Identidade e sujeito: por uma cultura do pertencimento local

Educador Isaac Fonseca Araújo¹

Tenho provocado colegas mirienses estudantes em outros municípios com questionamentos do tipo: “o que você fará ao término de sua graduação, voltará aos Caminhos de Canoa Pequena, empenhado em construir carreira profissional, ou tem planos para águas mais profundas?” Já não me surpreendo quando ouço convictas respostas desta natureza: “Deus me livre, de lá eu já vim! Daqui é pra frente, amigo”.

Apesar de certo aborrecimento que me causa perceber tal repulsa sinto que essa é uma oportunidade de reflexão sobre o sentido que vamos dando às muitas identidades por nós (e de nós) construídas ao longo da vida. Compreendo que, como pano de fundo, uma resposta assim definida mascara o conceito que esse indivíduo tem de seu lugar, tanto no que diz respeito à origem e/ou essência, quanto ao que representa, possui e produz.

Dentre as múltiplas lições possíveis de serem depreendidas com a análise daquele fato uma, a princípio, chama-me a atenção. Tendo em vista que a resposta referida traduz – em essência – uma saudável ambição por crescimento profissional e econômico (para melhoria de vida) infiro que exista, oculto a ela, um entendimento conceitual de que o distanciar-se do solo materno é pressuposto do auto-desenvolvimento. Dito com outras palavras: o desenvolvimento vem de fora, está longe (de lá eu já vim/daqui é pra frente). Para que “eu” melhore de (suba na) vida tenho que ir embora.

Sem desconsiderar que um distanciamento profissional eventualmente se faz necessário (conjuntural, não essencialmente) recordo, ao fazer esta leitura, de um clássico e errôneo princípio capitalista de pensar o desenvolvimento. Segundo esse sistema para que uma economia cresça é preciso concentrar capital nas mãos de uns poucos “iluminados”, de quem se espera “sabedoria” e “competência” na administração dos negócios. Há um erro capital nessa lógica: os ricos possuem inclinação para guardar muito, poupar em demasia, e isso reduz a possibilidade de fomento produtivo, o que enfraquece a capacidade de oferta de trabalho, a rigor, a única fonte de geração de riquezas. Em vez de concentrar é preciso, pois, distribuir, uma vez que o aquecimento de uma economia depende, substancialmente, da circulação de capital. Estabelecendo um paralelo entre esses dois casos intriga-me a inversão de valores em ambos.

Uma segunda leitura possível extraída de nossa “historinha” remete-me ao aspecto cultural da questão, porque trata de identidade. Identidade diz respeito ao que sou, de onde vim, o que represento para a sociedade. Nesse sentido, um mesmo indivíduo pode carregar consigo múltiplas identidades: a de filho, de pai, de católico, de trabalhador, entre outras. Vestido com cada uma dessas personalidades (mesmo sendo uma mesma pessoa) esse ator participa de cenários e experimentos específicos, nos quais vai transmitindo às pessoas (com a própria vida, a partir das características de filho, pai, católico e/ou trabalhador) quem ele é, mesmo não dizendo nada. Por isso, a expressão “Deus me livre” reflete um sentimento de recusa a própria história, porquanto atinge o contexto de um chão maternal. Essa repugnância alimenta outra constatação, corroborada pelo vazio, supérfluo, imediatismo, modismo do século XXI: o belo, o chique vem de fora, está longe; o cafona, o atrasado mora em nossa comunidade, vive conosco. Assim muitos têm entendido.

Ora, é sabido por muitos que um dos alicerces de uma identidade sólida e historicamente construída repousa na consciência autônoma de que sou sujeito de direitos, protagonista de minha história, agente de transformação da sociedade. Não há como pensar em cidadania, democracia ativa, emancipação sociocultural e econômica, abdicando-se do usufruto dessas prerrogativas. E, certamente, um dos primeiros elementos para formação desse homem-completo é o sentimento de pertença. Perceber-se (ideológico-filosoficamente falando) pertencente a e enraizado em um dado território, parte de sua história social (portanto, de sua formação) é indicativo de uma revolução branca.

De fato, dois grandes ganhos são advindos dessa mudança de mentalidade: (i) o desenvolvimento passa a ser concebido como uma construção de dentro para fora e de baixo para cima, processo em que eu me torno co-responsável, sabendo que os ganhos trazidos de outras vivências deverão ser multiplicados com meus pares, para que então estes possam garanti-los às futuras gerações e; (ii) o meu lugar agora tem o valor devido, não mais nem menos que qualquer outro, bonito e importante como é e com o que tem – único em meio a um universo imensurável.

Pensar com essa inclinação lembra os escritos das sagradas escrituras. Em Lc 17, 20-21, o Mestre adverte ao afirmar: “O Reino de Deus não vem ostensivamente. Nem se poderá dizer: ‘Está aqui’ ou: está ali’, porque o Reino de Deus está no meio de vocês”. Esse ensinamento nos convida a conceber que os sinais da nova terra, o mundo das bem-aventuranças estão dentro de nós. Não são a distância ou a proximidade, as estruturas e os recursos que definem, mas os valores. Daí porque um sábio quis nos deixar de herança, agora em paráfrase: “é preciso que nos tornemos a mudança que desejamos ver no mundo”.

O novo sujeito, ao se reconhecer/aceitar pertencente a uma concretude territorial, contribui para construção de um corpus de cultura local, que o emancipa e dá autonomia a “sua” comunidade. Há dignidade e liberdade nessa relação de entrega homem-meio, com mediação duma cultura sócio-historicamente vivenciada.

É feliz Leonardo Bof, por oportuno, em seus utópicos ideais de filosofia e vida: “o ser humano deve explorar cada dia mais a capacidade de se tornar “águia” – que voa alto, tem força e garra para descobrir e explorar novos horizontes – sem deixar de ser “galinha”, sempre retornando às origens, não apenas como cuidado, mas em sinal de que a vida é um constante (re)começar, um movimento circular ininterrupto.

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¹Educador Popular. Licenciado Pleno em Letras (Língua Portuguesa) pela Universidade do Estado do Pará (UEPA).