Sobre o judaísmo, divinos privilégios, origens e exclusões

Sempre que me empenho a entender certas questões ligadas à constituição de identidades no mundo – sendo o proceder constituinte de identidades essencialmente uma ação cultural, sendo ações culturais interferências humanas (sic), estimuladas pela sensibilidade e pela imaginação, a mudanças de nossos estados de Natureza a dimensões civilizadas de ser e estar – para entender tais procedimentos, então, tendo inevitavelmente a começar a investigar a questão pelo “princípio dos tempos” da Criação de tudo.

Pensando o tempo “para trás” tão eterno quanto “para frente”, percebo impossível dizer exatamente qual data seria justo a estabelecermos comemorações do aniversário de nascimento da vida inteligente neste planeta – a despeito de que, pensando melhor, lembrando de todas as atrocidades ainda cometidas pelo gênero humano (sic), desde tempos imemoriais, em nome do que se acredita ser “essencial”, “verdadeiro” ou “falso” na existência, talvez ainda não tenhamos o direito de comemorá-la, uma vez que vida inteligente mesmo, como bem nos lembra um quadrinho do cartunista Angeli, entre outras obras de arte, provavelmente somente existe ainda em outros planetas.

Em relação a origens do povo (auto) proclamado “judeu”, sem que saibamos exatamente o que significa tal termo – como de resto se auto proclamaram “ingleses”, “franceses”, “alemães” e todos os outros – talvez seja em Gênesis 17:1-14 que sua história está biblicamente registrada. Como nos conta o “divinamente inspirado” narrador do episódio, “Quando atingiu Abrão a idade de noventa e nove anos, apareceu-lhe o Senhor e disse: ‘Eu sou o Deus Todo-poderoso; anda na minha presença e sê perfeito. Farei uma aliança entre mim e ti e te multiplicarei extraordinariamente’. Prostrou-se Abrão, rosto em terra, e Deus lhe falou: ‘Quanto a mim, será contigo a minha aliança; serás pai de numerosas nações. Abrão já não será o teu nome e sim Abraão; porque por pai de numerosas nações te constitui. Far-te-ei fecundo extraordinariamente, de ti farei nações, e reis procederão de ti. Estabelecerei a minha aliança entre mim e ti e tua descendência no decurso de suas gerações, aliança perpétua, para ser o teu Deus e da tua descendência. Dar-te-ei e à tua descendência a terra das tuas peregrinações, toda terra de Canaã, em possessão perpétua, e serei o teu Deus’. Disse mais Deus a Abraão: guardarás a minha aliança, tu e a tua descendência no decurso das suas gerações. Esta é minha aliança, que guardarás entre mim e vós e a tua descendência: todo macho entre vós será circuncidado. Circuncidareis a carne do vosso prepúcio; será isso por sinal de aliança entre mim e vós. O que tem oito dias será circuncidado entre vós, todo macho nas vossas gerações, tanto o escravo nascido em casa como o comprado a qualquer estrangeiro, que não for da tua estirpe. Com efeito, será circuncidado o nascido em tua casa e o comprado por teu dinheiro; a minha aliança estará na vossa carne e será aliança perpétua. O incircunciso, que não for circuncidado na carne do prepúcio, essa vida será eliminada do seu povo; quebrou a minha aliança” – segundo tradução de João Ferreira de Almeida.

Apesar de o texto ser propositalmente (?) repetitivo, segundo o narrador do episódio Deus diz a Abraão que ele será “pai de numerosas nações”, e não apenas de uma, tendo tais nações inevitavelmente se espalhado pelo mundo, habitado toda a Terra, quando então provavelmente considerada por Deus aquela tal “Canaã” que o Criador se referiu a Abraão, prometendo-lhe, e aos seus descendentes divinos representantes – que, certamente pretendia Deus, fôssemos todos – “possessão perpétua”.

Mas, para reconhecer aqueles que eram e que seriam Seus filhos amados, então, Deus estabelece a circuncisão como um sinal desta Sua aliança com os homens (sic) – embora talvez, considerando toda irresponsabilidade sexual hoje reinante no mundo, devesse Ele ter-nos estabelecido castrações, não tendo feito nenhuma referência a sinais pelos quais poderíamos reconhecer Suas filhas – dizendo que tal circuncisão deveria ser realizada mesmo naqueles que não eram “da estirpe” de Abraão; e mais: os que recusassem a circuncisão, sinal de quebra de Sua aliança com a descendência de Abraão, deveriam ser “eliminados” de seu povo por terem quebrado tal aliança, suscitando o termo “eliminados” interpretações que puderam “justificar” tanto meras expulsões dos chamados “filhos pródigos” da casa paterna até grandes atos de extermínios futuros, inicialmente provocados por apedrejamentos, pelos carrascos da “Santa” Inquisição e, talvez para fazerem cumprir profecias, pelos devotos anticristos de Hitler, muitos deles absurdamente considerados “cristãos”.

No livro “Da Bíblia aos Múltiplos Universos – velhas e novas visões da eternidade” (publicado pela paraibana Editora Idéia em 2005), o sociólogo Gilson Gondim analisa a questão judaica da seguinte forma: “Seriam os judeus particularmente merecedores do amor divino? Aqueles que viriam a ser mais tarde conhecidos como judeus eram tão violentos e impiedosos como qualquer outro povo da época. Mas conforme os critérios bíblicos, eles não eram especialmente bons: oscilavam constantemente entre a obediência a Deus e a rebeldia, passavam longos períodos afastados do Senhor. Mesmo assim, segundo o Velho e o Novo Testamento, Deus jamais deixou de considerá-los o povo eleito. Seria Deus racista ou ‘meramente’ arbitrário e caprichoso? Ou seria a Bíblia, na verdade, a ideologia da dominação de um povo sobre os povos vizinhos”?

Em seu livro “Nunca mais?” (publicado pela paulista editora Francis em 2005, com prefácio de Elie Wiessel e traduzido por Ricardo Gouveia), o judeu Abraham H. Foxman, diretor nacional americano da Liga Antidifamação – atualmente uma das vozes mais atuantes contra o ódio, a discriminação e a violência no mundo, escreveu: “Os antigos gregos, romanos ou povos medievais podem ter antipatizado com os estrangeiros ou os seguidores de uma religião diferente, ou com uma cor de pele diferente da deles. Mas, diferentemente do racismo moderno, eles não tinham uma visão de mundo sistêmica em que a humanidade é subdividida em diversas categorias raciais distintas e hereditárias, algumas consideradas superiores e outras inferiores”. E ele esclarece: “A cobiça e a vontade de poder sem dúvida contribuíram para o apelo do racismo. Os exploradores e conquistadores europeus que ‘descobriram’ as novas e ricas terras de além-mar estavam ansiosos por arrebatar o controle dessas terras dos povos de pele escura (principalmente) que ali viviam. Mas, como cristãos, eles sentiam necessidade de justificar moralmente os seus desígnios imperialistas. Uma doutrina que diferenciava radicalmente as pessoas ‘brancas’ das ‘negras’ e outras raças ‘de cor’, relegando estes últimos a um status pouco mais elevado que o dos animais, servia a esse propósito de modo ideal”.

Mais a frente, sobre as “razões” para o estabelecimento tanto do antigo anti-semitismo como para “o novo”, Foxman escreveu: “... talvez algum elemento malévolo na natureza humana exija um bode expiatório sobre o qual possamos descarregar todas as frustrações e insatisfações da vida, e talvez os judeus simplesmente representem um alvo seguro e conveniente para essa necessidade de um bode expiatório. Se essa explicação estiver correta, o fenômeno do anti-semitismo poderá parecer ainda mais perturbador; se ele é motivado por uma necessidade tão elementar, talvez não exista, no fim, nenhuma esperança de extirpá-lo por completo”.

E continua: “A novelista Anne Roiphe especula que o anti-semitismo, como todas as formas de racismo e intolerância, podem em última análise derivar de medos e traumas da infância: ‘A literatura anti-semita está repleta de descrições de repulsa’”, escreveu Anne. “‘Dizem que os judeus cheiram mal, que suas roupas são ofensivas, que eles têm mau hálito. Dizem que são repulsivos e comem bebês cristãos. O judeu então é para a sociedade o que o forasteiro é para as criancinhas: o ser temido, a pessoa que estraçalha o sonho da segurança permanente, dos braços maternos que envolvem e protegem eternamente. Por que, pergunta-se, um pensamento tão infantil deveria persistir na vida adulta e se transformar nas regras do clube de campo que não admite judeus, ou da universidade que estabelece quotas, ou das leis de Nuremberg que proíbem os casamentos mistos? Por que os Hutus consideram os Tutsis como forasteiros e vice-versa? Porque os sérvios, croatas e muçulmanos usam as mais ínfimas das diferenças para traçar linhas sangrentas em seus mapas? Deve ser porque a mente humana amadurece, mas se atém aos seus traumas mais antigos, seus medos mais primitivos; seus primeiros pensamentos jazem logo abaixo do segundo e do terceiro e lhes dão forma, os dirigem e se ligam aos mais complicados. O preconceito é então o eco de um grito de criança; ‘Onde está minha mãe e quem é você’”?

Nas cartas de Paulo aos coríntios, inspirado pelos exemplos do ex-judeu nazareno Jesus – desconsiderado como “O Cristo” ou “o messias” pelo povo que lhe deu origem, pretendente salvador das exclusões e aflições de sua época, como de outras, sendo os povos tanto vítimas como cúmplices de toda ignorância e perversidade ainda vigentes – para tornar dissidentes da essencial universalidade ideológica do cristianismo cônscios de suas perspectivas limitadas e limitantes, e ilustrando metaforicamente o que hoje a astrofísica reconhece como o alicerce fundamental de tudo presente no Nada, em 1 Coríntios 12:12-20 Paulo de Tarso escreveu: “Porque, assim como o corpo é um e tem muitos membros, e todos os membros, sendo muitos,constituem um só corpo, assim também com respeito à Cristo. Pois, em um só Espírito, todos nós fomos batizados em um corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres. E a todos nós foi dado beber de um só Espírito. Porque também o corpo não é um só membro, mas muitos. Se disser o pé: Porque não sou mão, não sou do corpo; nem por isso deixa de ser do corpo. Se o ouvido disser: porque não sou olho, não sou do corpo; nem por isso deixa de ser do corpo. Se todo corpo fosse olho, onde estaria o ouvido? Se todo fosse ouvido, onde o olfato? Mas Deus dispôs os membros, colocando cada um deles no corpo, como lhe aprouve. Se todos, porém, fossem um só membro, onde estaria o corpo? O certo é que há muitos membros, mas um só corpo”.

“Pois, em um só Espírito, todos nós fomos batizados em um corpo”, escreveu Paulo de Tarso sobre nossa natureza essencial, excluindo aqui qualquer justificada crença na existência de espíritos individualizados a encarnar e desencarnar continuamente, como querem dissidentes espíritas, entre outros crentes em individualistas reencarnações, como condição fundamental de evoluções – neutralizando todavia perspectivas cristãs de ressurreições individualizadas à obtenção das benesses de convivências divinas num esperado “Reino dos Céus” para “espíritos justos”.

Entre tantas perspectivas avaliativas de justas ou injustas inclusões e exclusões, para talvez explicar (embora nunca justificar) as razões dos preconceitos negativos que, para o desgosto de Deus e de Abraão, o mundo separado em raças e nações hoje tem em relação aos judeus – que, entre outros, ainda se pretende também “o único povo” digno da condição de filhos do divino patriarca, causa provável de todos os males que os judeus e outros provocam a si mesmos, estimulando outros a repudiá-los – o próprio Foxman esclarece em seu livro: “Grandes artistas, filósofos, profetas e santos sempre se perguntaram sobre as origens do bem e do mal. No fim, elas são misteriosas. O mesmo acontece com o anti-semitismo (ou o culto sionista, penso eu). Podemos facilmente rastrear suas raízes históricas e seu desenvolvimento na teologia, na política e na cultura (frutos de arbitrárias avaliações da sensibilidade e da imaginação, como eu disse no princípio deste comentário), mas sua fonte essencial nos recessos do coração humano continua insondável”, assim como as tentativas que fazemos para sondar a origem de tudo.