AÇO FRIO DE UM PUNHAL
                                                   Sérgio Martins Pandolfo*
    
     Régio presente de um caríssimo amigo – dois CDs: um de Orlando Silva e outro de Nelson Gonçalves por saber de nossa admiração pelos clássicos da "época de ouro" - transportou-nos, nessa passada semana, em relembranças, para os bons tempos dos grandes astros da música popular brasileira. Era uma época de poucos recursos instrumentais e tecnológicos e, portanto, o cantor tinha literalmente que “soltar a voz” em toda sua plenitude. Hoje...
    Nelson Gonçalves, “o Metralha” (era gago), assim como o igualmente afamado Chico Alves, o “rei da voz”, caracterizavam-se e ficaram definitivamente notabilizados pelo vozeirão marcante e marcado. Sílvio Caldas, o “Caboclinho querido”, em contrapartida, tinha voz contida, mas aveludada, cristalina, e fina interpretação. “Voz nublada e deliciosa” na definição do experto Orestes Barbosa. Mário de Andrade dizia-o o intérprete de melhor pronúncia de nossa música popular. Orlando Silva foi, a nosso ver, uma conjugação dos dois: voz maviosa e interpretação fantástica, de alta sensibilidade. 
    E não estamos só. Na abalizada opinião de Ruy Castro, "De 1935 a 1942, Orlando Silva foi o mais perfeito cantor popular do Brasil. E um dos mais perfeitos do mundo.” Ficou conhecido como “o Cantor das multidões”, antonomásia com que o distinguiu o locutor Oduvaldo Cozzi porque de fato seus shows atraíam multidões de fãs onde quer que fossem. Naqueles dias, em que não se dispunha de TV nem emissoras de rádio de alcance nacional esses monstros sagrados chegavam ao País inteiro. Pusemo-nos a imaginar o sucesso que seriam e que fariam hoje, com a imagem e o som circundando nosso “rotundo Globo”, cumeando Roberto Carlos, um cantor catapultado e mantido no topo pela TV, conquanto tenha lá seus méritos.
    Ressalta o fato que todos eles tiveram origem muito simples e antes de estourarem no circuito musical de então desempenharam funções modestas e de nenhuma ligação com a música. Orlando Silva fruiu o primeiro emprego como estafeta da Western. Mudou depois para o comércio e trabalhou como sapateiro, vendedor de tecidos e roupas e trocador de ônibus. Nelson foi jornaleiro, mecânico, engraxate, polidor e tamanqueiro. Também lutador de boxe categoria peso-médio e até, falava-se, cafetão de pensão. Foi reprovado varias vezes em programa de calouros, inclusive no de Ari Barroso, que o aconselhou a “procurar outro ofício”. Sílvio Caldas começou, ainda criança, como aprendiz de mecânico. Depois foi lavador de carros, chofer de táxi, de caminhão e particular, estivador, garimpeiro.
    Vê-se que não tiveram vida fácil antes do sucesso musical e dois deles estiveram envolvidos seriamente com drogas. Orlando, após um acidente em que perdeu parte do pé ao cair de um bonde em movimento passou quatro meses internado, com fortes dores, recebendo morfina para suportar o sofrimento, agravado por turbulento relacionamento amoroso. Viciou-se e só venceu a dependência com o desvelo da mãe. Nelson envolveu-se com a cocaína, tendo, inclusive, sido preso em flagrante e passado um mês na Casa de Detenção, o que lhe trouxe danos pessoais e profissionais. Só a muito custo abandonou o vício com o apoio da mulher. Sílvio, fortunosamente passou longe das drogas.
     Nelson imortalizou mais de duas mil canções, tais: Maria Bethânia, Normalista, Caminhemos, Camisola do Dia, Deusa do Asfalto, Peito vazio (Cartola) Escultura, Negue, Meu Vício É Você e a emblemática A Volta do Boêmio (ambas de Adelino Moreira).
    Sílvio dadivou-nos Chão de Estrelas, com o verso famoso “tu pisavas os astros distraída” consagrado pelo fascínio de Manuel Bandeira, Suburbana, Arranha-Céu, Pastorinhas, Torturante Ironia, Arrependimento, Serenata, Três lágrimas.
    Orlando gravou cerca de mil e 400 músicas, quais: Lábios que beijei, Nada além, Sertaneja, Carinhoso, Súplica (Aço frio de um punhal... primorosa letra sem rima, havida então como obrigatória na música), Curare, Amigo leal e "Rosa” seu maior sucesso, música que não mais conseguiu cantar desde a morte de sua mãe em 1971.
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*Médico e escritor. SOBRAMES/ABRAMES  - 
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Sérgio Pandolfo
Enviado por Sérgio Pandolfo em 03/02/2012
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