SANTIAGO DE COMPOSTELA - UM FENÔMENO HISTÓRICO E HISTÉRICO

Seja por motivos culturais ou espirituais, adeptos das mais diferentes religiões têm percorrido o Caminho de Santiago de Compostela, uma das mais antigas peregrinações da história da humanidade

Após a crucificação de Jesus, um de seus apóstolos mais ambiciosos – Tiago, o irmão de João Evangelista – partiu para a Espanha, mais precisamente para as regiões de Andaluzia e da Galícia, com o propósito de pregar as “boas novas”. Ao retornar à Palestina, depois de anos de peregrinação, ele foi torturado e decapitado por ordens do rei Herodes Agripa. Então, dois de seus seguidores recolheram os restos mortais de seu corpo e o levaram de volta à Espanha, sepultando-o no Bosque de Libredón, curiosamente o local de sua derradeira estadia. Fato ou mito, essa história permaneceu enterrada por quase um milênio até que no início do século 9 um pastor eremita afirmou ter visualizado luzes, ou estrelas, vindas daquela região da floresta, aguçando assim a curiosidade de Teodomiro, bispo de Iria Flavia; por sua vez, o religioso deu início a uma série de escavações no local, que culminaram com a descoberta de uma urna de mármore, anunciada como a que guardava os despojos do apóstolo. Sem perder tempo, principalmente numa época em que a região vivia sob o domínio árabe e sem um santo ou mártir carismático que unisse os cristãos, fragmentados em pequenos reinos, o rei Afonso II tratou logo de proclamar o apóstolo Tiago – aportuguesado para Santiago – como o padroeiro de seu reino. Das inúmeras histórias contadas ao longo dos séculos, talvez essa seja a mais verossímil e importante, uma vez que se refere justamente ao mais famoso e emblemático caminho de peregrinação da atualidade: Santiago de Compostela, ou campus stellae, expressão derivada do latim que, ao pé da letra, significa “campo de estrelas”, numa alusão às tais luzes que resultaram na descoberta do sepulcro do apóstolo e transformaram a montanhosa região espanhola num dos principais roteiros turísticos, históricos e espirituais do mundo cristão.

Empreendidas por motivos religiosos a lugares tidos como sagrados ou milagrosos, e com a intenção de suplicar por uma graça ou agradecer por um pedido alcançado, as peregrinações não se aplicam a uma determinada confissão específica – assim como os muçulmanos peregrinam a Meca, os católicos vão a Roma e os evangélicos à Terra Santa. “Uma das coisas que o caminho nos proporciona é a amizade e a possibilidade de conhecer indivíduos de todas as partes do mundo, de todas as profissões, idades e religiões. O privilégio de trocar informações, conhecimentos com cada um que faz a peregrinação nos engrandece como homens e como espírito”, ressalta o editor e escritor Leandro Fonseca Leal Ferreira, que afirma não seguir nenhuma crença em especial. “Sou ecumênico, um estudioso de todas as religiões”, complementa.

Mestre em Ciências das Religiões pela Universidade Federal da Paraíba, Maria de Fátima Moreira de Carvalho enfatiza que, ao analisar os personagens bíblicos, os evangélicos os fazem com bases estabelecidas pelas Escrituras Sagradas. “Entretanto, o que está em foco no culto a Santiago de Compostela não é o relato bíblico, mas a tradição histórica”, esclarece ela, que frequenta a Igreja Assembleia de Deus de João Pessoa.

Se a princípio as peregrinações eram realizadas, basicamente, por peregrinos vindos das regiões mais próximas da Península Ibérica, logo a fama do caminho foi se espalhando pelos países vizinhos, como a França e a Itália, tanto que, de acordo com os registros da época, o primeiro peregrino ilustre a se aventurar por aquelas trilhas foi o bispo francês Godescalc, de Le Puy, no ano de 951, tendo seu séquito episcopal como companhia. O medo eminente de que o mundo chegasse ao fim com a virada do milênio forçou muitos reis e nobres a financiarem igrejas cada vez mais suntuosas para que fossem, após suas mortes, sepultados em solo sagrado na esperança de que, assim, estivessem protegidos contra as forças do mal e mais próximos de Deus. Contudo, a existência humana prosseguiu e o tempo tratou de dar uma nova simbologia ao Caminho de Santiago, tornando-o muito mais uma viagem de busca interior do que, propriamente, uma visita ao santuário de um dos principais seguidores de Cristo. “A grande maioria não faz mais a peregrinação em busca de um milagre, mas há uma riqueza interior tão grande em tudo o que se vê pela frente. O caminho se tornou mais místico e enriquecido com as diferentes manifestações de fé que cada um carrega”, explica o advogado tributarista e escritor Adhemar de Barros. Atual presidente da Associação de Confrades e Amigos do Caminho de Santiago (ACACS-SP), entidade paulista sem fins lucrativos que presta assistência e orientação a peregrinos brasileiros, o administrador de empresas Paulo Flavio Bertechini Gomes afirma que, a princípio, pensou mais no lado turístico e numa maneira de conhecer pessoas que mantivessem a mesma afinidade que ele, ou seja, que também gostassem de caminhar. “Agora, o que mais me motiva é a questão espiritual. Sempre fui uma pessoa muito racional e, depois dessa experiência, passei a ser mais emocional, a ouvir mais o coração. Percebi que sentir emoções faz muito bem ao coração, mas acho que vou precisar de outra caminhada para manter o equilíbrio entre a razão a emoção”, medita. Por sua vez, o advogado católico e antecessor de Bertechini na presidência da associação, afirma que, particularmente, não foi atraído por qualquer motivação racional. “Quando fiquei sabendo do caminho, simplesmente tive um desejo irresistível de trilhá-lo”, conta Antoin Abou Khalil que, apesar do estrangeirismo na identidade, é paulistano por natureza. “Peregrinar até Santiago foi uma maneira que encontrei de ‘caminhar internamente’; o caminho externo, ou seja, o geográfico, apenas propiciou um cenário para as caminhadas interiores”, compara.

Legados literários – Localizada na região noroeste da Espanha, Santiago de Compostela conta com uma população de aproximadamente cem mil habitantes, um número praticamente irrisório se levado em consideração que, entre peregrinos e visitantes comuns, a cidade receba anualmente cerca de 4 milhões de turistas. Mas, se hoje esses números a colocam como um dos locais mais visitados de toda a Europa, nem sempre o turismo por lá esteve tão em evidência como nas últimas décadas. Com o advento do protestantismo, fomentado pelas ideias reformistas defendidas por Martinho Lutero e João Calvino, a partir do século 16 as guerras religiosas eclodiram com força no continente europeu, envolvendo-o numa cortina de fumaça e levando a Igreja Católica a se precaver contra a ação daqueles que, por ela, eram considerados como inimigos da fé cristã. Assim, numa atitude peremptória e temendo que as relíquias sagradas caíssem nas mãos dos piratas ingleses, um arcebispo tomou a precaução de esconder o sepulcro num lugar para lá de secreto, enterrando com ele próprio o segredo da localização. Tamanho zelo com os ossos do santo custou caro à cidade, que acompanhou o número de peregrinos cair vertiginosamente pelos três séculos seguintes, até a relíquia ser reencontrada, em 1879, por ocasião de uma reforma realizada no altar-mor da catedral. Após anos de intensas pesquisas, o papa Leon XIII, concomitante com a verdade ou movido por interesses político-religiosos, anunciou que um dos esqueletos pertencia, de fato, ao apóstolo. Após a década de 1980 quando, pela primeira vez em toda a história do pontificado, um papa decidiu fazer uma visita à cidade – em novembro deste ano será a vez de Bento XVI repetir o trajeto de seu antecessor, João Paulo II – a peregrinação a Santiago de Compostela viu sua chama acender novamente e, desde então, o número de peregrinos tem aumentado ano após ano. “Também não podemos nos esquecer da contribuição do escritor Paulo Coelho, que conta a história do caminho num de seus livros, e que vendeu milhões de exemplares em todo o mundo”, relembra Paulo Bertechini.

Ao percorrer o Caminho de Santiago em 1986, a jornada empreendida por Paulo Coelho não resultou somente num de seus grandes sucessos literários – o Diário de um Mago (Editora Planeta) – mas também contribuiu para que ele se tornasse uma celebridade mundial e referência para místicos e esotéricos de todas as partes do planeta. Membro da Academia Brasileira de Letras, o escritor já superou a impressionante marca de 130 milhões de exemplares vendidos, e é reverenciado como uma das personalidades mais ilustres na capital da Galícia, tanto que tem seu nome imortalizado num dos logradouros da cidade: Rúa Paulo Coelho.

Como o “mago”, relatar a experiência vivida nas íngremes montanhas e vastas planícies espanholas por meio de um livro tem sido uma prática adotada por muitos outros escritores-peregrinos, a exemplo de Leandro Fonseca, que percorreu o caminho apenas uma vez, mas o suficiente para acarretar uma verdadeira transformação espiritual em sua vida e delinear sua carreira como escritor. “Compostela foi um marco em minha vida; hoje, tudo o que faço, tanto profissionalmente como espiritualmente, é reflexo dessa minha jornada percorrida pelo campo de estrelas”, afirma com convicção. Campo de Estrelas (Catedral das Letras) é também o título de seu livro que, em forma de romance, narra as aventuras e experimentos vividos ao longo dos 774 quilômetros que separam Saint Jean Pied-de-Port, na França, até Santiago de Compostela – percurso chamado de caminho francês, o trajeto preferido dos peregrinos entre as várias opções disponíveis. “Jamais pensei em me tornar escritor, mas agradeço ao caminho por ter me soprado aos ouvidos essa possibilidade”, continua. Ele conta ainda que, ao tirar uma foto de sua própria sombra refletida no asfalto, ouviu uma voz suave dizer claramente que aquela seria a imagem de seu primeiro livro. “Há coisas na vida que ainda são difíceis de explicar, tem que sentir para compreender. Naquele momento, dei um sorriso de satisfação e fiquei me perguntando se aquilo seria mesmo possível”, filosofa. Dito e feito!

Adhemar de Barros não chegou a ouvir nenhuma voz sussurrar-lhe nos ouvidos, mas também usou o Caminho de Santiago como cenário para sua obra O Enigma de Compostela (Geração Editorial), que mistura fatos históricos – como as Cruzadas, o fim da Ordem dos Cavaleiros Templários, a intolerância da Igreja Católica no genocídio dos cátaros e na criação do Tribunal do Santo Ofício – com uma ficção ambientada na contemporaneidade, apimentado com uma boa dose de suspense. “Depois que percorri o caminho pela primeira vez há doze anos – o escritor esteve em Compostela em quatro oportunidades, duas a pé e outras de carro –, o misticismo me impressionou muito. Então, comecei a pesquisar e descobri que havia fatos históricos há tempos esquecidos por trás daquela peregrinação. Com minha curiosidade aumentando cada vez mais à medida que tomava conhecimento dos acontecimentos, decidi escrever um livro que não fosse apenas um ‘diário de bordo’, mas uma intriga que ajudasse a revelar fatos que ainda permaneciam inexplicavelmente ocultos. Voltei aos lugares mais emblemáticos, visitando museus, mosteiros, ruínas de castelos; hospedei-me em abadias; entrei em cavernas misteriosas e subi aos picos mais altos; ladeei por rios tortuosos e vales profundos, tudo para desenvolver a trama”, relembra o autor, que constantemente viaja pelos recantos mais inexplorados do planeta, garimpando informações e alimentando suas ideias literárias. É dele também o romance O Conceito Zero – Uma Intriga Internacional para a Independência da Amazônia, agraciado com voto de louvor, por unanimidade, no Senado Federal.

Sem credo, sem raça e sem sexo – Membro e um dos fundadores da agremiação gaúcha Confraria dos Cavaleiros da Paz, João José de Oliveira Machado chegou a Santiago de Compostela no verão de 1999, e de uma maneira bastante inusitada: no lombo de um cavalo. “Do alto a gente tem uma visão diferente do mundo e até se sente mais próximo de Deus. O cavalo e o homem se integram muito bem, e quando eles se unem há o surgimento de um terceiro elemento: o centauro”, explica, em tom mitológico, o advogado de 76 anos, natural de Piratini (RS) e que já realizou incontáveis cavalgadas por diversos países, especialmente no continente sul-americano. “Já cavalguei mais de 12 mil quilômetros e, especificamente, Compostela conduz a uma reflexão, coisa que a vida cotidiana não nos oferece. A possibilidade de ficar pensando faz com que o indivíduo encontre a si mesmo”, salienta. A façanha de Machadinho, como o cavaleiro é conhecido, tornou-o o primeiro cavaleiro credenciado pela ACASC-SP para percorrer o caminho francês.

Se alguns “malucos”, a exemplo do gaúcho, fazem a peregrinação a cavalo e outros, como é bastante comum, de bicicleta, a grande maioria dos peregrinos prefere gastar a sola dos tênis de borracha. Agora, difícil mesmo é encontrar alguém que não traga na bagagem uma boa história para compartilhar com parentes e amigos, um revigoramento espiritual ou até mesmo uma nova concepção de vida no que tange a desafios e capacidades pessoais. “A fé é incondicional. Enquanto uns encontram o que procuram ao caminhar até a esquina, outros, como eu, precisam de mais tempo e espaço para descobrir o que realmente precisam”, atesta Leandro Fonseca, fazendo menção aos trinta e poucos dias da exaustiva, mas prazerosa, travessia de Saint Jean Pied-de-Port a Santiago de Compostela. “Ao ver as torres da catedral, depois de caminhar debaixo de sol e chuva, fui invadido por uma sensação de dever cumprido, de plenitude com aquilo que me propus a fazer mesmo sem a certeza de que iria conseguir”, emenda.

Embora não queira desmerecer a cidade, para Antoin Abou, ao contrário do escritor carioca, a sensação de chegar ao destino final foi algo absolutamente banal. “Tudo o que foi intenso em minha peregrinação vivi durante o trajeto, não no fim dele. Talvez por ter certeza, desde o começo, de que completaria o caminho, esse ‘chegar’ não tenha sido assim tão marcante”, explica.

Independente da fé que professam, nas últimas décadas Santiago e Compostela tem atraído membros das mais diferentes vertentes religiosas, sejam evangélicos, muçulmanos e até mesmo budistas. “Depois de Jerusalém e Roma, Santiago de Compostela é a cidade mais sagrada para o cristianismo e, pelos encantos turísticos do caminho, entendo que exerça atrativo sobre qualquer pessoa, independente de credo confessional”, opina a assembleiana Maria de Fátima.

Em 1989 o Caminho de Santiago recebeu do Conselho da Europa o título de “Primeiro Itinerário Cultural Europeu” e quatro anos mais tarde foi reconhecido pela UNESCO como Patrimônio Cultural da Humanidade, prova de que qualquer indivíduo pode debutar em suas trilhas, conhecer suas lendas e adentrar em suas histórias. “Santiago de Compostela não tem credo, não tem raça e não tem sexo”, conclui Adhemar de Barros.

“Credencial del Peregrino” e “La Compostela”

Expedido pelas mais diversas associações de apoio e orientação ao peregrino espalhadas pelo mundo, a Credencial del Peregrino é uma espécie de passaporte de identificação que pode ser solicitada por qualquer indivíduo engajado em realizar a peregrinação a Santiago de Compostela. Embora não seja um referencial obrigatório para se chegar à capital da Galícia, a emissão do documento é bastante aconselhável por facilitar ao peregrino o acesso aos albergues especiais, igrejas e monastérios que se localizam ao longo do trajeto. Em cada cidade, o passaporte deve ser carimbado, geralmente nos próprios albergues ou prefeituras, atestando assim a passagem do titular pelos locais. Ao final da peregrinação, somente receberão a La Compostela – diploma emitido em latim similar aos concedidos na época medieval – os viajantes que apresentarem a credencial devidamente carimbada e que comprovarem a realização dos últimos 100 quilômetros do caminho a pé ou a cavalo, ou então os últimos 200 quilômetros de bicicleta.

Fonte: Revista Eclésia - Edição 142

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José Donizetti Morbidelli
Enviado por José Donizetti Morbidelli em 14/05/2010
Reeditado em 12/03/2012
Código do texto: T2256871
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