Sobre o livro de Gilson e a Criação segundo o diabo

Archidy Picado Filho

Recebi o livro “Da Bíblia aos Múltiplos Universos – velhas e novas visões da eternidade”, do sociólogo paraibano Gilson Gondim, há cinco anos. Nele, Gilson explica de forma clara questões como: “Há passagens bíblicas que favorecem a reencarnação? O que é o Deus racional? A Bíblia discrimina as mulheres? A Bíblia consagra a violência? A Bíblia é compatível com a moderna doutrina dos direitos humanos? A Bíblia é conivente com a escravidão?”, entre outras questões de relevância inquestionável para todos aqueles que, como ele, duvidam de tudo o que ouviram dizer sobre aquilo a que chamamos “Deus” contado por Seus inspirados intérpretes representantes.

Para leitores de seu livro tão críticos quanto ele, contudo, ficará claro que, como todos nós, Gilson não é nem pode ser o “dono da Verdade”, embora denuncie muitas contradições existentes na Bíblia e, à luz da razão, os muitos absurdos que narra. Entretanto, em alguns trechos do livro, ele não hesita em afirmar que Jesus disse exatamente aquilo que está posto na Bíblia que ele usou como fonte de suas pesquisas à feitura de sua bem sucedida obra – entre 58 outros livros citados e 9 periódicos – desconsiderando que, enquanto esteve entre seus discípulos, nenhum deles parou para escrever uma só palavra do que Jesus andava dizendo, ou descreveu quaisquer de suas boas ações. Todos os registros sobre a passagem de Jesus sobre a Terra – se é que, de fato, esteve ele mesmo por aqui – foram feitos décadas depois de sua morte (e, segundo se crê, de sua ressurreição), sem que haja provas de que os tais textos tiveram mesmo seus discípulos companheiros como autores, tendo-lhes sido atribuídas por outros narradores as autorias dos evangelhos canonizados, entre outros.

Entre as muitas verdades que diz sobre as razões para o desenvolvimento de crenças religiosas e igrejas, contudo, na introdução de seu livro Gilson Gondim nos esclarece: “Onde há muita riqueza, razoavelmente distribuída, e mecanismos de proteção social, a religião vai mal. Onde há muita pobreza e insegurança, concentração de renda e competição desenfreada, a religião vai bem. A força da religião é, portanto, inversamente proporcional ao bem-estar social”.

Mas à frente, ele nos conta que, “No Brasil, à medida que vai ficando cada vez mais difícil ganhar a vida, vai crescendo o que parece religião, mas na verdade é magia. As pessoas não se submetem ao sobrenatural. Pelo contrário: tentam manipular o subrenatural, submetê-lo aos seus desejos e necessidades Quase não se fala em salvação. Toda ênfase recai sobre ‘milagres’: prosperidade, cura e a ‘vitória sentimental’. Há exceções, mas são poucas e não crescem. A Igreja Presbiteriana, fundada no Brasil em 1859, põe quase toda sua ênfase na salvação, na vida após a morte. Resultado: passou de 498.000 membros em 1991 para 500.000 dez anos depois. (...) No outro extremo, a Igreja Universal do Reino de Deus, o reduto mais visível da teologia da prosperidade, uma igreja que só fala em ganhos terrenos, pulou de 268.000 para dois milhões de membros. Cresceu quase dez vezes em dez anos”.

Mas, talvez a razão por que os lotes do Reino do Céu perderam pretendentes esteja explicada na Oração ao Pai Nosso, onde Jesus pede que a vontade de Deus seja feita “assim na terra como no céu”. Milênios de espera frustrada do estabelecimento do Reino dos Céus por aqui, e o que escreveu o apóstolo Paulo em 1 Coríntios 9:11, podem ter justificado a corrida dos fiéis atrás de congregações que os possam ajudar a obter conquistas materiais. O certo, contudo, é que, nos debruçando a estudos profundos sobre as razões para a Criação (do ponto de vista do Espírito), fica difícil entender por que os intérpretes da vontade de Deus repudiam tanto a veneração aos valores materiais, quando Ele próprio considerou a necessidade e o valor dos elementos materiais recursos indispensáveis da manifestação de Seu infinito poder criador – principalmente as águas, sobre as quais “pairava” Seu espírito, segundo um amigo observador, “único elemento que Deus não criou”.

Assim considerado, deverá ficar claro para materialistas por que afirmo que Deus, entre cultores da matéria, é o materialista absoluto.

Diante de tantos paradoxos, entre as especulações que investigam quem ou o que deu origem ao universo material, há grupos que acreditam ser toda manifestação na matéria obra do diabo – crença que usei como tema de meu conto “A Conversão”, publicado em meu livro “Seis breves histórias sobre a Vida, o Tempo, o Amor e a Morte” – uma vez que a maior característica do tal diabo foi (e é) o desejo de se separar de Deus, considerado “o Espírito único”. Para dividir a consciência que seres espirituais de então tinham do Espírito único como fonte essencial de suas vidas, o luminoso Lúcifer, também divina criatura, utilizando todo seu poder e inteligência dada por Deus, molda as formas do mundo e dos seres as suas imagens e semelhanças, espalhando-os no cósmico vazio abissal infinito para onde, depois de sua (esperada) traição, ele se lança junto com seus seguidores.

Arrependido de tudo o que permitiu que fizessem Satanás e seus inconscientes adeptos, sendo os da Terra então chamados “homens” – então as "belas estátuas que o diabo moldou e Deus animou" – Deus tentou limpar toda sujeira aqui por eles desenvolvida jogando em todo planetário jardim do Éden o aguaceiro que, dizem, para o espanto de Noé e sua família, durara quarenta dias e quarenta noites a eliminar noventa e nove vírgula nove por cento de toda a vida na Terra, arrependendo-se Deus depois da matança por ele provocada permitindo que não apenas os “filhos de Lúcifer” se multiplicassem novamente sobre a Terra mas, com eles, todos os males produzidos neste planeta, sendo talvez a eclosão da própria criação de tudo o maior de todos os males.

Além disso – e ainda mais grave – Deus também permitiu que Satanás nos confundisse quando procurássemos saber exatamente o que é um bem ou um mal, nos fazendo crer mesmo que “os males são fundamentos de bens”, e vice-versa.

Toda esta história pode ser absurda. Mas, qual não será a explicar nossa origem e de todo absurdo que nos cerca?

Entre as narrativas absurdas da Criação, talvez seja esta a que melhor pode explicar por que muitos frequentadores de igrejas oram para que Deus livre seus entes queridos da morte, quando é ela “a única passagem para a Vida eterna”. Ou quando pedem a Deus para que obtenham tudo o que de mais materialmente valioso existe - quando tudo o que deveriam desejar é aquela essencial religação de suas consciências com o chamado "Espírito único", tão necessária ao entendimento dos valores espirituais que, “para agradar a Deus”, todos fingem cultuar.