito que o homem estaria fadado a viver uma vida sem sentido, como representaria Sísifo.

Gothan City em meio ao caos generalizado, vê agora na figura do palhaço do crime um redentor para seus males, na ausência de referencias, as pessoas constroem seus mitos e seus anseios, mas o Coringa está acima disso, ele é produto do caos e em sua visão, o caos é perfeito.

O Coringa, não é uma história de redenção, não se trata de uma simples glamorização da violência ou uma metáfora para a luta de classes. O Coringa é antes de tudo uma narrativa feita para nos constranger e ponderar sobre os rumos de uma sociedade cada vez mais individualista e apática. É antes de tudo um excelente estudo de personagem, um roteiro muito bem construído e um filme fantástico e uma interpretação que beira a perfeição.

O filme nos apresenta um Coringa em construção, a medida em que Arthur Fleck se aprofunda em sua busca para se entender e se encaixar no mundo, mais o mundo o rejeita, e mais seus distúrbios mentais se agravam. O Coringa, o velho arqui-inimigo do Batman só é realmente apresentado nos últimos minutos do longa. Não é um filme sobre a vingança de um homem que foi abandonado pela sociedade, essa seria a forma mais simplista de afirmação, o Coringa é produto de muitos fatores convergentes, uma sociedade em profundo colapso social, uma total falência dos serviços básicos, uma infância marcada por abusos domésticos e a mais total falta de esperança.

Joe Alvez
Enviado por Joe Alvez em 17/10/2019
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