A ETNOGRAFIA NO QUADRO DAS CIÊNCIAS ANTROPOLÓGICAS

Por: Luciano Reis

«Nós, portugueses, estamos não nas vésperas, mas em plena fase de perdermos toda essa riqueza do passado. E se não corrermos rapidamente a salvar o que resta, seremos amargamente acusados pelos vindouros pelo crime indesculpável de ter deixado perder o nosso património tradicional, dando mostras de absoluta incúria e ignorância.»

JORGE DIAS

(A Etnografia como Ciência)

Julgo conveniente estabelecer o justo sentido de ciências antropológicas, ou seja da Antropologia lato sensu, que procura ascender ao conhecimento integral do Homem.

O homem, como todos nós sabemos, é uma porção modelada de matéria

viva, um ser vivo, um animal, um Primata, com afinidades mais ou menos estreitas a tudo o que vive, a tudo o que é material.

Entre todas as formas de matéria e de vida que existem, o homem ocupa uma posição especialíssima.

O homem nasce quando nasce uma nova forma de evolução enxertada na velha evolução orgânica, dominando-a, orientando-a no sentido da estruturação do ser superior que fala, pensa, raciocina, distingue o bem do mal, ensina e aprende. Esta nova forma de evolução tem como fundamentos a faculdade de aprender e ao mesmo tempo a sua transmissão por herança. O homem é talvez o único ser vivo dotado da faculdade de prever e seguramente o único capaz de projectar. O homem faz planos para o futuro, tem finalidades na vida.

O sentido do bem e do mal, da justiça e da injustiça, são conceitos qua criam no homem o sentido moral, base orgânica da estruturação das sociedades humanas - e daí a Antropologia ser a base da Sociologia.

A Antropologia (do grego Anthropos, que significa homem e logos, tratado) é o tratado do Homem como membro duma sociedade, uma sociedade com conhecimento, estudo.

Portanto a Antropologia é a ciência que estuda o Homem em geral, o Homem total - desde o seu aspecto físico, à sua Cultura, à sua maneira de ser e viver, à sua organização social, etc.

Como sabemos, há um grande número de ciências ou ramos de saber que estudam o Homem sob os mais variados aspectos.

Estas ciências têm individualidade, não só na sua finalidade e objectivos próprios, mas também pelo seu enorme desenvolvimento, bem como pelos métodos de trabalho que lhe são peculiares.

A Anatomia, a Fisiologia e a Psicologia humanas, a História, a Sociologia, a Linguística, a Economia Política, etc., estudam o homem cada uma em seu aspecto. Todas elas de inegável importância e marcado interesse. Aliás, todas elas conquistaram há muito, foros de merecida individualidade.

Todas estas ciências estudam o homem. A Antropologia estuda-o também. Se assim é, não haverá apenas sobreposição de conhecimentos e, portanto, desnecessário seria estruturar um novo corpo de doutrina, um novo ramo de ciência? Não. Não há sobreposição.

A Antropologia é uma ciência individualizada, de enorme âmbito de estudos sem dúvida, mas com finalidades bem estabelecidas, com métodos de trabalho particulares. É uma ciência autónoma, servindo-se de larga soma de conhecimentos de ciências subsidiárias, como sucede com todas ou quase todas as ciências.

A Antropologia estuda o Homem na sua morfologia externa e estruturação interna (Anatomia humana), nas suas manifestações vitais (Fisiologia Humana, Antropobiologia), nas suas capacidades de ordem superior moral e intelectual (Filosofia, Psicologia humana, Psicotecnia), nos problemas da sua origem e evolução (Paletnologia ou Paleontologia humana), no estudo das civilizações (Arqueologia, História, Política, Antropologia social, Sociologia), nas suas múltiplas capacidades de expressão e comunicação (Linguística), nos problemas ligados às necessidades vitais imediatas, comida, abrigo, propagação da espécie (Etnografia ou Antropologia cultural, Economia, Política), nos problemas de ordem superior (Religiões, Teologia).

De todos estes saberes se ocupa a Antropologia, o que faz dela uma matéria vasta para o conhecimento do Homem e do seu futuro biológico.

Há que restringir forçosamente o âmbito desta multiplicidade de aspectos da vida do Homem, e, assim, a Antropologia procura estabelecer aquilo que em cada um destes aspectos caracteriza os grupos humanos. Parte do estudo individual para formar as sínteses dos conjuntos de vária gradação, raças, etnias, povos, nações, clãs, tribos, castas, etc.

Como o Homem é um ser duplamente físico e mental e também um ser social - a Antropologia estuda-o sob esses três aspectos. Há, assim, uma Antropologia Geral que se divide em dois grandes ramos, ou seja: a Antropologia Física e a Antropologia Cultural ou Social.

A Antropologia Física não estuda o organismo do Homem, sob o ponto de vista físico, pois esta tarefa é objecto da Medicina, mas sim no que se relaciona com o seu aspecto físico, ou seja as características físicas particulares a cada raça ou grupo étnico, designadamente: a configuração do esqueleto, o formato do crânio, a maior ou menor abertura do ângulo facial, a cor da pele, a tecitura dos cabelos, a implantação dos maxilares, a maior ou menor abertura e o formato das órbitas oculares, o formato das fossas nasais, etc.

A Antropologia Cultural que também se dá o nome de Etnologia - estuda o homem como produtor e transportador de Cultura e ainda a maneira de viver de cada raça ou grupo étnico.

Muitos antropólogos que fazem a distinção entre Antropologia Cultural e Antropologia Social consideram que a primeira estuda o homem como produtor de Cultura, isto é, aquilo que ele produz tanto de material como do ponto de vista espiritual, enquanto que a segunda estuda o homem como ser social, ou seja, as formas sociais particulares de cada raça ou grupo étnico.

Como vimos, é amplo o estudo da Antropologia. Segundo o Prof. Mendes Correia, fundador da escola antropológica da Universidade do Porto, escreveu que a Antropologia procura ascender a uma compreensão integral do Homem.

Este ilustre Professor definiu a Antropologia como sendo a ciência que estuda os caracteres físicos e psíquicos, que tenham interesse sob três pontos de vista:

 Posição do Homem na escala zoológica;

 Origem do Homem e conhecimento dos primeiros hominídeos;

 Classificação das raças, povos e tipos humanos.

O Homem é um misto de matéria e de espírito, de corpo e de alma. O corpo e a alma confundem-se como a forma e o mármore duma estátua, como disse Carrel.

Segundo a opinião do Prof. Barahona Fernandes, para fazer o estudo integral do Homem, há que considerar o inorgânico, o biológico, o psicológico e o espiritual.

Cada um destes quatro estratos ou aspectos da personalidade humana interpenetram-se, estão ligados uns aos outros, quer dizer: matéria, vida, psique e espírito.