A Escrita da História na Visão de Michel Foucault

“Não me perguntem quem sou e não me peçam que continue sendo o mesmo.”

José Nicolau da Silva Neto

Josinete Lopes de Sousa

Resumo

O Presente artigo pretende discutir as contribuições teórico-metodológicas no que toca a escrita da história provocada pelos novos conceitos desenvolvidos por Michel Foucault. A relação da história com outras áreas do conhecimento também vem merecendo destaque e, uma delas é, com certeza, a aproximação entre história e literatura que, ao contrário dos que muitos colocam não vem de agora. Nesta discussão, vale lembrar que Michel Foucault foi, sem dúvida, um dos primeiros a levantar tal questão de uma maneira que lhe é própria e, que inclusive, nos permite dizer que suas análises inerentes a escrita da história vem a desconstruir a ideia presente nessa relação de áreas do conhecimento, dentre as quais cita-se a apropriação dos historiadores de elementos presentes na literatura na construção de uma narrativa discursiva da história de que existe estatuto de verdade.

Palavras Chaves: Saberes; Discurso; Poder; História; Literatura.

Introdução

O século XIX é concebido como um período em que houve uma transformação teórico-metodológica na forma de perceber e escrever história. Sabe-se que houve uma busca incessante não só por parte dos profissionais da história, mas também por outros que, mesmo sem o ser, em nada deixaram a desejar, em tornar essa área do conhecimento em um exercício de cunho científico.

Como se deve construir um conhecimento histórico? Talvez fosse essa a problemática que começava a martelar os propagadores de uma nova maneira de escrever história. Antes, porém, Como bem lembra Durval Muniz em A Dimensão Retórica da Historiografia (In: PINSK e LUCA, 2009, p. 230) a presença da literatura nesse embate sempre foi marcante. Nesse sentido, o ato de pensar a escrita da história como um saber científico passava pela rejeição dessa tradição literária. Segundo Durval, antes a historiografia possuía preocupações de cunho retórico, onde o fator prevalecente nas narrativas era a imaginação e o tom poético, artístico, etc.

Ainda aqui, a busca incessante por tornar a escrita da história com estatuto de empiricidade obedecendo a essa rejeição de vínculo com a literatura permitiu que tal construção passasse a ser “regulado por regras e métodos escritos” (In: PINSK e LUCA, 2009, p. 230). É dessas discussões que emerge as preocupações dos historiadores em construir um conhecimento histórico que fosse desvinculado da ficção que ganhou corpo nos espaços de debates teóricos, dentre os quais pode-se citar a Escola Metódica Alemã, o Historicismo, o Romantismo, etc. Mesmo tendo avançado no que tange a noção de documento e, ou, de fonte histórica, tais correntes estagnaram nesse pressuposto, concebendo-o como estatuto de prova.

Foi ainda no século XIX que, essa questão passou a ser contestada pela corrente teórica marxista e, no XX ampliada pela Escola dos Annales. A primeira chamou a atenção para o ponto em que se devia levar em consideração para o jogo de interesse ao qual estava vinculado na documentação. Já a segunda contrariou a tese até então prevalecente no que toca a oficialidade da fonte e, assim, construiu os argumentos de que o mesmo era uma produção do historiador.

Ainda assim, foi somente com o impacto da interdisciplinaridade e, com o adentrar de novas indagações, agora sobre o estatuto da verdade ainda reinante na historiografia, que a aproximação entre História e Literatura ganhou no século passado novo fôlego, principalmente nas críticas do filósofo – historiador Michel Foucault.

O Estatuto de Verdade na Escrita da História

A Escrita da história, ou melhor, a compreensão dela, assim como a sua função mudou ao longo do tempo. Sabe-se que nesse embate emergiu novos conceitos e, claro, a retomada de outros. Nunca é demais lembrar que a relação entre História e Literatura esteve presente nesse processo, mesmo quando a recusa desta segunda era, para alguns historiadores imersos em espaços de discussões teóricas fundamental para dar ao conhecimento histórico status científico.

Embora se tenha a pretensão no século XIX, com Leopold Von Ranke e seus discípulos de que o que se via no saberes clássico era uma busca incessante da verdade, não é bem assim. Diante disso, cabe frisar que há distinções e semelhanças na forma de praticar a escrita da história entre esses períodos.

Antes de se fazer menção a essa diferença é importante destacar os pontos que as unem. Em primeiro lugar, o que prevalecia nas narrativas historiográficas do período clássico era um gênero literário com função retórica. Ainda assim, o estatuto da verdade estava à vista. A função da escrita e, por conseguinte, do historiador era somente a de descrever os fatos ocorridos.

De acordo com Durval Muniz (In: PINSK e LUCA, 2009, pp. 297 e 298) o estatuto de verdade nos escritos da antiguidade estava, assim como no despontar do século XIX, no seio das preocupações dos profissionais da história:

O historiador devia convencer o auditório da veracidade de sua versão dos eventos, apresentando-os como teriam sido por ele testemunhados ou como versões recolhidas dentre aqueles que foram seus participantes diretos. O uso constante dos discursos e pronunciamentos no texto do historiador tinha, por tanto, as funções de torná-lo menos monótono, de dar a ele movimento, de trazer para a cena a troca de argumentos, a dialética das motivações, os embates de idéias e valores que teriam motivado dado evento.

Em As Palavras e as Coisas (FOUCAULT, 1995a, p. 300), Michel Foucault aborda essa questão de uma forma que lhe é bem própria. Ao examinar a complexidade com que se foi transformando a concepção de história, ele a menciona discorrendo sobre os tipos de linguagens empregados nos discursos presente nas diferentes escritas historiográficas. Foucault, estudante essas transformações na forma de construir conhecimento histórico ou como ele próprio preferiu chamar de mutações ao longo do tempo, chega a discorrer nessa obra outros pontos que, ao lado do estatuto da verdade se incorporam nas semelhanças entre esses dois modelos ora exposto:

Assim como a ordem no pensamento clássico não era a harmonia visível das coisas, seu ajustamento, sua regularidade ou sua simetria constatados, mas o espaço próprio de seu ser e aquilo que, antes de todo conhecimento efetivo, as estabelecia no ser, assim também a história, a partir do século XIX, define o lugar de nascimento do que é empírico, lugar onde, aquém de toda cronologia estabelecida, ele assume o ser que lhe é próprio.

Nessa ordem, completando a discussão, assim ele discorre:

A História, como se sabe, é efetivamente a região mais erudita, mais informada, mais desperta, mais atravancada talvez de nossa memória; mas é igualmente a base a partir da qual todos os seres ganham existência e chegam à sua cintilação precária. Modo de ser de tudo o que nos é dado na experiência, a História tornou-se assim o incontornável do nosso pensamento: no que, sem dúvida, não é tão diferente da ordem clássica. Essa também podia ser estabelecida num saber organizado mas era fundamentalmente o espaço onde todo ser vinha ao conhecimento...

Com isso, fica evidenciado que nos saberes clássicos há uma distância entre os sentidos dos sujeitos em detrimento da forma de entender a vontade divina. Já os saberes de dois séculos atrás são alicerçados na distância do que ele chama “da história à História, dos acontecimentos à Origem, da evolução ao primeiro dilaceramento da fonte, do esquecimento ao retorno”.(FOUCAULT, 1995a, p. 301) Ao passo que somente quando o pensamento for referenciado a questão do saber é que se tem história (entendida aqui como dotada de empiricidade).

È ainda nas semelhanças que encontramos as distinções. Já foi exposto que os discursos presentes Idade Clássica obedeciam a uma função de oratória para o público e que aqui, a busca da verdade esta presente assim como no período em que a história ganhou status de ciência empírica. Ainda aqui, a diferença aos olhos de Foucault (1995a, p. 302) é tida como o sinal de rompimento, pois segundo ele o espaço do saber, ou melhor, é nesse espaço então constituído a partir do século XIX que a concepção de verdade revestida e, ou, subsidiada de empiricidade emerge. Nesse embate, Ele diz:

A constituição de tantas ciências positivas, o aparecimento da Literatura, a volta da filosofia sobre seu próprio dever, a emergência da história ao mesmo tempo como saber e como modo de ser da empiricidade, não são mais que sinais de uma ruptura profunda.

Durval Muniz endossando essa discussão chega a mencionar em A Dimensão Retórica da Historiografia (In: PINSK e LUCA, 2009, p. 231) no que chamou de regime moderno da historicidade que diferentemente da historiografia da época clássica (se é que se pode assim denominar) os discursos apareciam agora para dar sustentação ao texto, a escrita do historiador. Sabe-se que, é nessa abertura que a noção de fonte emerge como fundamental para tal construção historiográfica, uma vez que os próprios discursos, “são transformados em uma coisa, um artefato chamado documento ou fonte histórica, tomados como um resto, um rastro ou uma pista do passado mediante a qual o historiador teria contato com o pensamento, às ações e os acontecimentos do passado”.

O resultado disso foi uma completa desativação, um pleno desligamento do profissional da história com o que seria o instrumento de edificação dos escritos históricos. O historiador é desprovido de reflexão na medida em que seu único papel era o do coletar e, por conseguinte, relatar o que já estaria pronto. Como diria o próprio Foucault (1995a, p. 510)“o homem que aparece no começo do século XIX é ‘desistoricizado’”. Assim, estabelecidas às semelhanças e distinções no que nos propomos analisar, vale destacar que o que surge dois séculos atrás é um regime de empiricidade, regime esse que foi concebido por Foucault como “forma nua da historicidade humana” (1995a, p.512). Isso por que o ser humano a partir da busca desenfreada por leis para dar sustentação ao que escreve, estaria ele próprio, no interior dos acontecimentos.

Foucault e a História

O modo de fazer história no século passado ganhou novos contornos com os trabalhos do filósofo Michel Foucault. Pode-se dizer que houve, se não uma revolução, mas pelo menos um impacto no seio da historiografia, principalmente na relação de sabres, onde o debate em torno da relação entre História e Literatura vem provocar novas reflexões revestidas de conceitos até então não utilizados, como o poder e o saber intrinsecamente relacionados.

Não obstante, a presença de Foucault no âmbito da pesquisa Histórica não foi (e para alguns ainda não o é) vistas com bons olhos, afinal de contas ele era um intruso nesse campo. Ele, enquanto tal, não fazia parte do ofício do historiador, pois era um filósofo, logo, não teria argumentos para construir obras de cunho histórico, assim entendido em termos de método, interesse, fundamento de pesquisa, etc.

È preciso dizer, embora não seja novidade que, mesmo não pertencendo a esta área do conhecimento, foi, sem dúvida, um dos maiores expoente de um modelo alternativo de fazer história aos dois modelos então dominantes, quais sejam, a Escola dos Annales e o Marxismo que incorporaram críticas aos campos teórico-metodológicos constituídos e predominantes desde o século XIX.

Emerge, principalmente nas décadas de 1970 e 1980 do século passado o que alguns profissionais denominaram de crise de paradigmas e, assim, como diz Patrícia O’Brien em A História da Cultura de Michel Foucault (In: HLINT, 2001, p. 35) “sem o domínio estrutural do paradigma dos Annales e a certeza analítica de classe, os historiadores estão experimentando novas teorias e novos modelos que pouco devem às disciplinas da ciência social” . Nesse novo cenário de experimentações teóricas e metodológicas aparece a História Cultural. Há quem fale, inclusive, em uma certa diferenciação entre a História Cultural e uma História da Cultura. Em O Campo da História (BARROS, 2009, p. 56), José de Assunção Barros abordando o exposto anteriormente afirma:

O campo deste tipo de história da cultura que pretende se voltar exclusivamente para as manifestações textuais que se sintonizam com os domínios da História da Literatura e da História da filosofia é muito frequentemente chamado de ‘História Intelectual’.

Vale lembrar que, embora o José de Assunção faça essa discussão entre História Cultural (da qual os escritos do Foucault está incluso) e História Intelectual, ele, enquanto tal, não comunga com tal diferenciação.

Mas o que de novo veio com ele para permitir uma gama de escritos inspirados em seus pressupostos? Por outro lado, cabe indagar, porque Foucault foi tão mal compreendido (e ainda hoje o é) pelos profissionais da história? Sem ter a pretensão de responder definitivamente a essas questões podemos afirmar que o próprio Foucault, no seu melhor estilo em Arqueologia do Saber (FOUCAULT, 1995b, p. 17) tentando esquivar-se de tais críticas em uma de suas célebres frases já afirmava: “Não me perguntem quem sou e não me peçam que continue sendo o mesmo”.

Ainda aqui, ele não se julgava um historiador, mas de forma precisa e com ar de ironia disse que não somos providos de perfeição. Mesmo assim, insistamos no seu caráter irônico, pois sabe-se que seus ensaios eram sim de abordagens históricas. Nos instantes finais de sua vida ao definir seus escritos em A História da Sexualidade (FOUCAULT, 1984, p. 09) ele os classificou como “estudos de ‘história’em virtude dos domínios que aborda e das referências as quais recorre”. Não obstante, completando seu raciocínio discorreu que ainda assim “não constituem a obra de um historiador” (1985, p. 09).

Quanto à primeira indagação, importa-nos afirmar que a questão do poder associado ao saber passará a partir do final dos anos 60 do século passado a serem peças fundamentais nos seus ensaios de forma até então não abordadas. A ligação do que ele chamou de ciências do homem com outras áreas do conhecimento, com outros saberes ganham novo impulso. Assim como fizeram a Escola dos Annales e os historiadores ligados ao Marxismo, refutando as concepções da Escola Metódica, comumente denominada de Positivismo, também assim o fez Michel Foucault ao classificar a linguagem por eles utilizada sem ânimo, sem notoriedade, enfim, obscura. Porém, seus escritos não estão ligados aos dois modelos acima referidos, haja vista que o próprio princípio da História Social foi também contestado. De acordo com Patrícia O’Brien (In: HLINT,2001, p. 35) essa contestação é “o de que a própria sociedade constitui a realidade a ser estudada”.

Foucault, insistamos uma vez mais em suas particularidades de escrever história, ou ainda como diria um dos principais conhecedores de suas obras, Roberto Machado, quando fez um importante estudo intitulado FOUCAUL, a filosofia e a literatura (MACHADO, 2000, p. 85) que ele “é conhecido por suas fórmulas bombásticas”. Nessa discussão, o que se encontra nas suas obras é, sem dúvida, novos desafios que nós, enquanto profissionais da história devemos enfrentar. Conceitos como o de verdade, por exemplo, passa a ser concebido como uma construção a partir da análise da produção de saberes, ou seja, há, portanto, uma construção da verdade que seria, claro, um processo histórico.

A questão do poder e do saber são apresentados em seus escritos a partir da análise dos discursos como formuladores de verdade. O poder esmiuçado em diversos espaços sociais, o seu exercício em todas as instituições e, claro, as resistências a ele impostos, tudo isso é explicitado no método genealógico por ele formulado no que concerne à análise das práticas discursivas para se compreender ainda a questão da elaboração de saberes.

Em suma, as obras de Foucault são muito ricas e nos possibilita tecer outro olhar na compreensão da realidade histórica. Afinal de contas, como mencionou Roberto Machado na introdução de Microfísica do Poder (In: FOUCAULT, 1979, p. 10) sobre a finalidade do filósofo-historiador que:

o que ele pretende é, em última análise, explicar o aparecimento de saberes a partir da condição de possibilidades externas aos próprios saberes, ou melhor, que imanentes a eles – pois não se trata de considera-los como efeito ou resultante – os situam como elementos de um dispositivo de natureza essencialmente estratégicas.

Fica evidenciado assim que é a partir das relações de poder que os saberes do homem são entendidos.

A Presença da Literatura

Qual a importância da literatura para Foucault? De que forma ele a utiliza em suas obras? Antes disso, porém, e bom lembrar que o debate em torno da aproximação entre História e Literatura não é um fenômeno recente. Vale lembrar ainda que os anos 80 do século passado foi recheado de novas reflexões a esse respeito. Para não nos estendermos muito neste assunto, pois o que nos interessa é o como a literatura está presente nos escritos de Foucault e, por conseguinte o como ele a conceitua, importa-nos afirmar ainda que essa relação de saberes tem dado muito pano para manga, tornando-se um campo fértil para os profissionais da história e por que não dizer também da área de estudos literários. No que toca especificamente aos historiadores, as possibilidades de se trabalhar obedecendo a essa agregação de saberes é vasta, podendo utilizar a literatura ora como fonte, ora como objeto de estudo dependendo do foco a ser dado na pesquisa.

A relação de saberes sempre esteve em evidência nas preocupações do filósofo-historiador, haja vista que é nela que a história encontra seu espaço. Em História e História Cultural (PESAVENTO, 2008, p. 52), Sandra JatahyPesavento abordando exatamente esse debate em torno de história, cientificidade, ficção, literatura, mito e verdade apresenta o seguinte panorama:

Ora, a questão de admitir a ficção na escrita da história implica aproximá-la da literatura e, para alguns autores, retirar-lhe o conteúdo de ciência! A História seria, assim, rebaixada de estatuto, abdicando do seu direito de enunciar a verdade. Trata-se pois de uma batalha que se trava dentro dos próprios domínios da História, pois clio se coloca em uma situação limite quanto ao seu estatuto, entre a ciência e a literatura.

Assim como Michel de Certeau em A Escrita da História (CERTEAU, 2008) deu seu contributo a esta disciplina ao colocar de forma reflexiva e concomitantemente repensando o que estaria fazendo o profissional da história ao escrever história e, não sem razão, a finalidade que essa mesma escrita tem em nosso trabalho, Foucault também teve a mesma preocupação que perpassa todas as suas obras e, uma dessas questões, ou melhor, incluem-se nelas a apropriação da Literatura, ou ainda lhe parafraseando da “linguagem literária” como parte ou como suporte para a construção do conhecimento histórico.

Importa-nos discorrer aqui que, o debate dizendo respeito a perca do estatuto de ciência, de empiricidade por uma agregação de saberes com a literatura não possui nenhum peso para o homem da desconstrução. Afinal,como diz Roberto Machado em sua obra FOUCAUL, a filosofia e a literatura (2000, p. 09) os conceitos são pensados por ele:

como independentes das ciências, neutralizando a questão da cientificadade e realizando uma história filosófica de onde, em princípio, desaparecem os traços de uma história do progresso da razão, do conhecimento ou da verdade, sem o qual o projeto epistemológico seria impossível.

Na mesma obra (MACHADO, 2000, p. 108) ele atribui a Nietzsche ou as leituras que Foucault fez a respeito dele como fundamental no processo de valorização da literatura e suas obras. Assim, a relação entre moderno e clássico sempre foi uma constante na pesquisa arqueológica desse autor. Assim também o foi a sua concepção de literatura:

Na modernidade, a literatura é um ‘contradiscurso’, no sentido do que compensa, e não do que confirma, a forma significante, o funcionamento significativo da linguagem ou ainda de modo mais explícito: a literatura é o que contesta o estatuto da linguagem tal como ela existia na época clássica reduzida a discurso, a sua função representativa, em que uma representação, ligada a uma outra e representando em si própria essa ligação, é identificada ao signo; mas a literatura é também a que contesta o estatuto da linguagem tal como ela existia na modernidade com sua função significante, em que a significação é considerada como determinada na consciência, como tendo uma gênese externa na consciência, consciência que se torna, portanto, o fundamento, a condição, o ato constituinte da significação.

È nesse sentido que a linguagem literária é entendida. Como sendo e se tornando objeto da ciência. Para Foucault, a importância da literatura vem a obedecer tal assertiva, qual seja, ela sendo um sinal do desaparecimento do ser do homem a partir da possibilidade de manifestação e de designação desse próprio ser da linguagem. Talvez não sejas assim também a sua concepção de história? Afinal, história, nada mais é do que práticas discursivas que perpassa por relações de poder, pois essa definição comunga e possui um paralelo com a construção do modelo de escrita da história desempenhado por ele.

È notório discorrer que, não há nada melhor do que realizar essa análise tomando como subsídio seus próprios ensaios. A ligação que Foucault faz de História com Literatura é fascinante. Partindo da concepção acima descrita ele consegue correlacionar a ruptura entre os saberes nos períodos clássico e moderno refletindo sobre a utilização da Literatura, partindo, inclusive, do conceito de transgressão na obra História da Loucura (FOUCAULT, 1972). Na análise entre loucura e literatura ele busca perceber o rompimento entre razão e desrazão. È ainda em FOUCAULT, a filosofia e a literatura (2000, p. 40) que melhor se entende essa correlação de saberes. A relação da loucura com a literatura é percebida ainda por intermédio da contrariedade de loucura e obra. Difícil, não? Considerar tal pressuposto significa fugir de uma dimensão racional, sendo assim:

considerar a loucura ausência de obra e a obra não–loucura, elidindo a tentativa psicológica de partir da loucura do autor para examinar a obra, significa valorizar o fato de que a loucura foi historicamente constituída como negatividade de sentido, como palavra situada no exterior dos limites definidos pela razão ocidental a partir do classicismo.

Ora, poderíamos discorrer muito mais sobre a importância da literatura nas obras do Foucault. Mas por hora fiquemos apenas com mais um de seus escritos. Em As Palavras e as Coisas(FOUCAULT, 1995a) a presença desta é marcante, principalmente porque foi a leitura de Foucault de autores como Nietzsche, bem como também de Blanchot e Bataille que lhe deram suporte para escapar da Fenomenologia e de Hegel. Afinal de contas, como descreve Roberto Machado em FOUCAULT, a filosofia e a literatura (2000, p. 107) descrevendo essa análise na Obra do filósofo historiador referida acima, menciona:

Como também evidencia que é nesse momento de sua trajetória que a análise da literatura se vincula mais fortemente á análise arqueológica, como se o livro que pode ser considerado a conclusão do estudo sobre a presença das ciências do homem na modernidade funcionasse ao mesmo tempo como unificação dos estudos sobre a linguagem literária, que aqui receberia uma teoria geral que desse conta de sua função em relação a esses outros saberes de nossa época, apresentando-lhes suas margens: os limites da loucura, da morte, do impensável...

Essa relação entre a literatura e o ser da linguagem, insistamos uma vez mais, está presente, como foi visto em A História da Loucura e As Palavras e as Coisas em todas as outras obras, haja vista que como o próprio Michel Foucault discorre, (1995a, p.16) que, sua grande fome “foi acrescentar seu nome a essa linhagem de pensadores que sentiu como aliados, no momento em que criticou o ser do homem das ciências e da filosofia e enalteceu o ser da linguagem da literatura”. Nessa discussão, vale colocar que a literatura é, nessa correlação, aqui entendida de forma especificamente no âmago da História e Literatura uma alternativa ao próprio homem. Uma alternativa, diga-se de passagem, para fugir e ao mesmo tempo contestar o dogma na história, o estatuto de verdade, uma vez que a utilização de forma literária permitia que se tirasse “do sono dogmático e do sono antropológico a que ele esteve ou continua submetido na reflexão filosófica” (MACHADO, 2000, p. 11). Somente assim, ela enquanto tal funcionava como contestação e espedaçamento do homem “desistoricizado” do século XIX, por exemplo.

Considerações Finais

Foucault, no melhor de seus estilos, enveredou por um viés que não se encontra nem nos pressupostos dos Annales, tampouco do Marxistas. Não obstante, se suas concepções e seus conceitos não são vistos ainda pelos profissionais da história (em sua grande maioria) como relevantes para construir uma nova teoria, isso não interessa.

È preciso dizer e, isso é um fato incontestável que, o pensador em evidência foi um dos grandes expoentes na elaboração de uma escrita da história até então desconhecida. Uma escrita que a situa como sendo reconhecida por intermédio dessa relação com os ouros saberes, saberes esses que aparecem intrincados com o poder constituído mediante discursos que se alojam no seio das práticas políticas e econômicas.

As obras deste filósofo-historiador se não pode ser entendida como um atributo de cunho teórico é, sem dúvida uma prática nova, mesmo que ela seja isolada como diz Patrícia O’brien. Os seus estudos nos colocam diante de novos desafios e, um deles é refletir e indagar sobre a própria concepção de história e os pressupostos nela empregados.

A sua grande contribuição para a disciplina não se deu de forma sintetizada teoricamente, pois nunca é demais lembrar que ele, enquanto tal, não se julgava um consistente teórico, mas pode-se dizer que ele nos deixou uma forma diferente e, insistamos uma vez mais, desafiante de praticar história mediante a sua análise do discurso do poder, aqui entendido como disciplinador e concomitantemente como produtor de verdade.

Referência Bibliográfica

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