A HISTÓRIA DO FILHO DO HOMEM

Emanuel era o maioral no morro onde morava.

Era mesmo.

Ninguém mandava mais do que ele, ninguém.

Em seu microcosmo, Emanuel mandava e desmandava.

Todos o temiam.

Na verdade, havia sentimentos de ódio e de paixão misturados quando o assunto era o líder mor do morro Universão.

Foi Emanuel quem fundou o morro Universão.

Ele trouxe todos que estão hoje lá, fora os muitos que já se foram.

Fundador do morro e criador de tudo quanto havia naquele lugar, Emanuel era visto como um grande pai.

Um severo e às vezes terrível pai.

O respeito por ele era tão grande que os moradores do morro chegavam a fazer uma verdadeira apoteose quando ele passava.

E não se sabia exatamente qual a sua origem, ninguém possuía a mínima ideia donde teria surgido Emanuel.

Ele não tinha um parente sequer, nem mãe, nem pai, nem esposa... Procurar pelas origens dele era um trabalho inútil.

Quanto à ocupação, nosso protagonista poderia ter sido o que quisesse na vida.

Qualquer profissão; advogado, médico, engenheiro, professor...

Sem dúvida ele era extremamente inteligente. Era possível perceber o quanto ele sabia das coisas, mas também sua educação formal era uma incógnita.

Não se sabia se ele possuía nível superior ou até uma possível pós-graduação...

Ele possuía diversas habilidades, diversas.

Entre elas, ele fazia, não se sabe como, umas espécies de poções mágicas e curava os mais diversos males. Os moradores do morro o procuravam sempre que estavam com os mais diversos tipos de apuro.

Emanuel era, em suma, um homem ao mesmo tempo extremamente misterioso e poderoso. Também não posso deixar de dizer outro traço de Emanuel, aliás um traço muito forte e marcante era sua notória crueldade.

Quando descobria que fora por alguém traído, Emanuel despia-se de todas suas virtudes e tornava-se alguém extremamente violento. Não seria para ninguém nada aconselhável trair sua confiança.

Nada agradável seria traí-lo.

Eu já disse que Emanuel poderia ter sido tudo o que ele quisesse, não disse? Sim, mas ele foi querer ser o dono do morro Universão, simplesmente; o homem mais poderoso de seu microcosmo.

E sua atividade era a venda de entorpecentes, ou melhor, drogas.

Como vendedor desses produtos, Emanuel possuía diversos inimigos. Muitas e muitas inimizades. Ele protegia o seu povo, é verdade. Mas, desde que este povo fizesse apoteose a ele e somente a ele.

Emanuel gostava era de ser glorificado.

Ele distribuía fotos suas aos habitantes do morro. Mandava esculpir pequenos bustos para entregar para as pessoas e ainda fazia outros maiores que estavam espalhados por todo o morro.

Ele achava-se digno desses louvores. Ele exigia do seu povo esses louvores. Era um pecado alguém adorar outra pessoa que não fosse ele. Era ele para tudo. Ele, só ele.

Emanuel punia exemplarmente aqueles que tivessem qualquer outra foto ou escultura em casa. Isso era terminantemente proibido. Também não era permitido falar o nome de Emanuel de qualquer maneira, ou seja, em vão.

Seria punido aquele que falasse o nome de Emanuel sem fazer a reverência necessária.

Certa vez, Emanuel, com seus inúmeros talentos, chamou as pessoas todas em volta dele num belo dia, e disse:

- Meus filhos e minhas filhas, até hoje vocês têm vivido sem eira nem beira, mas eu estou trazendo para vocês umas tábuas de leis que são para observarem como deverão se comportar daqui em diante.

- Todo aquele que desobedecer será devidamente punido.

Todos olharam aquelas tábuas de leis e ficaram muito admirados.

Não muito convencidos da eficácia daquelas leis, mas era mais prudente obedecer do que brincar com aquele homem cruel.

O tráfico de drogas era uma atividade que gerava muitos lucros e crescia vertiginosamente por todos os morros daquele país. Eram frequentes as guerras entre traficantes por causa de mercado de consumo para seus produtos.

Emanuel era o maior de todos os traficantes, o maior.

Em suas lutas com os outros de sua mesma profissão, ele sempre levava a melhor, sempre. Ele instruía seus soldados a matar os inimigos da maneira mais cruel possível.

Geralmente era com tiros de calibre 12 na cabeça que os adversários eram mortos pelos exércitos de Emanuel.

Porém um dia, Emanuel, entediado com sua vida solitária quis ter um filho. Mas havia um pequeno problema.

Ele não tinha esposa e descobrira também que era estéril. Mesmo assim, Emanuel queria muito ter um filho e começou matutar na ideia de como iria conseguir um garoto para ter como filho.

Matutar e matutar.

Havia um casal bem pobrezinho no morro.

Um carpinteiro e uma dona de casa. Ela estava grávida e seus recursos minguavam a cada dia. Emanuel mandou que seus capangas vigiassem em segredo aquele casal e dessem de comer àquela mulher para que o filho nascesse forte.

Quando a mulher desse à luz à criança, que já havia sido revelada por meio de exame que se tratava de um menino, o capanga deveria verificar se esta era perfeita. Se assim a criança fosse, o capanga tinha ordem para arrancá-la da mãe logo após o desmame.

E assim sucedeu.

O menino era bem bonito.

Uma beleza padrão europeia; loirinho, olhos azuis, um bebê fofo que todo mundo queria apertar as bochechas.

Mas o tempo, como sempre, rapidamente passava.

O menino crescia e crescia.

Logo Emanuel percebeu que se tratava de uma criança especial.

Bem diferente do “pai”, o menino era da paz.

Pacifista convicto, não queria envolvimento com os negócios do pai, e logo aos doze anos já debatia com os pastores evangélicos e com os padres sobre o que seria o bem e o mal, qual seria a finalidade da vida, quem somos, de onde viemos, para onde vamos?

Essas eram as questões do garoto.

Era um homem à frente do seu tempo. Deixava os pobres padres e pastores no chinelo.

Emanuel tinha sentimentos mistos em relação ao seu filho. Ora o amava com veneração, ora o odiava com muita intensidade.

O menino crescia cada vez mais, e estudava com afinco.

Um dia, quando fez trinta anos de idade, o filho de Emanuel numa atitude inusitada, começou a ter umas ideias um tanto quanto subversivas, sendo filho de quem era.

O menino, agora um homem, saia pelas ruetas do morro e começava a dizer às pessoas que elas deviam amar umas as outras, incondicionalmente.

E tem mais, ele não era religioso, não queria criar uma religião, de forma alguma, ele não professava nenhum tipo de religião.

Os religiosos, que eram os adoradores do pai dele, viam-no com maus olhos.

Achavam-no um herege, um sacrílego.

O filho de Emanuel, chegava a dizer, para a tristeza de seu pai, que se alguém lhe ferisse a face direita, para que desse também a esquerda para ser ferida.

E Emanuel apenas olhava de longe, decepcionado, as ações do filho. O filho, ao contrário de todos, não o adorava, não o louvava. Dizia que não era necessário adorar ninguém, louvar ninguém. Que isso era uma enorme tolice.

Nisso, três anos se passam, e o filho de Emanuel continua a pregar sua mensagem por todos os lugares possíveis.

Mas um dia, em uma guerra do tráfico, o morro Universão foi invadido. Totalmente tomado por uma milícia inimiga.

O morro de Emanuel estava completamente rendido.

Emanuel, muito espertalhão, pegou logo o seu helicóptero particular e fugiu imediatamente.

Nesse mesmo dia, o filho de Emanuel que estava a espalhar sua mensagem por outros morros chegou ao Universão e percebeu que as coisas não estavam indo muito bem.

Então os inimigos de seu pai aproveitaram-se de sua inocência e o capturaram.

Começaram logo a torturá-lo e a açoitá-lo.

Depois de um dia de torturas mil, enviaram uma carta a Emanuel, que estava em outro morro, dizendo a este sobre a situação de seu filho. Emanuel agora tinha duas alternativas: Ou entregava todo o poderio do tráfico para seus inimigos ou seu filho seria morto no micro-ondas.

O leitor sabe o que é o micro-ondas?

Não, não é aquele eletrodoméstico que você tem em casa para requentar sua comida fria. O micro-ondas do tráfico consiste em colocar uma pessoa dentro de vários pneus velhos até mais ou menos a altura do pescoço.

E, logo após a acomodação da pessoa nesse aconchegante espaço, é jogado nela algum líquido inflamável, como gasolina ou álcool, por exemplo.

Daí vem a parte final:

Risca-se um fósforo e atira-o na mistura pessoa X pneu X líquido inflamável.

O resultado desse conúbio o meu leitor poderá antever sem grande dificuldade.

Mas, voltando à narrativa, Emanuel agora teria que escolher entre salvar o seu povo e seu filho, ou entregar o seu poder de rei do tráfico daquele lugar.

Emanuel não pensou muito e logo disse que o sacrifício do filho seria necessário para a salvação de toda aquela gente.

Dali para frente, todo aquele que se lembrasse do sacrifício saberia que tinha sido salvo por Emanuel e pelo martírio de seu filho.

- Podem matá-lo! Disse Emanuel.

Então os soldados do traficante inimigo levaram o filho de Emanuel para o micro-ondas...

Vou poupar os meus leitores dos detalhes sórdidos desse pedaço do conto.

As pessoas que estavam presas, ao invés de serem libertadas, foram também todas mortas da mesma forma que o filho de Emanuel.

Este que também tinha como prática enviar as pessoas para o micro-ondas.

Ele ainda ficava triste pela morte da pessoa, pois não queria que esta morresse. Assim, vivo para sempre, poderia queimar o infeliz por toda eternidade.

Apesar disso, Emanuel até hoje mantém sua fama de bom e amoroso. Mesmo querendo que muitas e muitas pessoas queimem vivas para sempre.

Bonzinho nosso Emanuel, não?

Esse acontecimento ficou gravado na memória de todas as pessoas durante muitos e muitos anos após o ocorrido. Todos se lembram da história em detalhes até hoje.

E também até hoje Emanuel é louvado e adorado.

Seu filho também é lembrado e muito.

Contudo, foi esquecida a mensagem do filho de Emanuel.

Ninguém absolutamente ninguém fez aquilo que o menino falava quando começou aos trinta anos pregar pelas ruas.

A conclusão é que a vida desse garoto, ceifada tão cedo, foi inútil.

As pessoas lembram-se dele, mas não se lembram do principal de sua mensagem:

O amor incondicional a todas as pessoas.

A mensagem caiu em completo esquecimento.

Não digo que caiu em desuso, pois de fato nunca, absolutamente nunca, foi usada.

Depois que ele morreu apareceu um monte de gente falando em seu nome, mas não passavam de farsantes, não eram nada mais do que hipócritas.

Montaram templos em seu nome, fizeram obras de arte para ele, construíram hierarquias e doutrinas, mas tudo, tudo muito longe dele, a anos-luz dele.

Tudo que esses falsos seguidores dele faziam e diziam era simplesmente desnecessário e completamente inútil.

Hoje, muito tempo após a morte do filho do Emanuel, a moda é ganhar dinheiro com o nome dele.

É isso mesmo!

O nome do filho do Emanuel em nossos dias está diretamente relacionado à grana, bufunfa, money! Saca?

O nome é bem forte.

Hoje qualquer um ergue um templo e começa a faturar alto com as besteiras e tolices que diz em nome do filho do maldoso Emanuel.

E nem te digo que a grande maioria da população acredita nessas mentiras.

Pobre rebanho, pobre rebanho!

Fico imaginando que se ele, o filho do Emanuel, estivesse vivo hoje, se é que ele um dia realmente existiu, ele e sua mensagem impraticável, esdrúxula; se estivesse vivo e visse toda essa bandalheira, o que será que diria?

Qual seria a opinião dele diante de todo esse circo montado em torno da sua lenda?

Quem saberá? Quem saberá?

Frederico Guilherme
Enviado por Frederico Guilherme em 24/06/2010
Reeditado em 25/06/2010
Código do texto: T2339694
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