Metáfora Bovina

“Vida de gado, povo marcado” - Esse pequeno excerto de umas das músicas do Zé Ramalho me faz pensar muito no que realmente acreditamos e para onde estamos caminhando. Exatamente pelo fato de sermos seres humanos, políticos em demasiada natureza e essencialmente devotos na dimensão de nossa franca e profunda fé em tudo. Vejo as pessoas, e até me incluo de certa forma, indo para a direção que o berrante toca. Esperando ansiosamente pelo estrondoso som de quem dita as regras. Curtindo aquele momento, ali, sobre o pasto verde, mastigando a grama, ruminando não muito mais o que se “consome”, engolindo tudo o que vier pelo caminho. Felizes? Não sei. Mas, enquanto estivermos de barriga cheia, não há o que reclamar.

Nas fazendas de gado, o rebanho tem que ser movimentado de um lugar para outro, mas sempre mantido do lado de dentro da cerca e, no fim do dia, é trazido de volta ao aprisco para, dentro do curral, protegido da chuva e dos perigos da noite, possa descansar e sorver a sua porção de sal grosso e ração. Enquanto isso, ganha peso e vai fazendo o esperado volume. Trazendo a lente da câmera para a nossa realidade, num close explícito daquilo que conhecemos muito bem, faço o favor de transformar esse texto numa bovina metáfora da condição humana. Sim, vivemos como gado. É verdade. Somos domesticados, desde cedo, para andarmos em bando, guiados para não dispersar e nem andarmos sozinhos. Nossa força de trabalho, pele, sangue, carne e derivados são valiosos para o sistema usar como energia propulsora dos motores capitalistas. Escandaloso? Sim! Foi exatamente o sentimento que tive quando vi essa cena em minha mente. E olha que nem sou comunista.

Se olharmos a nossa vida por cima, se sairmos da posição em que estamos e tentarmos visualizar a situação de um ângulo superior, veremos que há algo muito estranho nesse modelo de sociedade no qual vivemos. Nascemos, crescemos, estudamos, arrumamos um emprego. Aí vem, logo em seguida, a aposentadoria, para depois de tudo, abraçarmos a morte. Ok! Muito simples. Mas, pense comigo. Porque fazemos o que fazemos? Porque agimos e nos comportamos desse jeito? Fomos treinados, domesticados, estimulados, inspirados e adestrados para viver sob a égide de um panteão de logotipos que representam todas as nossas vontades. Vinculamos nossa qualidade de vida na mesma proporção de importância das marcas que usamos. Sejam remédios, roupas, perfumes, automóveis ou eletrodomésticos, não importa, mensuramos nosso status de acordo com o valor que tais símbolos possuem na bolsa de valores, sem esquecer dos comerciais vinculados no horário nobre.

Todo mundo sabe que vivemos num grande teatro social. Bom, nem todo mundo.

Grosso modo, existem três personagens nessa saga. Aquele que faz (povo), um outro que gerencia quem está fazendo (governo) e quem manda nesse tal gerente (iniciativa privada). O chefe é a figura de todas as instituições (bancos, indústria, especuladores, etc.) que têm seus interesses financeiros, pagando para qualquer instância permitir que continuem ganhando seu dinheirinho. O gerente (todas as esferas governamentais) usa de suas prerrogativas para manter a máquina funcionando, valendo-se de qualquer “desculpa” para isso. E, por final, a grande massa, o povo, aqueles que são desprovidos de qualquer possibilidade de reação, pois, como estão conectados à Matrix e iludidos de que está tudo bem. Afinal, estão empregados e comprando suas coisinhas em dez prestações, além de poder comer sua pizza no final de semana, pagando com o reluzente cartão de crédito com quarenta dias de prazo. Os desempregados também estão “na fita”, existem soluções para manter esses cidadãos felizes e sorridentes. Não faltam seguros e bolsas para todos os gostos. Tudo pelo social.

A mídia vende modelos insuperáveis, pior ainda, inalcançáveis, mostrando pessoas que possuem aparências e usam produtos que pouquíssimos teriam a possibilidade de conseguir. Quando estamos quase perto de ter algo parecido, eles mudam o modelo e dizem que já estamos fora de moda. Isso deixa a gente triste, sabia?

Vivemos constantemente frustrados e com medo. O jornal diz que a polícia está fazendo o trabalho dela, porque acabaram de fechar uma boca de fumo ou realizaram uma grande apreensão de drogas, para depois descobrirmos que a própria polícia estava envolvida e que aquilo era só a ponta do iceberg. Ou seja, compramos falsos modelos de segurança, vivendo iludidos com uma impossível imagem de realização que vemos espalhadas pelas ruas em outdoors e revistas, gastando todo o nosso suado dinheiro em coisas que não precisamos.

A gente se mata de trabalhar para alcançar um sonho de realização financeira, conforto, mas, no fundo estamos mesmo é fornecendo a nossa energia para alimentar cérebros eletrônicos, que nos vêem apenas como números, ou coisas conectadas a um sistema que nos suga diariamente, constantemente, incansavelmente, querendo a nossa vitalidade e devoção para garantir que suas engrenagens nunca parem de funcionar.

A nossa capacidade de acreditar, o nosso inquestionável talento para a submissão e o famigerado desejo político, bem como a nossa profunda fé em tudo faz com que sejamos perfeitas pilhas fornecendo a eletricidade ideal para o engenho capitalista gerar suas enxurradas de lucro.

A mídia é o argumento arrumadinho e maquiado que alguns usam para tirar proveito do incauto membro da Sociedade da Informação. O “Quarto Poder”, como é chamada a mídia, fornece persuasão suficiente ao resto do corpo social, fazendo com que este a siga servil e devotadamente em direção ao som do berrante, sem imaginar que, no fim, lá onde afunila o caminho, seremos todos levados para o mesmo lugar. Depois de sermos sugados, só restará tirar proveito da nossa carcaça, e o que não tiver valor será jogado aos abutres. Trágico? Sim. Profundamente. Mas, a verdade é essa.

A questão não é jogar a TV na lata de lixo e nem tocar fogo nas bancas de revista, muito menos rachar nossos computadores à machadadas. O negócio é nos desconectar do mundo mentiroso que inventaram para nos enganar e não acreditar piamente em tudo que nos dizem. “Tudo me é lícito, mas nem tudo me convém”, disse um filósofo do novo cristianismo. É isso aí, posso usar da minha capacidade de aprender e não me permitir ser escravo de nada, nem de ninguém. Somos seres políticos, mas, por isso mesmo, seres criados para serem livres. Uma vez fora da Matrix, quando a ficha cair, vamos perceber que a vida se torna mais difícil, porque o sistema cai sobre nós, caçando os rebeldes para neutralizar o movimento que coloca em risco sua grande fonte de energia. Essa guerra é para quem tem coragem. Quem tiver, um dia verá que existe um jeito de saborear a vida sem precisarmos estar conectados a nada, entregando os melhores anos de nossas vidas para serem queimados em benefício de quem só nos conhece como gado destinado ao matadouro.

William Barter
Enviado por William Barter em 17/11/2010
Código do texto: T2621378
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