A obra de Anita Malfatti no contexto da Semana de 22

Introdução

Bem, devo confessar antes de tudo a preferência sincera de meu olhar em direção à arte moderna. Muitas palestras, conferências e aulas sobre esse período interessaram-me profundamente. Isso pode ser que nada tenha de racional, mas somente uma questão de gosto ou talvez de um maior conhecimento de contexto histórico sobre o período em que floresceu, já que, para assimilarmos muitas obras é indispensável que as coloquemos dentro de determinados circuitos, que se relacionam com a complexidade do lugar-temporal no qual elas estão inseridas. No caso específico da arte moderna: a Europa e seguindo sua difusão planetária: a As Américas do norte e do sul, principalmente.

As artes, assim como as técnicas de produção, o conhecimento científico e as leis. Toda contribuição da civilização ocidental - pelo menos até meados do século XX - tem o velho continente como baluarte. O novo mundo segue o processo de olhar a Europa como espelho, como referência e isso por razões um tanto óbvias. Após, os grandes conflitos mundiais assistimos a uma perda de hegemonia européia, sobressaindo-se os EUA como novo referencial econômico e de civilização. A arte moderna, da forma genérica que sugere Anne Cauquelin, como a arte do século XX, está inserida em todo esse contexto conflituoso e por isso mesmo foi objeto de escolha de minha breve pesquisa.

Assim, já no terreno da arte moderna em terras brasileiras, de acordo com Tadeu Chiarelli:

“O que parece distinguir a arte brasileira moderna e contemporânea da maioria da produção artística realizada em outros países é que aqui, pelas características que a cultura local impôs ao circuito artístico, uma parte significativa dessa arte preservou, desde Tarsila, uma relação menos idealizada entre o objeto de arte e o espectador, típica da experiência popular, e trazida para o âmbito da arte erudita local pelo imigrante e pela mulher”1.

Dentro desse processo tomei a liberdade de superar quaisquer que fossem as querelas sobre “as origens” (que a mim me perecem mais querelas sobre os “donos da origem”) e escolhi a Semana de arte moderna de 1922 em São Paulo. Minha intenção era identificar o que havia de mais inovador dentro de um acontecimento que se pretendeu inovador. A historiadora da arte Aracy Amaral esclarece em seu livro Artes plásticas na semana de 22, a impossibilidade de classificar a arte apresentada no evento como integralmente moderna, mas adianta que, eram realmente inovadoras se tomamos como referência o que se fazia no Brasil em termos de academismos isolados das novas linguagens surgidas, dos novos estilos europeus.

As minhas dúvidas foram diversas. Que artista escolher? Que peça selecionar? Pintura ou escultura? De igual medida, a consciência de minha ignorância plástica. Não costumo ir a exposições de artes plásticas apesar de viver em um centro cultural que não costuma dever a outros em termos de exposições. Todo o meu conhecimento em artes plásticas é teórico e livresco. Bem, isso já é algum começo. Sendo assim, o substancial estudo de Aracy Amaral acerca da Semana de 22 deu-me um arcabouço fora do comum para entendê-la em suas aspirações e em seus diversos pontos de análise.

A autora argumenta que o objetivo principal da semana de 22 seria uma derrubada de todos os cânones que legitimavam entre nós a criação artística. A conseqüência direta dessa atitude, sustenta, citando Mário de Andrade, foi, mais tarde, o direito permanente à pesquisa estética, a atualização da inteligência artística brasileira e a estabilização de uma consciência criadora nacional. Esta última, caracterizando uma preocupação nacionalista, resumir-se-ia em “voltar-se para si mesmo e perceber a expressão do povo e da terra sobre a qual se estabeleceu”2. Por outro lado, um universalismo de expressão presente na atualização da linguagem brasileira com a do mundo contemporâneo.

A Semana de 22, para Amaral, seria – partindo de um contexto sócio-político – “o registro sintomático da pulsação do organismo nacional”. O acontecimento seria, então, o sintoma artístico de uma complexidade social maior. Tempos de renovação do cenário político-econômico brasileiro. Teria, como já foi dito, poucas manifestações de vanguarda do tempo internacional, à exemplo de Paris ou dos outros centros artísticos europeus. Entretanto, foi esse contato íntimo de alguns artistas brasileiros (muitos descendentes de imigrantes) e naturalizados, com os grandes centros internacionais que influenciou o ambiente paulista a realizar o evento que marcaria uma renovação estética nas artes brasileiras.

Artes Plásticas na Semana de 22

O título da obra seria, talvez, a grande justificativa dela mesma. A pintura e a escultura seriam as duas grandes referências do evento e o ponto convergente das outras artes. As duas com os respectivos representantes: Anita Malfatti e Victor Brecheret influenciaram toda uma arregimentação em torno de um começo. Um evento que ocorreu em fevereiro de 22 no salão do Teatro municipal. Elitista? Não há dúvidas. Reduzido? Sim. Mas, que ao analisarmos seus antecedentes temos nas artes plásticas as figuras que aprendem no exterior as novas artes de vanguarda. São elas consideradas catalisadoras de um movimento tido como inevitável, pois que, era fruto de um contato com o mundo europeu. Este, inevitavelmente constitutivo do processo histórico de formação do Brasil.

A exposição de Anita Malfatti em dezembro de 1917 – janeiro de 1918, pelo clima de escândalo gerado em torno a ela com o artigo “paranóia ou mistificação”, de Monteiro Lobato, que atacava violentamente a jovem artista. Logo surgiram algumas manifestações de defesa à arte da pintora como Mário e Oswald de Andrade que a defendeu de imediato na imprensa. Di Cavalcante e Guilherme de Almeida também se uniram ao grupo dos defensores. O primeiro deles seria, ainda, um dos idealizadores da Semana. Já na escultura, pra mim pessoalmente, a impressionante obra de Victor Brecheret já concorria nos concursos para os novos monumentos paulistas. Seria, pois, uma de suas peças, a principal influência de Mário de Andrade na produção de Paulicéia desvairada.

Para Aracy Amaral, e o seu livro destaca bem sua tese, as artes plásticas – pintura e escultura, principalmente – foram as artes motoras e maiores influenciadoras da Semana de 22. A autora procura inclusive rebater a tese corrente de que a Semana foi predominantemente futurista a partir dos três principais artistas de maior influência. Di Cavalcante, o idealizador; Anita Malfatti, a que mais expôs de todos os pintores e Lasar Segall que nem chegou a expor na Semana, mas que foi grande influência devido à sua forte influência da pintura alemã. Assim, longe de futurista, em termos de arte na maioria das manifestações, se fossem enquadradas, predominaria um pós-impressionismo.

O expressionismo de Anita (1889 – 1964) em O homem amarelo

Filha de imigrante italiano com uma americana de ascendência alemã protestante a jovem descobriu logo cedo algum talento na pintura se mudou para a Alemanha com o financiamento de familiares. Passando pelos Estados Unidos

“quando ela acha a escola que tanto desejava encontrar na vida, a Independent School of Art, cujo professor, Homer Boss, é um pintor-filósofo de tendência realista. Absorve de cada pintor, de cada escola - fauvismo, sincronismo ou cubismo - só as características necessárias para montar sua própria linguagem”3.

Alcançou, segundo os críticos, o auge de sua produção artística voltada para um vibrante expressionismo. A mostra apresentada por Anita em 1917-18, segundo seus contemporâneos, era de uma vivacidade nunca antes vista no Brasil.

Para Di Calvalcante, ela seria a revelação de um algo mais novo do que o impressionismo, pois, segundo ele “Anita vinha de fora, seu modernismo, como o de Brecheret e Lasar Segall, tinha o sela da convivência com Paris, Roma e Berlim”4. Da mesma forma, muitas de suas peças expostas na Semana foi uma repetição da polêmica anterior que causara (com A estudante russa, O homem amarelo, O japonês). Sua mostra em 22 teve o maior espaço entre os expositores de pintura com doze telas a óleo e mais oito entre gravuras e desenhos. Dentre elas, a que causara uma atenção especial em contemporâneos como Mário de Andrade, desde 1917, seria O homem amarelo (ver em Anexo).

Uma tela bastante comentada por fazer parte das que estremeceram o ambiente tanto em 1917 como na Semana de 22. A cor descompromissada, o traço-pincelada gestual, os diversos planos da figura simplificados conferindo mais vigor em sua grafia. Características cubistas e expressionistas. No quadro a figura humana é o personagem principal, que se torna secundário perante a explosão de cores, pinceladas firmes, o principal acontecimento deste quadro é a operação cromática, bem diferente do naturismo que predominava no Brasil. O homem do quadro não é propriamente um homem, ou sua caricatura, mas ato potencializado em cor sob máscara humana, levemente sóbria, quase indiferente a si mesma, e uma das figuras mais expressivas de Anita Malfatti.

Ora, muitas histórias permeiam a figura influente de Anita, inclusive, pela sua ampla convivência com os modernistas da primeira geração. Tendo conhecido e apresentado Tarsila ao famoso grupo dos cinco, formado pelas duas pintoras e os escritores Mário e Oswald de Andrade, além de Menotti Del Pichia. A relação estreita com o grupo poderia ter dado à artista, a meu ver, uma carreira voltada para a manutenção de sua pintura vanguardista. Por que isso não teria acontecido? Tanto Aracy Amaral, como o site do MAC e também alguns blogueiros indicam um esgotamento de sua fase áurea após 1924 quando de seu retorno à Paris. Qual seria o motivo? É provável que tenha havido cobranças de seus antigos parceiros da Semana com relação a um envolvimento maior com a proposta modernista vinculada aos mesmos.

O fato é que muitos apontam uma fase bastante depressiva da pintora após o artigo de Lobato “paranóia ou mistificação”. Crítica que seria responsável por uma sensível mudança de rumos na pintura de Malfatti. Em resenha do livro Anita Malfatti no tempo e no espaço de Maria Rossetti Batista, publicada no site revista da USP o pesquisador Júlio Roberto Katinsky6 levanta uma série de questões pertinentes acerca da trajetória da pintora, apresentando olhares distintos acerca do ambiente artístico brasileiro da época. Observa ele “Parece que havia um consenso entre amigos e inimigos de que o choque provocado por essas pinturas [de 1917] não só abalou o “bem comportado” ambiente cultural paulistano, como também a reação dos elementos mais conservadores prejudicou definitivamente o desenvolvimento posterior da pintora.

Bem, cabe aqui registrar a proveitosa contribuição da pintora para a arte brasileira e demonstrar, sobretudo, a importância estética de sua obra num contexto tão atribulado. Naturalmente, toda polêmica que envolve os terrenos de disputas da história nesse período está permeada pelo acontecimento da Semana de arte moderna de 22, onde visivelmente, os conflitos genealógicos permanecem latentes ainda hoje, cabendo a um mero neófito neste campo do conhecimento, apenas conhecer cada vez mais a fundo a documentação rica desse período tão importante da história do nosso país.

Referências bibliográficas

AMARAL, Aracy. A. Artes Plásticas na Semana de 22. 5ª edição: São Paulo: Ed 34, 1998.

BATISTA, Marta Rossetti. Anita Malfatti no tempo e no espaço. São Paulo: Editora 34, Edusp, 2006.

CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: Uma introdução.

CHIARELLI, Tadeu. Arte internacional brasileira. 2ª edição. São Paulo: lemos-editorial, 2002.

Tarciso Alves
Enviado por Tarciso Alves em 14/12/2010
Reeditado em 27/06/2011
Código do texto: T2670723
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