Pensar e existir

Pensar e existir

As definições de filosofia elaboradas depois de Platão e Aristóteles separaram a filosofia em duas partes: uma filosofia teórica e uma filosofia prática. Como reflexo da busca por salvação ou redenção pessoal, a filosofia prática foi gradativamente se tornando um sucedâneo da fé religiosa e acabou por ganhar precedência em relação à parte teórica da filosofia. A filosofia passa a ser concebida como uma arte de viver, que forneceria aos homens regras e prescrições sobre como agir e como se portar diante das inconstâncias do mundo. Essa concepção é muito clara em diversas correntes da filosofia helenística, como, por exemplo, no estoicismo e no neoplatonismo, como veremos mais adiante.

As definições ontológicas (referentes ao ser) de filosofia, formuladas na Antiguidade persistiram na época de disseminação e consolidação do cristianismo, mas isso não impediu que as concepções cristãs exercessem influência e moldassem novas maneiras de se entender a filosofia. As definições de filosofia elaboradas durante a Idade Média foram coordenadas aos serviços que o pensamento filosófico poderia prestar à compreensão e sistematização da fé religiosa; e, desse modo, a filosofia passa a ser concebida como “serva da teologia” (ancilla theologiae). Segundo Santo Tomás de Aquino, por exemplo, a filosofia pode auxiliar a teologia em três frentes: a) ela pode demonstrar verdades que a fé já toma como estabelecidas, tais como a existência de Deus e a imortalidade da alma; b) pode esclarecer certas verdades da fé ao traçar analogias com as verdades naturais; e c) pode ser empregada para refutar ideias que se oponham à doutrina sagrada.

Os pensadores medievais também mantiveram a acepção de filosofia como saber prático, como uma busca de normas ou recomendações para se alcançar a plenitude da vida. Santo Isidoro de Sevilha (um dos “Pais da Igreja”), ainda no século VII, definia a filosofia como “o conhecimento das coisas humanas e divinas combinado com uma busca pela vida moralmente boa”.

Tanto na Idade Média como em qualquer outra época da história ocidental, a compreensão do que é a filosofia reflete uma preocupação com questões essenciais para a vida humana em seus múltiplos aspectos. As concepções de filosofia do Renascimento e da Idade Moderna não são exceções. Também aí as noções do que seja a filosofia sintetizam as tentativas de oferecer respostas substantivas aos problemas mais inquietantes da época.

O advento da era moderna fez ruir as próprias bases da sabedoria tradicional; e impôs aos intelectuais a tarefa de encontrar novas formas de conhecimento que pudessem restabelecer a confiança no intelecto e na razão. Para Francis Bacon, um dos primeiros filósofos modernos, a filosofia não deveria se contentar com uma atitude meramente contemplativa, como queriam os antigos e medievais; ao contrário, deveria buscar o conhecimento das essências das coisas a fim de obter o controle sobre os fenômenos naturais e, portanto, submeter a natureza aos desígnios humanos.

Para Descartes, no século XVII a filosofia, no desenvolvimento de metafísica, é a investigação das causas primeiras, dos princípios fundamentais. Esses princípios devem ser claros e evidentes, e devem formar uma base segura a partir da qual se possam derivar as outras formas de conhecimento. É nesse sentido, entendendo-se a filosofia como o conjunto de todos os saberes e a metafísica como a investigação das primeiras causas, que se deve ler a famosa metáfora de Descartes:

Assim, a Filosofia é uma árvore, cujas raízes são a Metafísica, o tronco a Física, e os ramos que saem do tronco são todas as outras ciências.

Após Descartes, a filosofia assume uma postura crítica em relação a suas próprias aspirações e conteúdos. Em Descartes encontramos a estreita relação entre pensar e existir, quando o filósofo afirma: Cogito ergo sum. “Penso, logo existo!”

Os empiristas britânicos, influenciados pelas novas aquisições da ciência moderna, se dedicaram a situar a investigação filosófica nos limites do que pode ser avaliado pela experiência. Segundo a orientação empirista, argumentos tradicionais da filosofia, como as demonstrações da existência de Deus, da imortalidade da alma e de essências imutáveis seriam inválidos, uma vez que as ideias com que operam não são adequadamente derivadas da experiência. De maneira análoga, Kant, ao elaborar sua doutrina da filosofia transcendental, rejeita a possibilidade de tratamento científico de muitos dos problemas da filosofia tradicional, uma vez que a adequada solução deles demandaria recursos que ultrapassam as capacidades do intelecto humano.

O empirismo britânico e o idealismo de Kant acentuam uma característica frequentemente destacada na filosofia: a de ser um "pensar sobre o pensamento" ou um "conhecer o conhecimento". Essa concepção reflexiva da filosofia, do pensamento que se volta para si mesmo, influenciará vários autores e escolas filosóficas, tanto do século XIX como do século XX. A fenomenologia, por exemplo, considerará a filosofia como um empreendimento eminentemente reflexivo. Segundo Edmund Husserl († 1938) - o fundador da fenomenologia - a filosofia é uma ciência rigorosa dos fenômenos tal como nos aparecem, ou seja, tal como é a nossa consciência deles. Para descrevê-los, o filósofo deve pôr entre parênteses todas as suas pressuposições e preconceitos (até mesmo a certeza de que os objetos existem) e restringir-se apenas aos conteúdos da consciência.

Com a virada linguística do início do século XX, muitos filósofos passam a considerar a filosofia como uma análise de conceitos. Para L. Wittgenstein († 1951), por exemplo, os problemas filosóficos tradicionais são todos resultantes de confusões linguísticas; e a tarefa do filósofo seria a de esclarecer e organizar o modo como os conceitos são empregados a fim de explicitar tais confusões. Numa abordagem mais positiva sobre a atividade filosófica, P. F. Strawson († 2006) um filósofo inglês, considera que a filosofia é análoga à gramática: assim como os estudiosos da gramática explicitam as regras que os falantes inconscientemente empregam, a filosofia explicitaria conceitos-chave que, na construção de nossas concepções e argumentos, adotamos sem ter plena consciência de suas implicações e relações. Surgia aí a filosofia da linguagem.

A lista de concepções da filosofia propostas ao longo de sua história pode ser estendida indefinidamente. Sua variedade é tão grande que dificilmente se pode encontrar um elemento que perpasse todas as concepções em todas as épocas. Mas não se pode esquecer que as antigas concepções de filosofia tornaram-se algo obsoleto frente ao avanço de outras disciplinas que antes se abrigavam à sombra, excessivamente vasta, da filosofia. As concepções de autores antigos e medievais, e mesmo de alguns modernos, consideravam indiscriminadamente como filosóficas investigações que hoje denominamos simplesmente de científicas.

Pode-se dizer que a filosofia surge como uma espécie de rompimento com a visão mítica do mundo. Os filósofos, ao promover esta ruptura atrubuem a origem do ser, aos “quatro elementos” (água, ar, fogo e terra). Cada um deles, a seu tempo e modo afirmou que as origens do ser humano estavam ligadas a esses elementos.

Enquanto os mitos se organizavam em narrações, imagens e seres particulares, a filosofia inaugurava o discurso argumentativo, abstrato e universal. Além disso, ao contrário dos autores de mitos, os filósofos gregos tentaram com afinco elaborar concepções de mundo que fossem isentas de contradições e imperfeições lógicas. Desse modo, não é sem razão que muitos autores enfatizam o caráter de ruptura e divergências ao comparar o advento da filosofia com a tradição mítica da Grécia antiga. Mas, embora sejam inegáveis as diferenças, mais recentemente vários estudiosos têm levantado os pontos de continuidade e semelhança entre as primeiras elucubrações filosóficas dos gregos e as suas concepções mitológicas. Cansados de buscar soluções de seus problemas na mitologia, quando esta se mostrou insuficiente, os guias do povo e os intelectuais se voltaram para a filosofia. Para esses autores, as peculiaridades da tradição mítica grega favoreceram o surgimento da filosofia grega e os primeiros filósofos empenharam-se numa espécie dessacralização e despersonalização das narrativas tradicionais sobre o surgimento e organização do cosmos.

Muita gente pergunta por que a coruja (kucuvaya, no grego) simboliza a filosofia. Hoje sabemos que o símbolo da filosofia ficou sendo a coruja, pelas características insones da ave que, como os estudiosos, vara a noite em vigília. E como mascote da filosofia, o que indica? A coruja não é bela. Ela não é adepta de uma visão unidirecional, ela gira a cabeça quase que trezentos e sessenta graus, vendo todos os lados. Sócrates gostava de olhar para todos os lados. Enquanto Platão ensinava em uma escola oficial, Sócrates ensinava nas ruas. Foi acusado e condenado por seduzir os jovens, por roubá-los da Pólis. A coruja, por sua vez, é a ave de rapina por excelência, e apanha os descuidados – na noite e os leva da cidade, para seu ninho. E então, dá para entender, agora, o que é que coruja e filosofia fazem juntas?