Sobre a vida não tão secreta assim de São Salabaussírio: primeiros escritos

Sempre ouvi dizer que há muito da História na ficção e muito de ficção na História. Porque, capítulo a capítulo, “toda história é contada pelos vencedores”, além de ser, como todo produto cultural, objetivada por intermédio das artes, resultado das muitas técnicas desenvolvidas de dominação e transformação da natureza bruta em “natureza humana” e, dessa forma, contada e recontada continuamente, depois da invenção da escrita e da Literatura.

Como artista-escritor, apreendi bem como é isso; principalmente quando em discussões sobre quem disse o que e por que entre escritores que, muitas vezes, tiveram confundidos os ditos de seus personagens com os seus próprios. Porque muitas vezes também ouço críticas pelas confusões que fazem meus leitores sobre isso – já que, algumas vezes, os personagens sentem, pensam, dizem e fazem o que seus autores sentem, pensam em dizer e fazer, sem que nunca façam o que, por exemplos, podem fazer seus personagens, vampiros ou santos.

Para mais entender como se conta a História – ou, mais acertadamente, as histórias – há também aquele ditado que reza: “o povo aumenta, mas não inventa”, e cito o ditado por também reconhecer que muitos vencedores vieram das classes populares, entre outros da elite cultural e financeira do mundo (em quem os das classes populares querem se transformar e, inevitavelmente, se transformam), tão determinantes a construções como a destruições de tudo o que parece lhes convir à continuidade de seus poderes de forjar realidades e contar história que, a não ser em obras literárias, quase nunca confere um final feliz à maioria.

Dentro desta perspectiva, então, aos olhos de alguns historiadores, personagens da história sagrada, contada desde os antigos Vedas ao “Livro de Urântia” – que, dizem seus editores, anda continuamente sendo revisado e atualizado a melhor contar “toda Verdade” – os considerados “santos” tiveram e muitas vezes têm descrida a realidade concreta de suas vidas – embora, para justificar o argumento de que muito da ficção constrói a história, não se possa negar presença e influências de poderosas personalidades literárias; como o personagem Sidarta, do escritor alemão Hermann Hesse, ou mesmo o Jesus Cristo retratado na Bíblia – como se escreveram ter “ele mesmo” previsto que assim seria ao anunciar não poderem passar suas palavras – sendo a “ressurreição” à continuidade de sua “vida eterna” fruto do cuidado de seus conservadores literatos e das tradições que, ao longo dos séculos, torna-o talvez o personagem mais “imortal” entre os “imortais” da história ocidental.

Entre mortais e “imortais”, então, não resta dúvidas que vários personagens da ficção tornaram-se mais necessários e “eternos” do que aqueles que, inutilmente, muitos de nós pretendêramos ser. E mesmo que seja à esperança na eternidade de nossas sombrias e efêmeras personas que nos encaminhe os ditos e feitos atribuídos a Jesus Cristo – bem como a formação de certas academias de “imortais” literatos, que os podem temporariamente iludir sobre a possibilidade de suas eternidades – sendo a presença de muitos “imortais” personagens da Literatura resultado das elucubrações existenciais e da criatividade daqueles escritores que, movidos pela angustiante ignorância sobre as razões de tudo presente no vazio (ou pela força expressiva da Vida, que neles mais às vezes se manifesta), sabem que é impossível viver para sempre; quer como persona real referendada pela história ou personagem da Literatura.

A despeito de que os ditos de São Salabaussírio possam mesmo ser expressões de certa dose de toda Sabedoria acumulada e possível a nós ou, como acreditam espíritas, entre outros espiritualistas, alguns escritores possam psicografar textos “ditados” por outros “espíritos”, eu mesmo não concordo com todos os ditos do santo em questão – como de resto, ao longo de suas leituras via facebook, alguns parecem não ter concordado. Não porque eu ou eles estejamos com a razão, mas porque sou tão ignorante, vaidoso e, no fundo, “temente a Deus” por minhas “blasfêmias” quanto maior parte das pessoas – uma vez que alguns dos ditos do santo personagem em questão nos causam desconfortos; como quando revela: “Toda reprodução biológica de espécies é perpetuada pela supremacia da força do instinto sobre a Sabedoria. Assim não fosse e não existiríamos sobre a Terra” – que ninguém curtiu no facebook. Talvez por instigar incômodas reflexões sobre a validade ontológica de nossa existência sobre este mundo que, como nos podem garantir ecologistas e personagem anti-herói Dr. Manhattan no filme Watchmen, sem nós talvez pudesse viver mais e melhor, como todo o “resto” do Universo.

Mas, já que ainda não foi tudo e todos os livros transformados em pó – como foram e serão muitos – e que ainda muitos anos advirão até a consumação dos séculos, entre mortos e feridos em todas as tentativas à construção de uma inconclusa Humanidade, e de sua realidade histórica (sempre mutável), transitam esses maravilhosos personagens “imortais” que, como poderá tornar-se a partir daqui “São Salabaussírio, o décimo terceiro apóstolo”, foram muitas naturalmente desenvolvidas expressões da alma coletiva dos povos que sintetizam, às vezes, não apenas a realidade da cultura que os forjou, mas de todas as que surgiram e desapareceram sobre a face da Terra.

Como observou o professor de história francês Jean Delumeau em seu livro História do medo no Ocidente, “Os santos antipestilentos mais frequentemente invocados eram São Sebastião e São Roque”, mas “o fervor e a inquietude populares acrescentaram no total bem uns cinquenta santos antipestilentos de menor envergadura, mais particularmente venerados aqui ou ali. No entanto, São Carlos Borromeu alcançou um renome considerável, que o colocou pouco abaixo dos protetores maiores”.

Além disso, quantos sabem que, como nos revela o filósofo francês Voltaire em seu livro Tratado sobre a tolerância, São Teodoro “tinha um prostíbulo, mas que nem por isso era um cristão menos fervoroso”?

Mas, ao contrário do que pensa a sabedoria popular acerca da função “milagreira” dos santos – graças ao medo da morte e, muito mais, das aterradoras surpresas da Vida – e a despeito de que muitos possam ter contribuído para o aumento da ignorância e da superstição no mundo, alguns foram considerados “santos” porque, em seus bem ditos (muitas vezes tidos “malditos”), tais “imortais” personagens demonstraram ter ciência de suas condições de absoluta e inevitavelmente humildes dependentes d’Aquilo que, sinônimo de "Vida eterna", ainda por ignorância se considerou “a Divindade”.

A partir de certas consequências negativas do comportamento pré-humano, os tais também foram considerados “santos” por causa de suas percepções da origem do “pecado original”; ou, melhor dito, da razão fundamental das angústias, revoltas e reações normativas de todas as civilizações do mundo a ações que garantam a sobrevivência cotidiana – e/ou “eterna” – de seus melhores ideais e de todas as melhores riquezas descobertas, conquistadas e desenvolvidas sobre a face da Terra.

Até que a morte nos separe.