A SEXUALIDADE DE SALVADOR – O ÂNGELUS DE MILLET

Leonardo Lisbôa

O filme ‘Poucas Cinzas’ do diretor Paul Morrison mostra a homoafetividade de Salvador Dali, que não chegou a se concretizar em sexualidade. Ele se sentia atraído e deixava-se levar pelo jogo de seu amigo e poeta Federico Garcia Lorca. Talvez pelas suas dúvidas, talvez pelas críticas de seu outro amigo, Luis Buñuel, talvez porque não se permitia, talvez porque fosse o que mais jogava, brincava, com esta possibilidade.

O certo é que se refugiaria em sua futura companheira, Gala. O certo, também, é que as teorias de Freud embalavam as explicações psico-sexuais daquela época. O mundo, as pessoas, os famosos, sobretudo, procuravam se entender através das explicações e justificativas freudianas. E aí há o encontro daquele que foi o pintor dos sonhos – surreal, com o médico que tratava os pacientes buscando as razões do inconsciente, desvendando os sonhos. Seria nesta linha que Salvador Dali se entenderia, se justificaria, se mostraria como o masturbador confessado.

Desta premissa é que vamos ter o fio das justificativas.

Em ‘O mito trágico do Ângelus de Millet’, Pierre Ajame vê o início daquilo que marcava o pintor quanto a sua sexualidade que se expressaria como catarse em sua plástica e textos: “Nos arredores de Figueras nasce um pequeno vegetal cheio de uma substância chamada “leite de Santa Tereza”: a mãe de Salvador o proíbia de tocar nessa planta cujas propriedades venenosas temia; seus colegas de escola asseguravam-lhe que, “esfregado com o leite de Santa Tereza, o pênis adquiria proporções enormes que ocasionavam a morte”. Leite – mãe – pênis – autocastração... Não é de se estranhar a importância que Dali deu a Freud. A partir desta proposição de base, as mais obscenas variações podem ser enxertadas, como “a lembrança ou ‘falsa lembrança’ de minha mãe chupando, devorando meu pênis”. (p. 45).

A partir daí o que seria íntimo ele tornaria público em sua obra artística e em seu diário, como um desavergonhado, despojado de hipocrisias, confesso, ou mesmo justificador de si mesmo.

Isto era tamanho que fazia parte de seus diálogos com Gala ou com quem lhe estivesse visitando. Tornou-se algo tão corriqueiro que sua mulher era indiferente, não demonstrava reação. Deixava simplesmente o marido descrever como quisesse suas masturbações diárias e vespertinas.

Pergunta-se sobre esta reação de Gala: “Seu silêncio refletiria uma admiração beata ou esconderia a ironia de uma mulher muito sensual, a quem muitos atribuíram um fraco por jovens e vigorosos marinheiros? Ou ainda, teria ela sabedoria bastante para aceitar a vida como ela é e o onanismo de seu marido como uma manifestação comum, resgatada da banalidade apenas por sua sublimação artística”? (AJAME, P. 46).

Desta forma, se o pintor renega ou reprime sua homossexualidade, ela não enfatiza seu lado hetero. Porque a idéia de possuir uma mulher, de penetrá-la o fazia temer “a sorte do louva-deus macho que sempre me pareceu ilustrar meu próprio caso diante do amor”, confessa.

Produz plástica e literariamente inspirado em seus hábitos e temores “Lê Grand Masturbateur”, quadro e poema. Pierre Ajame faz a seguinte avaliação:

“Pintado com extrema aplicação, cada detalhe cria um mal-estar crescente, pois o olho não pode repousar sobre nada de sedutor, e a travessia desse deserto glauco, evocador de esperma rançoso e de bílis congelada, não prevê nenhum oásis. Os poucos galhos de árvore que aparecem à direita da tela estão mortos e, no lado oposto, um anzol penetra o couro cabeludo da criatura. É um espetáculo de uma terrível evidência e, sem que saiba por que, de uma ignomínia absoluta. É algo que se desejaria nunca ter visto – como um sonho proibido que não se ousa contar. Qualquer um que tenha um mínimo de respeito pela natureza só pode ficar indignado diante dessa incongruência que nada, nos tempos passados, permitiria prever que poderia existir. É uma face, mas não é humana nem animal; é uma boca, mas se trata de um gafanhoto com o ventre apodrecido e repleto de formigas; é uma orelha, mas é também um buraco onde se amontoam conchinhas.”(p.47 e 48)

Além disto, Dali tem outras formas de prazeres que lhe levam ao gozo sexual.

Em “A Vida Secreta de Salvador Dali” ele diz que não é coprófago, mas é enfático ao dizer “Ama-se integralmente quando se está pronto a comer a merda da mulher amada”.

“Tímido aventureiro solitário da sexualidade, Dali funciona a maior parte do tempo em autarcia, e é provável que a defecação seja para ele uma fonte de prazer da mesma natureza que a masturbação: volúpia de extrair o viscoso e o mole de seu próprio corpo. Assoa raivosamente o nariz, descobre “que o momento mais importante na vida é o momento da excreção”, observa com interesse crescente o intumescimento de seu pênis quando o manipula”. (AJAME, p. 49).

Além de fezes, secreções nasais, sêmen, Salvador Dali tem outros feitichismos, como o quê representa para ele o sapato e o excitamento pelo coito anal. Pierre Ajame salienta que “um sapato de mulher (para o pintor tem) significado e complementos claramente obscenos: pêlos de púbis... Mas o grande fantasma, que desencadeia nele os sintomas de uma virilidade repentinamente efervescente, é a sodomia”. (p. 50).

Da mulher mesmo, apenas o dorso e as nádegas o faz sentir inspirado ou excitado. Suas representações do sexo da mulher e da vagina são mal definidas e esboçadas.

Entretanto sua homossexualidade está latente. Reprimida, mas pronta a se manifestar como um cão pronto para se romper da corrente que o mantém preso. Ajame exemplifica isto com duas ilustrações:

“Em compensação, quando encontra pela primeira vez Robert Desnos e este o convida ao seu apartamento, achou seu olhar estranho e imaginou que o poeta o desejava. Logo compreendeu que aqueles olhos fixos provinham do uso de drogas. Mesmo assim aceitou o convite de Desnos.

A 5 de fevereiro de 1934, por ocasião da famosa sessão de exclusão do grupo surrealista, Dali, procurando desequilibrar Breton, lança para ele: André Breton, eu o amo, sonhei que o enrabava”. (AJAME, p. 51).

Toda esta confusa e diversidade sexual, Salvador Dali irá ordená-la para melhor entendê-la em seu “O mito trágico do Ângelus de Millet” que ele infere a partir de sua visita com Gala no Museu de História Natural de Madri. Neste momento “na hora do crepúsculo e acreditando ver na penumbra o famoso casal do Ângelus de Millet, Dali é tomado por uma brutal ereção: ‘Na saída, sodomizei Gala ali mesmo, diante da porta do museu, então deserta’...”. Isto porque, ao contemplar o quadro de Millet, Dali converte a figura do homem em filho e a mulher em mãe e segundo ele próprio “O filho efetua com sua mãe o coito por trás, retendo com as mãos, à altura de seus rins, as pernas da mulher”. (AJAME, p. 51).

Toda esta elaboração teórica de si mesmo, Salvador Dali toma por base o famoso “Complexo de Édipo” de Sigmund Freud elaborado para entender a sexualidade do mundo ocidental pós-vitoriano. Será desta forma que o pintor se esclarecerá como pessoa humana e como o homem que foi, justificará sua arte, seus textos e seus comportamentos. Devido a sua posição de destaque naquela sociedade ele foi visto como um excêntrico enquanto outros que não tinham fama e fortuna, eram enterrados vivos (internados) em hospícios por terem comportamentos, atitudes e práticas sexuais similares. Dali por ser o quê foi tinha direito à liberdade, de expressar-se abertamente sua intimidade. Os demais, vistos como constrangedores da puritana sociedade, contraventores dos bons costumes, ameaças à família e a sua constituição tinham direito apenas à loucura, ao mal de Onã, à sorte de Nabucodonosor (e por isto tinham que ser banidos, asilados, internados nas instituições para tratos mentais).

“Em 1934, os surrealistas queriam confundi-lo acusando-o de ser complacente em relação ao nazismo. Provocavam-no num terreno ideológico, mas Dali escapou-lhes, já que se encontrava num terreno gastronômico: “A carne rechonchuda de Hitler, que eu imaginava como a mais divina carne de uma mulher de pele branquíssima, fascinava-me”, escreve no Diário de um Gênio e, em 1971, na espantosa entrevista dada ao L’Express, afirma: “Hitler me parecia ter umas costas muito comestíveis. “Se pudesse teria tirado um pedaço das costas de Hitler, como um pedaço de queijo ‘A Vaca que ri’”. Aí ainda cabe o humor, mas, declaração de amor absoluta, sem hesitação ou fingimento, Dali disse de uma vez por todas a respeito de sua mulher: “Eu como Gala”. Pergunta: por quê? Resposta: porque “a beleza será comestível ou não será”. (AJAME, p. 52).

BIBLIOGRAFIA:

1- AJAME, P. – As Duas Vidas de Salvador Dali – Ed. Brasiliense, SP, 1986.

2- BECKETT, W. – História da Pintura – Edição Ática, SP, 1997.

3- LYNTON, N. – O Mundo da Arte: Arte Moderna, Encuclopaedia Britannica do Brasil Publicações LTDA, 1979.

4- MENEZES, P. – A Trama das Imagens – EDUSP – 1997.

5- PIQUÉ, A.P. e PUETE, J. – Dicionário Biográfico de Artista, Vol. I (A-K) – Ediciones del Prado, Madri – 1996.

FILMOGRAFIA:

1- Poucas Cinzas. Direção: Paul Morrison.

Leonardo Lisbôa, Bcena, 26/10/2011

Leonardo Lisbôa
Enviado por Leonardo Lisbôa em 28/10/2011
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