A MARCHA DOS SEM HISTÓRIA - O NASCIMENTO DO HOMEM-MARCHA

O século XX foi o século da marchas. Grandes, pequenas, em nome de Deus, contra Deus, a favor e contra os diversos regimes políticos, lideradas por Trostsky, Gandhi ou Hitler, tanto faz.. Marchou-se em nome dos sem terra, dos sem teto, dos sem escola, pelo sufrágio universal, pelo direito das minorias... Desde o voto feminino até a legalização da maconha, as ruas foram tomadas e o transito foi interrompido praticamente em nome de tudo.

Não é preciso fazer força para perceber algo que existia em comum em todos estes movimentos: uma forte noção do seu tempo. Cada manifestante, desde 1917 até o maio de 68 sabia muito bem que marchava para que a história não se repetisse nos erros ou que mudasse em direção “a um mundo melhor”. Sabia-se que havia ontem, hoje e amanhã..que algo havia sido herdado e alguma coisa ficaria para o futuro. As pessoas ainda “tinham história”, mas aos poucos um fenômeno interessante passou a ocorrer – o conteúdo da luta passou a ser substituído pela forma. Cantando “quem sabe faz a hora, não espera acontecer” uma geração inteira – a de 1968 – misturou Sartre com Mao Tse Tung num verdadeiro delírio de ativismo em que pouco importa o motivo da manifestação; a manifestação é o seu próprio motivo.

Desde os movimentos da Universidade de Berkley até o Facebook, as marchas vem mudando num sentido perigoso....Não existe mais, hoje em dia, como um identificar o perfil daquele que participa de uma determinada manifestação. Cara-pintada ou cara-limpa, foice ou mouse de computador na mão, nasceu o homem-marcha: aquele que faz da marcha o seu próprio destino e que integrado na nova ordem deixou de subir montanhas e atravessar desertos porque isso não se faz mais necessário.

O ativista do seculo XXI tem na internet a sua estrada e no discurso do lugar-comum a sua bandeira. Não há valor moral a orientá-lo capaz de superar a importância do número de adesões ao seu Blog. Quanto mais seguidores alguém tem na internet, mais verdadeiro deve ser o seu discurso. Dane-se portanto todo esforço acadêmico (necessariamente individual para ser verdadeiro) e toda história pregressa. Esqueça-se o recolhimento, o poder da humildade e da oração.

A verdadeira história não existe para o Homem-marcha. Para ele, o que existe são interpretações cuja veracidade é conferida por aquele botão da rede social: “curtiu” ou “não curtiu”. Vítima da desconstrução, do estruturalismo e outras escolas de pensamento que beiram a esquizofrenia, o ativista do século XXI é uma “interpretação em busca de um fato”. Ele jamais vai aceitar que 1968 não é o “ano que não acabou”, mas sim o ano que “jamais deveria ter começado”. Não há legado algum deixado pelos doentes que misturaram filosofia com LSD e se revoltaram contra a Guerra do Vietnã apoiando o maoísmo, e é esse o berço do homem marcha.

Ainda criança o homem-marcha foi abusado por Focault e abandonado por Derrida. Adolescente, sua primeira camiseta tinha uma foto de Che Guevara. Defendendo o Sistema Único de Saúde mas com um bom convenio para sua família, ele hoje acredita na Revolução Cubana e frequenta a Quinta Avenida em Nova York enquanto seus filhos dirigem a UNE (União Nacional dos Estudantes) sempre com orientações de José Dirceu.

Vagando de blog em blog e dormindo em redes sociais diferentes o homem-marcha se move como um fantasma pela internet sempre buscando uma “causa para sua interpretação”. Bolsista de si próprio, acredita que a História tem uma dívida com ele e no dia do grande acerto de contas a suas respostas vão estar na ponta da língua - elas aguardam apenas a pergunta certa.

Questionado sobre Deus, ele afirma acreditar “numa energia superior”. Abordado na sua opinião sobre os homossexuais ele diz que sexo é “uma opção de cada um”. Perguntado a ele qual o maior risco que a raça humana enfrenta hoje em dia a resposta imediata é “o aquecimento global”.

Verdadeiro morto-vivo da nossa época o homem-marcha é um prisioneiro. Sua cela não tem tempo nem espaço próprios. Ele se debate entre as flores do movimento hippie e as marretas que derrubaram o Muro de Berlim, e chora trocando as letras dos Beatles com Michel Teló. Suas bandeiras trazem dois lemas – “isso sempre foi assim” e “eu não sabia de nada”.

Pobre homem-marcha que caminha num mundo virtual procurando “companheiros”para ajudar a formar a última marcha da sua vida..A Marcha dos Sem História.

Porto Alegre, 11 de janeiro de 2013.

Milton Simon Pires

cardiopires@gmail.com

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Enviado por cardiopires em 11/01/2013
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