A fronteira é concreta, a cultura abstrata

Seguido me encontro divagando numa espécie de autocontestação da minha condição de rio-grandense, gaúcho... E, se eu não nasço no Rio Grande do Sul?

Analiso sempre, em qualquer lugar que ando, a condição humana perante a cultura dos habitantes do lugar. Concluo que mais do que o território, a nação é o seu povo com sua cultura. Seus usos e costumes, sua música autóctone, sua forma de agir e de pensar é que fazem a unidade nacional abstrata de uma região, mesmo que ela não seja um país ou esteja em mais do que um.

Acredito na legitimidade da cultura pampiana como uma nação cultural aparte na América, o que não quer dizer que esteja pregando a secessão. Os rio-grandenses compreendem e são mais compreendidos por uruguaios e argentinos do que por alguns compatriotas de outros estados. Apesar da diferença de idioma, estão impregnados na cultura desta região, alguns signos comuns aos distintos países, que induzem a identificação como partes da mesma unidade cultural.

Esta semelhança de hábitos faz com que em ambos os lados as pessoas estejam de coração aberto para a recepção dos atributos culturais da outra margem do traçado da fronteira e acabam assimilando até o que não lhes é comum. Noto, por exemplo, quando estou na Argentina, que as províncias daquele país possuem bem demarcadas as manifestações culturais, os gêneros musicais e os padrões artísticos. Enquanto que nós os rio-grandenses, bem como os uruguaios, temos uma cultura diversa em nosso território e assimilamos os gêneros musicais de distintas províncias do país vizinho e as aculturamos com maior facilidade do que os próprios argentinos.

Ao passar a fronteira ouço, por exemplo esta frase: “No me gusta mucho chamamé, yo soy de Salta”. Enquanto que eu gosto de chamamé, copla, chacarera, zamba, huella, milonga, etc...

Da mesma forma, eles visualizam o Brasil como um país continental e dificilmente compreendem as grandes diferenças culturais e sociais brasileiras. Assimilam com facilidade o que nós do garrão da pátria não entendemos como totalmente nosso.

Nesta recente estada na Argentina tenho a oportunidade de acompanhar pela televisão e pelos periódicos as reportagens do falecimento da poetisa, compositora, escritora e cantora María Helena Wash com grande interesse porque me encanta sua obra. Talvez tenha mais identificação com a obra desta argentina do que com a de um poeta do Maranhão, por exemplo. Há muitos anos me pego cantarolando “Tantas veces me mataron,/ tantas veces me morí,/ sin embargo estoy aqui / resucitando.” ... “Cantando al sol como la cigarra / después de un año bajo la tierra, / igual que sobreviviente / que vuelve de la guerra.”...

Lembro, quando no final da dácada de 80 difundo esta e outras canções de sua autoria num programa denominado América Crioula. E, como de costume por respeito a criação intelectual, sempre cito o nome da autora.

Ao apresentar a Festa Nacional do Chamamé de Corrientes, sinto-me a vontade por estar dentro de um circuito cultural que faz parte da minha vida. Apresento artistas que desde o meu ingresso na comunicação integram o repertório de meus programas de rádio ou que já conheço de antes. Outros artistas, passo a conhecer no decorrer do festival, mas me relaciono com mais tranquilidade do que se estivesse num festival em outro estado brasileiro. E o melhor de tudo é que sou aceito pelo público, pelos artistas, pelos colegas e pela organização como eu realmente sou, um deles.

Nesta horas que me interrogo e ao mesmo tempo agradeço a Deus por ser gaúcho rio-grandense. Por ter esta alma inquieta que sempre busca a integração dos povos através da cultura. Por ser este nacionalista, que não perde de vista a real condição humana diante da cultura de uma região que os interesses político-econômicos insistem em manter dividida. Por compreender que mais do que o idioma, as fronteiras e os brasões, os seres humanos são os que decifram e reproduzem signos culturais capazes de unir uns aos outros, compatriotas ou não.

Se eu não nasço no Rio Grande do Sul, pago que também me é querência, este estado limítrofe com dois países, perco a preciosa oportunidade de refletir sobre a necessidade de cruzar fronteiras e abraçar a todos como irmãos.

(Publicado no Jornal do Nativismo)