Teatro: loucura saudável      

A Grécia Antiga,  entre tantas influências, nos deixou o pensamento mítico. Para  refletir sobre o título acima, recorro a duas configurações míticas muito presentes na cultura ocidental. Na celebração a Dioniso, um coro acompanhado de flautas entoava ditirambos, versos improvisados, em louvor ao deus presentificado no ritual pela representação. Disfarçados em sátiros, dançavam freneticamente, acreditavam estar-fora-de-si e em comunhão divina. Brandão (2002) explica que “Esse sair de si, numa superação da condição humana, implicava num mergulho em Dioniso e este no seu adorador pelo processo do ‘enthusiasmós’, entusiasmo”. Nesta luta entre o humano e o divino caracteriza-se a significação complexa da divindade, mais do que um símbolo do entusiasmo e dos desejos amorosos, significa a desmedida. O homo dionysiacus,  rompia com a medida definida pelos deuses, colocava em xeque as verdades inexoráveis e o destino dado como absoluto. Ao não observar avisos como “conhece-te a ti mesmo”, “nada em excesso”, extrapolava os limites de seu tempo.  No “confronto” manifestava a vontade de poder, a rebeldia, o querer  ir para além de si mesmo e dos limites impostos

Apolo, o ideal de beleza e de equilíbrio, simbolizava a luz, a ordem, a medida, o racional.  A emoção do homo dionysiacus, em oposição ao que representava Apolo, exprimia o prazer e a apropriação, a afirmação e reafirmação da vida e proclamava a verdade pela embriaguez. Embora o racional tenha sido e ainda é enfatizado, a história registra muitos exemplos de “rebeldes”, em todas as linguagens da Arte, que extrapolaram limites com um fazer artístico diferente dos padrões de seu tempo.

Apolo ou Dioniso? Duas faces da vida que brigam permanentemente.  Nietzsche (1986) nos desafia a pensar quando afirma que somos imagens e projeções artísticas e na existência humana o homem é um fenômeno estético, “objeto e sujeito ao mesmo tempo, simultaneamente poeta, ator e espectador”. Morin (2002) também nos desafia quando pergunta: “Ser racional não seria, então, compreender os limites da racionalidade e da parte do mistério do mundo?”. A natureza lógica tem seus limites, o racional é necessário, como também o é a loucura saudável.  Ambos fazem parte da força criadora da arte e da vida.  Precisamos ter esses dois pólos sempre em uma relação dialógica. A prevalência de um significa o desequilíbrio do outro.

E a arte na educação? Além dos conhecimentos científicos, são necessários mais espaços para a arte em todas as suas linguagens, no dia-a-dia das escolas e não apenas em datas comemorativas ou quando “consta no calendário”. Também há que se ter mais a presença da arte em espaços alternativos e em projetos públicos que tenham continuidade. Lembrando que temos no Brasil municípios sem bibliotecas, museus, e que o único meio de disseminação cultural é a televisão,  então o que resta ao teatro e demais linguagens artísticas? Ressalto a necessidade de projetos racionais que possibilitem a embriaguez da arte para a maioria da população. É preciso esquecer chavões do tipo “teatro é cultura”, “teatro faz bem”, “teatro é liberdade de expressão”. Isso todos sabemos. A pergunta racional é: como fazer para que essa “cultura” e essa “liberdade de expressão” não sejam oferecidas apenas a uma minoria?  Salvo alguns projetos de democratização do acesso ao teatro que existem e deram certo, é pouco. Precisamos mais.

Trabalho com teatro estudantil em uma escola pública e tenho um grupo de teatro amador com ensaios na sala de minha casa. Convivo com muitos adolescentes “teatreiros”. Todos, capturados pela embriaguez e loucura saudável da arte teatral, se envolvem inteiramente com  o corpo, a emoção, a fala, o gesto, e, sobretudo, olham e interpretam a vida com os olhos da criatividade, do divertimento, da   imaginação e do sensível.

Diante de espetáculos de desprezo à vida que assistimos diariamente, façamos mais espetáculos que envolvam crianças, adolescentes, adultos, idosos, o masculino e o feminino, o preto e o branco para que todos possam, atuando ou assistindo, experimentar no teatro a arte e a vida, a loucura saudável, o saber sensível. Este é um dos possíveis caminhos para sairmos da “anestesia que o mundo de hoje nos submete” (Rubem Alves, 1999).  Pode soar como utopia, mas  essa é a embriaguez que me toma e “cutuca” atualmente, quando o assunto é teatro.
 
 
 
Maria Inez Flores Pedroso
Enviado por Maria Inez Flores Pedroso em 10/01/2013
Reeditado em 08/06/2013
Código do texto: T4076669
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