O VERDADEIRO CAMINHO DAS ÍNDIAS

Novela da Globo e filme premiado chamam a atenção para o país dos 300 milhões de deuses

A novela Caminho das Índias, atual folhetim global das oito, está despertando em todo o Brasil o interesse pela rica cultura indiana. Nação de dimensões continentais do sul da Ásia, a Índia tem uma história milenar, uma população enorme – com 1,1 bilhão de habitantes, só perde para a China em quantidade de gente – e um sistema religioso que mistura devoção, misticismo e superstições. Quando os navegantes portugueses, sob o comando do célebre Vasco da Gama, aportaram naquelas terras, na virada dos séculos 15 e 16, o hinduísmo já era a principal confissão religiosa dos indianos. Uma das mais antigas religiões do mundo, ela remonta a 1500 a.C., época em que se formou o Império hindu. Da época das grandes navegações para cá, muita coisa mudou. A Índia enfrentou o colonialismo português e britânico, assistiu a sangrentas guerras étnicas e afundou na miséria; ao mesmo tempo, conquistou sua independência, desenvolveu um forte aparato tecnológico e militar e hoje é um dos quatro grandes países emergentes do mundo. Mas a fidelidade dos indianos para com seus credos continua em alta. Atualmente, o hinduísmo tem cerca de 1 bilhão de seguidores, números que o coloca como a terceira religião com mais seguidores no planeta, atrás apenas do cristianismo e do islamismo.

“Para alguns historiadores das religiões, o hinduísmo surgiu como um grito de liberdade que estava preso na garganta dos indianos havia milhares de anos, um grito contra a opressão ariana brâmane”, explica em seu livro História das Religiões e a Dialética do Sagrado (Editora Madras) o historiador Leonardo Arantes Marques. “Havia uma necessidade popular de revalorizar o sagrado por intermédio de uma ‘nova’ hierofania, em que uma experiência mística, íntima e pessoal pudesse ser acessível a todos e não a uma classe dita privilegiada, como acontecia à religião dos brâmanes”, complementa. Outro aspecto inegável que desperta a atenção da sociedade mundial para com os indianos é sua diversidade cultural e religiosa. No país convivem centenas de povos e etnias, e o panteão hindu abriga milhões de deuses, desde a trindade suprema formada por Shiva, Vishnu e Krishna, até divindades menores, que segundo a crença local podem encarnar em ratos e até pedras.

Sociedade com costumes incompreensíveis para os ocidentais, a Índia desperta um misto de curiosidade e fascinação. No ar desde o mês de janeiro, Caminho das Índias, de Glória Perez, não foge ao lugar-comum: tramas que envolvem dinheiro e poder, triângulos amorosos, infidelidade conjugal e a eterna luta entre o bem e o mal. No centro do enredo, o drama de um amor impossível de se concretizar devido às diferenças sociais entre o casal protagonista, vivido pelos atores Márcio Garcia e Juliana Paes – eles integram castas diferentes, o que, na Índia, significa exclusão total. Impossível na vida real, mas não na ficção, o caso de amor é o fio condutor da história, que tem muitas locações ambientadas lá mesmo e o resto aqui, em meio a cenários e figurinos deslumbrantes. Afora os sofismas, a novela não deixa também de revelar algumas tradições do povo indiano, tanto que boa parte da equipe trabalhou por dias a fio em algumas importantes cidades do país, incluindo a capital Nova Déli. “É uma estranha sensação viver numa terra que mistura deuses com excrementos”, declarou o ator José de Abreu, um dos principais nomes do elenco, em seu blog. Na novela, ele interpreta um sacerdote brâmane, religioso da mais alta camada hierárquica do hinduísmo.

Cultura e espiritualidade – “Na verdade, não existe religião hinduísta; este nome foi dado pelos ingleses na época da colonização para poder definir algo que eles não tinham como classificar”, explica Erick Schulz, diretor do Instituto de Cultura Hindu Naradeva Shala, de São Paulo. A instituição promove atividades para proporcionar orientações sobre a cultura e as práticas de saúde indianas. Quanto à novela, ele acredita que o roteiro tem sido fiel às tradições do país, mas faz uma ressalva: “Alguns preconceitos que vêm sendo abordados não têm nada a ver com a religião indiana; aliás, são poucos os momentos em que a religiosidade hindu é mostrada na novela”, aponta ele que, apesar de não ser indiano nato, foi criado de acordo com as tradições e ensinamentos típicos desde os primeiros passos. “Embora eu não concorde com algumas coisas que são mostradas ou faladas na novela, procuro entender que se trata de uma ficção, onde o autor tem liberdade para escrever o que quiser”, emenda. “Nós, brasileiros, lutamos durante muitos anos pelo direito à liberdade de expressão, e conseguimos. Portanto, se nos sentirmos ofendidos podemos também ir aos meios de comunicação para desmentir o que a teledramaturgia mostra”, finaliza.

Já para os crentes, que desde a novela Duas Caras estão meio ressabiados com a Rede Globo por causa de um personagem considerado bastante caricato e não condizente com o propósito evangelístico da Igreja, Caminho das Índias parece não incomodar. Embora a trama tenha a religião e o esoterismo como pano de fundo, é muito improvável o surgimento de algum personagem que possa acirrar novamente os ânimos dos evangélicos. “As relações existentes entre cultura e espiritualidade são motivos de muitos debates suscitados atualmente e têm alcançado uma grande parcela da sociedade. A teledramaturgia brasileira, especialmente a global, não está alheia a este viés e, por características próprias, tem um compromisso comercial de explorar o assunto. Muitas vezes, autores de novelas imprimem suas próprias pré-concepções desprovidas de um maior rigor factível, criando estereótipos que não condizem com a realidade mas podem entrar no ideário nacional como reais”, opina Artur Eduardo da Silva Neto, teólogo e pastor da Igreja Evangélica Congregacional Aliança, de Recife (PE).

Apesar de não ter o hábito de ver novelas, o religioso costuma dissertar em seus artigos (www.artureduardo.com.br) temas de interesses comuns aos evangélicos. Ele ainda não descarta a possibilidade de a comunidade indiana também se sentir ofendida no decorrer de Caminho das Índias. “A forma como a novela está sendo conduzida é deficiente, porque não são levados em consideração aspectos importantes da cultura e religião daquele país, como o sistema de castas e as consequências quase insuportáveis que produz”, explica. “Além disso, a pobreza e as diferenças sociais, que estão inegavelmente ligadas às condições religiosas e culturais dos indianos, parecem ser sistematicamente omitidas”, conclui. Faz coro à opinião do pastor o escritor Leonardo Marques, que se autointitui um estudioso técnico e também não acompanha as novelas assiduamente. “Nas pouquíssimas vezes que vi algum capítulo, percebi que a trama distorce a realidade do país, principalmente no que se refere à religiosidade e castas. Eles mostram uma Índia linda e, ao mesmo tempo, preconceituosa ao extremo”, diz. “Sempre que posso, corrijo a visão da novela para as pessoas que conheço. Afinal, atualmente a luta é pela igualdade de direitos e atendimentos”, emenda.

“Mundos díspares” – Se a novela Caminho das Índias explora um lado que só parece existir nos contos de fadas, o longa-metragem Quem Quer Ser um Milionário (Slumdog Millionaire, 2008) – grande vencedor da última edição do Oscar, abocanhando nada menos do que oito prêmios, incluindo o de melhor filme, direção e roteiro – apresenta um quadro bastante diferente do mostrado na televisão, e ao que parece é o que mais se aproxima da realidade indiana. Na telona, as imagens de um país pobre, sujo e de visíveis desigualdades sociais, característica marcante do Terceiro Mundo. “O filme e a novela mostram dois mundos tão díspares que parecem não pertencer à mesma realidade”, afirmou a jornalista Nilza Rodrigues para o Jornal de Notícias, um dos mais importantes de Portugal. “O ideal seria juntar as duas realidades, pois a Índia é, sem dúvida, um país de contrastes”, completa ela, que nasceu em Moçambique mas foi criada segundo as tradições indianas.

Curiosamente, a produção cinematográfica indiana – conhecida como Bollywood, numa alusão a Hollywood, na Califórnia (EUA), meca do cinema mundial –, é a maior do mundo. São cerca de mil títulos lançados no mercado por ano, o dobro do produzido pelos Estados Unidos. O investimento – geralmente em roteiros de baixo custo – tem retorno garantido; afinal, a indústria emprega mais de 2 milhões de pessoas, fazendo do cinema a principal opção de lazer do povo: cerca de 70 milhões de telespectadores comparecem semanalmente às sessões. Claro que a maioria das películas é uma mistura bizarra de enredos açucarados, produções precárias e atores de desempenho sofrível.

Mas se os filmes nacionais são basicamente produzidos para suprir o mercado interno, cabe aos produtores estrangeiros o papel de divulgar a cultura indiana aos quatro cantos do mundo. Há exatos quinze anos, por exemplo, o londrino David Lean, com Passagem para a Índia (A Passage to India, 1994), expôs o conflito entre duas culturas – o imperialismo britânico e a tradição milenar do povo hindu. Já em Entre dois Mundos (Partition, 2007), o diretor Vic Sarin cutuca um vespeiro ao levar às telas a paixão nutrida por duas pessoas de crenças separadas por um ódio mortal – de um lado um soldado indiano, cansado dos horrores da guerra; e do outro uma muçulmana, desgarrada da família que rumou para o Paquistão. Nascido na Caxemira – região que é alvo de uma feroz disputa entre o país islâmico e a Índia, que já foram à guerra três vezes nos últimos cinqüenta anos e possuem arsenais nucleares –, Sarin conhece de perto o drama vivido por seus personagens. E agora, com Quem Quer Ser um Milionário, o inglês Danny Boyle, ao narrar a trajetória do garoto pobre e sua ascensão social relâmpago depois de participar de um programa de TV, explora também o drama das crianças pobres no país e os conflitos novamente desencadeados entre hindus e muçulmanos. Pelo que se vê, em todos os longa-metragens cujo foco é a Índia, a religião sempre aparece como um dos ingredientes mais importantes para prender o telespectador.

Seara grande – No Brasil, o número de seguidores do hinduísmo é insignificante. No Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a religião é inserida no grupo intitulado “outras religiosidades”. Por sua vez, o cristianismo marca presença na Índia desde que o apóstolo Tomé, um dos discípulos de Jesus, teria, segundo a tradição, fundado diversas igrejas na região, ainda no primeiro século da Era Cristã. “Assim como temos a verdade judaico-cristã no ocidente, que muitos acreditam ser a única que pode levar à salvação, cada país desenvolveu ao longo dos anos suas verdades milenares”, destaca Leonardo Marques. A propósito, a busca pela verdade já causou muito derramamento de sangue (ver box), principalmente na região da Caxemira. “Acima da questão religiosa está o interesse político, social e econômico”, complementa o historiador.

Quanto aos cristãos, apesar de ataques desferidos contra igrejas e constantes ameaças sofridas pelos missionários, nas últimas décadas o evangelismo tem se intensificado, sobretudo no norte do país. Mesmo assim, em toda a Índia, a quantidade de cristãos ainda não passa de 2% da população nacional, boa parte deles, estrangeiros. O maior empecilho para o trabalho das missões advém do próprio governo, que embora passe ao mundo a imagem de democrático, restringe a liberdade de culto. Diversos estados têm até leis próprias e bastante rígidas quanto às opções religiosas, impedindo a conversão de hindus ao cristianismo.

Atuando desde os anos 1990, a Missão Horizontes é uma fundação cristã interdenominacional que tem como objetivo treinar e enviar missionários brasileiros a regiões onde o Evangelho tem sido pouco divulgado. Entre os países asiáticos, a Índia é um dos mais procurados pelos evangelistas, mesmo cientes dos perigos que os espreitam numa região constantemente ameaçada por conflitos e guerras civis. Quem esteve nessa linha de frente é o missionário Pedro Santana Cardoso de Castro, membro da Igreja Irmãos Menonitas de Curitiba (PR). Em sua passagem pelo continente asiático, muitos foram os resultados alcançados. “Permaneci quatorze anos na Índia; em Goa, onde fiquei por dez anos, fui fundador de um orfanato. No norte, passei quatro anos trabalhando com crianças carentes portadoras de HIV e rejeitadas pela sociedade indiana pelo problema das castas”, relata. O missionário ajudou a abrir uma escola que atende essas crianças. Em mais de uma década de trabalho voluntário, ele afirma ter sido vítima, a exemplo de outros cristãos, de muito preconceito. “A cozinha do orfanato chegou a ser queimada. Já na região de Orissa, a perseguição imposta às igrejas destruiu praticamente todo o nosso trabalho”, conta. Atualmente Pedro mora em Londres (Inglaterra), onde estabeleceu uma base missionária junto à Igreja Anglicana, mas constantemente viaja à Índia para divulgar o trabalho de missões, bem como orientar os novos voluntários. Por estar longe do Brasil, o obreiro ainda não teve a oportunidade de acompanhar nenhum capítulo da novela Caminho das Índias, mas assistiu e não cansa de elogiar o filme de Boyle. “Para mim, que trabalho com jovens e conheço bem a realidade do país, foi muito bom ter visto o filme Quem Quer Ser um Milionário. Com certeza, o diretor conseguiu retratar a sociedade do país exatamente como ela é”, opina.

Treinar, capacitar e fortalecer o trabalho de campo são algumas das ações também perpetradas pela Missão Portas Abertas, entidade multinacional que luta pela liberdade religiosa. De acordo com a missão, que mantém bases e organizações associadas em dezenas de países, mais de 50 missionários, contando com os nativos, já chegaram a atuar no território indiano. Contudo, depois do assassinato de Laxamananda Saraswati, ocorrido em agosto do ano passado e posteriormente assumido pelos maoístas – grupo radical muçulmano ligado à rede terrorista Al-Qaeda –, os cristãos, até então tidos como responsáveis pela morte do líder hindu, foram duramente perseguidos e a violência explodiu no Estado de Orissa, região nordeste do país. Além de igrejas serem destruídas, mais de cem cristãos foram mortos e milhares ficaram sem suas casas, vendo-se forçados a se abrigar em campos de refugiados.

A perseguição religiosa diminuiu substancialmente a força-tarefa dos crentes no país, mas mesmo assim a ação missionária continua. Um pastor que, por motivos de segurança, não quis se identificar, revelou que o perigo é iminente, mas o trabalho está sendo satisfatório. “Alguns dos missionários têm recebido ameaças, inclusive de morte, mas continuam trabalhando firmemente para o Senhor. Apesar disso, muitos batismos estão sendo realizados em todos os estados, o que nos leva a crer que estamos na direção certa na nossa contribuição para a evangelização da Índia”, revelou ao site portasabertas.org.br. De acordo com um levantamento realizado pelo mesmo ministério, atualmente a Índia ocupa a 22ª colocação quando o assunto é intolerância para com os cristãos ao redor do mundo.

Pelo jeito, são vários os caminhos que levam à Índia, seja pelo mar, no passado com Vasco da Gama, ou atualmente, com a teledramaturgia. Entretanto, para a Missão Portas Abertas, a única opção é mesmo a evangelização. Aliás, com o objetivo de divulgar a situação dos cristãos em face aos episódios de violência ocorridos no segundo semestre do ano passado na região de Orissa, a entidade criou uma página em seu site com o título Jesus é o Caminho para a Índia. Pois lá, no país de mais de 1 bilhão de habitantes e 300 milhões de deuses, a seara é enorme – e os ceifeiros, lamentavelmente, muito poucos.

Gêmeos hostis

Desde a política industrial expansionista promovida pelos países europeus – sobretudo a Inglaterra – a partir do século 18, a Índia sempre esteve envolvida em conflitos de ordem política e religiosa. Primeiro, a ação imperialista dos britânicos, maquiada por alegações humanitárias, assegurou à Coroa a supremacia sobre a região, até que o líder pacifista Mahtma Gandhi liderou o movimento político que resultaria na independência do país. Herói nacional, Gandhi acabou assassinado por um indiano 1948, um ano depois de ver sua nação livre do domínio estrangeiro.

Com a intensificação dos conflitos entre os dois principais grupos religiosos, os hindus e os muçulmanos, a Grã-Bretanha, vendo na disputa interna a possibilidade de não ter que abandonar a região de mãos abanando, propôs a divisão do território em dois países; assim, o lado muçulmano (oriental) deu origem ao Paquistão, e a outra parte, maior e com maioria hindu, permaneceu como Índia. Mas, se o acordo acalmou momentaneamente os ânimos, a paz definitiva ainda estava longe de se estabelecer. Surgiu, então, o problema da Caxemira, região tipicamente muçulmana mas, pelo acordo, anexada ao território indiano. Sua localização estratégica chamou a atenção de outras nações, como a extinta União Soviética e a China, que mantinha boas relações com o Paquistão.

Para evitar um conflito internacional generalizado, a Organização das Nações Unidas (ONU) foi obrigada a intervir na questão. Atualmente, detentora de dois terços da região, a Índia acusa os paquistaneses de promoverem um movimento separatista na Caxemira. O mundo acompanha preocupado o desenrolar das negociações. Tecnicamente em guerra, os dois países não vão abertamente às armas um contra o outro porque os dois lados alardeiam possuir a temível bomba atômica.

Fonte: Revista Eclésia - Edição 133

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José Donizetti Morbidelli
Enviado por José Donizetti Morbidelli em 15/04/2009
Reeditado em 14/05/2010
Código do texto: T1540861
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