O BACALHAU NOSSO DO NATAL
Peixe ou produto de uma forma de preparo?


                                             Sérgio Martins PANDOLFO*

   “Presente raro dos deuses, o bacalhau, para mim, nasceu simplesmente salgado, sempre em postas e, neste estado, graças ao engenho humano, é levado à mesa e entregue à sanha de nossa gula.”   Nélida Piñon, escritora;da ABL, 1996.


   O bacalhau é um dos casos exemplares e acabados de metonímia (substituição de um termo por outro, baseando-se numa estreita relação de sentido, isto é, no uso de uma palavra fora de seu contexto semântico normal), em que o método de preparação confunde-se com a matéria prima (peixe). Como ocorre com a gilete, lâmina descartável de barbear derivada do antropônimo Gillette, primeiro fabricante que a registrou e comercializou, ou como quando convidamos um amigo para tomar uma brahma ou uma cerpa (cerveja).
     Com o bacalhau ocorre coisa semelhante: mais de dez famílias e cerca de 210 espécies de peixes das águas frias, profundas, dos mares próximos do pólo Norte, de vários tamanhos e texturas, se prestam à fabricação desse gostoso alimento, conquanto haja, é claro, aquelas que fornecem um melhor produto final e, por isso, são preferidas.
     A origem do bacalhau perde-se na neblina dos tempos, sabendo-se apenas ser milenar. Atribui-se aos vikings, dos países nórdicos, e aos primitivos ocupantes da península Ibérica (Espanha e Portugal de hoje) a primazia do processamento, que consiste, basilarmente, na salga das carnes dos pescados, que são postas a secar ao sol e ao tempo, posteriormente, a fim de desidratá-las. Este método, a par de garantir a perfeita conservação, mantém todos os nutrientes e apura o paladar de suas estruturas comestíveis, de alto teor protéico e baixíssimos, níveis de gordura. Fato é que os pescadores desses mares do Norte, utilizando-se do pescado apanhado na profundidade das águas frias do Atlântico – e também do Pacífico -, transformavam-no nisto que em língua portuguesa se conhece como bacalhau, visando à sua conservação duradoura.
     Quando se fala em bacalhau logo se pensa em Portugal - e nos portugueses – porém, necessário é dizer que nas águas territoriais portuguesas inexistem estirpes piscosas geratrizes de bacalhau e nem são os lusos os maiores produtores desse saboroso manjar. Os noruegueses e espanhóis, por exemplo, produzem mais e, segundo alguns, melhor bacalhau. Mas foram os compatrícios do genial Camões, sem ponta de dúvida, os responsáveis pela popularização e universalização da iguaria, aquando do ciclo das grandes navegações transoceânicas para o descobrimento de novas terras, logrando dar “novos mundos ao mundo”.
     Como eram essas viagens “por mares nunca de antes navegados” assaz longas e demoradas, com muitos dias e às vezes meses entre um porto e outro, havia o problema da conservação dos alimentos, os quais quase que se resumiam a peixes salgados (sardinha e bacalhau, máxime) e “biscoitos do mar” (de bis = duas vezes e coctus = cozido), constituídos por “massaroca” farinácea de água e sal posta a cozer duas e até três vezes nas fornalhas do reino, a fim de fazê-la resistir ao tempo e ao mofo e garantir a alimentação dos mareantes. Bacalhau e biscoito, logo adotados pelas outras nações desbravadoras e colonialistas, foram, destarte, os garantidores desses grandiosos feitos enquanto naus e caravelas “Já no largo oceano navegavam,/ as inquietas ondas apartando” (Os Lus. I, 19).
     Mas voltemos ao bacalhau. Antes do ciclo das grandes navegações e durante a maior parte desse período, tal tipo de alimento somente era consumido pelas gentes de mais baixa renda. Com o passar do tempo os marujos acostumavam-se ao seu paladar e, na volta, mesmo com a situação financeira melhorada e às vezes até enricados, continuavam a consumir a iguaria em casa, com a família e convidados, popularizando o acepipe que, assim, acabou por chegar à mesa dos cortesãos. Os lusonavegantes também tornaram conhecido o repasto nas terras por eles visitadas ou colonizadas, como é o caso do nosso pernil brasílico. Por isso é que, para nós, bacalhau é quase emblemático, verdadeiro ex-líbris de nossos “achadores” e colonizadores. E com toda a justeza, ora, pois pois!
     No Natal, então, não pode faltar à mesa dos mais abastados uma supimpa bacalhoada à lusitana, regada, à farta, por “azeite português” (de oliva). Diga-se o mesmo em relação ao “natal dos paraenses”, o Círio de Nazaré, em que o ansiado “bacalhau do Porto” comparece em abundância e gostosura à mesa dos parauaras.
Dissemos no início que bacalhau não é um peixe, mas sim o modo de preparo da carnadura de vários deles. Atualmente, cinco ou seis espécies de peixes são transformadas, com maior frequência, em bacalhau, como já se verá.
     O principal representante pertence à família dos gadídeos (Gadus morrhua), internacionalmente conhecido como Cod; é o “príncipe dos mares do Norte” e o mais afamado dos peixes de águas frias do Mar Atlântico Norte, no Círculo Polar Ártico, chegando a atingir mais de um metro e 50 kg de peso, aproximadamente. Dele tudo se aproveita: a carne (fresca, defumada, salgada e seca); do fígado se extrai óleo, usado em Medicina especialmente por sua riqueza em vitaminas A e D e da bexiga se faz cola. Esse peixe é também conhecido entre nós como bacalhau do Porto por ser o utilizado nas indústrias bacalhoeiras dessa importante cidade portuguesa, e por muitos considerado como o legítimo bacalhau.
     A seguir, o Saithe, o Ling e o Zarbo, que também são peixes que, salgados e secos, redundam em bom bacalhau, conquanto de qualidade inferior ao Cod, mas consumido e apreciado por muitos, até porque de preço bem mais “convidativo”. São bem menores e mais achatados. O Saithe tem a carne mais escura e de sabor forte. O Ling tem bom corte, sua carne é clara e bonita, por isso que atrai muitos compradores.
     O quinto peixe, também muito utilizado, é o Cod Gadus macrocephalus (cabeçudo), o bacalhau do Pacífico ou do Alasca. Tem carne mais fibrosa, não se desmancha em lascas e não apresenta o mesmo paladar do morrhua, com o qual é muitas vezes confundido no mercado.
     Por oportuno e não menos relevante registre-se que o Brasil também já produz seu bacalhau. Empresa oficial de pesquisas ligada ao setor desenvolveu o caçalhau, submetendo ao processo tradicional nosso conhecidíssimo e delicioso cação, que abunda nas costas litorâneas deste patropi. Quem já provou diz que gostou e aprovou. E então? Vai um caçalhau a parauara (no tucupi)?
     O bacalhau sempre teve, ao longo dos tempos, tamanha importância, que até guerras se travaram por sua causa entre as nações mais diretamente a ele relacionadas, visando ao controle e primazia de sua pesca, envolvendo pescadores de Portugal, Inglaterra e França. Os portugueses, que como ficou visto “descobriram” o bacalhau na época das circunavegações e o difundiram mundo afora, a ele se referem, carinhosamente, como o “fiel amigo”. Foram igualmente os marujos lusitanos, com suas boinas marinheiras, os primeiros a ir pescar o bacalhau na Terra Nova (Canadá), descoberta em 1497.
     No Brasil o hábito de comer bacalhau iniciou-se já na era do descobrimento, mas foi com a vinda da corte portuguesa, no brotar do século XIX, que essa tradição alimentar se difundiu. Nos finais do século era comum a reunião de intelectuais, como Machado de Assis, Euclides da Cunha e outros, aos domingos, em restaurantes do centro do Rio Antigo, para deliciar um autêntico “bacalhau do Porto” e discutir, se calhassem, problemas literários e políticos. Bons tempos aqueles, ó pá!

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*Médico e escritor – SOBRAMES/ABRAMES
serpan@amazon.com.br - sergio.serpan@gmail.com  -  www.sergiopandolfo.com

Sérgio Pandolfo
Enviado por Sérgio Pandolfo em 12/12/2009
Reeditado em 10/04/2012
Código do texto: T1974234
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