NEPAL - FÉ CRISTÃ AOS PÉS DO HIMALAIA

Recentes mudanças políticas no outrora ultrafechado Nepal deixam em expectativa agências missionárias internacionais

Para quem vive no Ocidente, o Nepal nada mais é que uma nesga de terra encravada no mapa da Ásia, praticamente escondido entre vizinhos gigantes como a China e a Índia. É lá que fica a montanha mais alta da Terra, o Everest, com seus inacreditáveis 8,8 mil metros de altura, e a misteriosa Kathmandu, a capital de um país tão pobre em recursos quanto rico em tradições religiosas – de seus 30 milhões de habitantes, 80% seguem o hinduísmo e o resto divide-se, principalmente, entre budistas e muçulmanos. Os cristãos não chegam a 1% dos nepaleses, e mesmo assim, as informações sobre o segmento não são das mais confiáveis, resultados de anos e anos de isolamento que o país atravessou ao longo do século 20. A partir de 2007, o Nepal ocupou os noticiários por conta de uma mudança política, com a queda da monarquia e a instalação do sistema republicano. Mas para as missões evangelísticas internacionais, o pequeno Nepal constitui um desafio missionário que vem sendo desbravado com excelentes resultados. A seara é grande, mas cada vez mais ceifeiros estão dispostos a seguir para os vales do Himalaia e anunciar o nome de Jesus.

Uma das responsáveis por essa aceleração missionária é a Missão Unida para o Nepal (United Mission to Nepal), entidade criada em meados do século passado, ligada à Igreja Metodista e que, entre outras atribuições, presta assistência a obreiros e voluntários engajados em projetos sociais no país asiático – desde que aprovados pelo governo. Para driblar a proibição da implantação de igrejas no país imposta às missões estrangeiras, nos anos 1960 os crentes locais criaram a Igreja de Cristo no Nepal, subterfúgio que também colaborou para o crescimento do número de fiéis nepaleses. E o trabalho evangelístico no Nepal conta também com missionários brasileiros. “Apesar de haver um bom número de missionários atuando aqui, não há nenhuma igreja que seja pastoreada por estrangeiros”, conta o teólogo e psicanalista clínico Emerson Menegasse, natural de Vitória (ES), mas que há três anos vive com a família no Nepal atuando como evangelista. Dado ao histórico de intolerância religiosa na região, ele aconselha os missionários a serem cautelosos, evitando se exporem excessivamente para evitar retaliações. “Na verdade, as igrejas são dirigidas pelos próprios nepaleses, embora todos saibam que – na maioria dos casos – sempre há, por trás, uma liderança internacional”, continua.

Mas não é apenas a intolerância religiosa que dificulta a permanência de estrangeiros no país. “No Nepal tudo é muito caro, principalmente os documentos de permanência exigido dos estrangeiros e que deve ser renovado a cada mês”, comenta a missionária Violeta Guarino. Nascida em Ouro Preto (MG) mas registrada em São Paulo, Violeta já cruzou o mundo como missionária, inicialmente pela América Latina e depois pela China e Índia. Ligada à Missão Horizontes – organização que presta auxílio a voluntários cristãos em diversos países –, ela desembarcou em terras nepalesas no ano passado, onde iniciou sua atividade missionária e social, mesmo enfrentando, como os demais estrangeiros, muita resistência e preconceito por parte de outras crenças religiosas. “Essa característica de ajudar o próximo está em mim antes mesmo de me tornar evangélica. Faço parte de um ministério de socorro, e o coração sempre me conduz a lugares onde as pessoas mais precisam de ajuda. Talvez esse seja o propósito de Deus para minha vida”, avalia a obreira, que veio ao Brasil recentemente para matar saudade das filhas, resolver algumas pendências e planejar novas ações antes de seu regresso ao sul da Ásia.

Evangelismo estratégico – Diante das dificuldades legais e dos obstáculos impostos pelas crenças tradicionais à fé cristã, é natural que os evangelistas que por lá atuam utilizem-se de certas manobras para contornar os entraves à obra. Educação, saúde, cultura, enfim, tudo o que no Nepal carece de investimento tem sido foco das missões e dos religiosos estrangeiros. “Desenvolvemos projetos e programas em diversas áreas, imprimindo nossos princípios bíblicos mas sem nos expor, uma vez que estamos trabalhando num país predominantemente hindu”, explica Menegasse. A falta de capacitação e conhecimento teológico, principalmente por parte de pastores e líderes que atuam em áreas mais remotas do país, é apenas mais um dos muitos problemas a serem superados. Como consequência, o que se vê é uma interpretação muitas vezes equivocada dos princípios bíblicos, numa mescla de ensino hindu – já enraizado culturalmente na sociedade – com a nova doutrina cristã.

“É necessário, além de se investir no treinamento de nacionais para a tradução e contextualização bíblica, um trabalho acurado para não incorrer no erro do sincretismo religioso, uma atividade séria de discipulado com os líderes em treinamento, para que assim desenvolvam a sã doutrina”, continua o evangelista. Para isso, atualmente ele auxilia na implantação do Centro de Treinamento Transcultural, instituição que visa a oferecer uma assistência mais eficaz para os cristãos nepaleses que queiram colaborar em qualquer uma das áreas de interesse social. “Tenho certeza que isso vai facilitar muito a vida, tanto dos nacionais como dos missionários, como eu, que não gosto de cidades grandes e tenho como objetivo trabalhar no interior e áreas mais afastadas”, aposta Violeta. Por ora, a licença para que os estrangeiros possam desenvolver qualquer tipo de atividade vale para regiões específicas, como a capital Kathmandu.

Enquanto alguns aguardam por melhores estruturas, os poucos cristãos que dispõem de recursos financeiros ou que dão a sorte de contar com suporte estrangeiro para viagens, a alternativa tem sido o treinamento teológico realizado em países vizinhos, como a Índia. Isso resolve parcialmente o problema, uma vez que, ao retornaram ao Nepal, eles acabam preferindo atuar na capital e cidades com maior índice de desenvolvimento social, deixando as zonas mais isoladas praticamente minguadas de missionários.

Se profissionalmente o trabalho desenvolvido no Nepal tem sido muito importante para gente como Menegasse , é no campo espiritual que o obreiro capixaba tem colhido os melhores frutos e se diz mais realizado. “Com essas experiências e a partir do momento em que comecei a enxergar Deus com olhos culturais, minha concepção do sagrado se expandiu, rompendo definitivamente com certos paradigmas que me foram impostos pela densa religiosidade herdada da velha teologia, colocada num padrão de excelência que supera até a Bíblia para alguns dos teólogos mais fanáticos”, conclui.

Risco democrático – Os missionários em ação no Nepal já perceberam que o trabalho dá mais resultado se direcionado a grupos etários específicos. É o caso das crianças. Um grupo de voluntários, cujo trabalho foi despertado pelo médico e pastor José Rodrigues, presidente da Missão Cristã Mundial (MCM) e que hoje é mantido com doações oriundas de entidades privadas e voluntários tem como alvo as meninas nepalesas. Em sua primeira viagem pela Ásia, o pastor se sentiu comovido pela situação de milhares de crianças compradas como meras mercadorias de outros países, para trabalharem como escravas prostitutas na Índia. Dessa comoção, nasceu o programa Meninas dos Olhos de Deus, que já conta com cinco casas no Nepal, onde dezenas de meninas dispõem de moradia, assistência médica, educação e, claro, aprendizado bíblico. Antes renegadas e negociadas pelos próprios pais, muitas delas têm encontrado uma nova perspectiva para suas vidas, isso graças ao trabalho de entidades que, contraditoriamente, o próprio governo nacional – que deveria ser o grande incentivador de ações do gênero – reprime.

Assim como a religião, há bem pouco tempo liberdade política também consistia em um tabu a ser superado pelos nepaleses que, geração após geração por mais de dois séculos, viveram submetidos a um regime de monarquia absolutista. Até então, qualquer manifestação política que se opusesse aos interesses reais era imediatamente reprimida, e os rebeldes, perseguidos. Somente nos últimos vinte anos, com a intensificação de protestos populares e a consequente abertura para o surgimento de partidos de oposição, é que o regime monárquico começou a enfraquecer gradativamente, até ser definitivamente abolido e substituído por uma república democrática, com a vitória dos maoístas – grupo liderado por ex-guerrilheiros comunistas que mudaram de tática para ascender ao poder, substituindo a violência da luta armada pela ação pacífica.

A jovem República do Nepal nasceu sob uma ideologia ateia, mas ainda é cedo para falar em mudanças radicais no panorama religioso do país, sobretudo em relação às garantias de liberdade de crença. E, pelo menos para Emerson Menegasse, é bom que os cristãos não criem muitas expectativas que, eventualmente, não venham a se concretizar. “A gente vai vivendo um dia de cada vez. É fato que a realidade aqui vai mudar em face dessa nova conjuntura política, mas isso não quer dizer que há garantias plenas de que o novo governo, de cunho maoísta, irá garantir o direito do cidadão seguir a religião que quiser”, observa, cauteloso.

A opinião do evangelista é compartilhada pela amiga Violeta Guarino, que se mostra ainda mais pessimista. “Para mim, a tendência é piorar porque isso atinge diretamente os radicais hinduístas. Mesmo que o governo maoísta decrete a liberdade de culto, eles podem fazer uso da força e da violência para intimidar os cristãos, como já aconteceu anteriormente”, lembra. Para a missionária, o perigo de um povo que jamais experimentou um regime liberal é entender de maneira diferente o verdadeiro significado da democracia. “Eles acham que viver democraticamente é poder fazer o que bem entendem, sem que haja qualquer punição para isso.”

Por outro lado, a indicação – no começo deste ano – dos maoístas para a consagração da menina Shreeya Bajracharya, de 6 anos, ao trono de Kumari como a nova deusa viva do hinduísmo (atribuição que antes era incumbência irrestrita dos líderes religiosos monarcas) pode até se encarado com um indício de que as coisas podem, realmente, mudar a partir do novo quadro político que se desenha no país. A tradição religiosa dos hindus nepaleses estabelece que a menina deva ficar confinada ao templo, de onde sairá pouquíssimas vezes ao ano por ocasião de cerimônias religiosas. Uma nova criança ocupará o lugar da pequena deusa até sua primeira menstruação, fase que marcaria sua passagem de ser divino para mulher comum. Além de demonstrar que aquela rebeldia parece fazer mesmo parte do passado, socialmente a atitude dos ex-guerrilheiros tem uma representatividade bem mais considerável, pois simboliza o rompimento definitivo do elo entre a monarquia e a religião. E disso, todo mundo – sobretudo os cristãos – podem tirar proveito.

Fonte: Revista Eclésia - Edição 135

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José Donizetti Morbidelli
Enviado por José Donizetti Morbidelli em 19/06/2009
Reeditado em 14/05/2010
Código do texto: T1656654
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