IDADE MÍDIA X IDADE MÉDIA. EL CID CARVALHO SUBSTITUÍDO POR COMISSÃO DE CARNAVAL.

A saída de Cid Carvalho da Vila Isabel e o rápido anúncio de uma Comissão de Carnaval para substituí-lo, evidencia uma nova organização hierárquica nos bastidores das escolas de samba: a extinção da figura do carnavalesco e a supremacia do poder sobre a arte. Trocando em miúdos, apesar de vivermos na IDADE MÍDIA as escolas de samba ainda tratam artistas como na IDADE MÉDIA, mas fazem um jogo de palavras; chamam de valorização profissional o que, na maioria das vezes, é a limitação da autonomia artística e a primazia da vassalagem. Como na costura francesa, os remendos não são evidentes, mas quem conhece a técnica, sabe que estão lá, ocultos, porém presentes.

Ortega y Gasset escreveu “No sabemos ló que pasa y eso es ló que pasa”¹, em uma de suas elucubrações sociológicas, mas como estamos a falar de sociologia carnavalesca, pego emprestado uma expressão do Joãosinho Trinta; a situação é “tal areia na farofa”. Há um gosto de novidades grisalhas no banquete dionisíaco...

Querem inovar tentando repetir o passado, e para isto apregoam a Comissão de carnaval como a pírula dourada que há de salvar os desfiles da mesmice conceptual e estética em que se encontram. No entanto os defensores das Comissões de Carnaval têm como argumento apenas um corte histórico, a Era “Pamplonina” no Salgueiro da década de 60. Pegam um aposto histórico e transformam em epopeia. Natural, afinal escola de samba é “esplendorisar ” fatos despercebidos.

Porém no ambito organizacional do espetáculo é preciso refletir sobre algumas questões: Por que a tal Comissão de Carnaval, tão gloriosamente defendida como democrática, só durou 12 anos ? Por que todos os participantes, a exceção de Rosa Magalhães e Lícia Lacerda, buscaram carreira solo? Por que houve uma explosão de criatividade nas duas décadas posteriores a comissão do Pamplona-Salgueiro? Pamplona valorizava a especialização ou a capacidade de compreender o desfile como um todo?

Não estou defendendo a ideia de se ter um carnavalesco absoluto e autoritário, apenas quero lembrar que a concepção que se tem de Comissão de Carnaval é o oposto da que existia no Salgueiro. O que aconteceu naqueles anos foi a formação de carnavalescos, através do aprimoramento das técnicas e do experimentalismo artístico. Essa característica foi fundamental para que cada um dos participantes pudesse se encontrar como artista. Não era um grupo de especialistas laureados por grandes trabalhos realizados e dispostos a seguir os cânones do desfile técnico. Gostaria apenas de lembrar que não basta ser especialista, é preciso ser artista, ser capaz de ver o que quase ninguém vê, e conseguir transformar a complexidade humana em um singelo conto de Preta Velha.

A grande discussão da comunidade cientifica hoje é justamente o religamento dos saberes, mas a administração do carnaval apregoa as especialidades como a pedra filosofal. No mínimo anacrônico. Mas cada um administra como quer.

No fundo sabemos que o que está em jogo não é a arte, mas o poder. Nem é a estética, mas a ostentação, exatamente como nos tempos da Idade Média... Mas uma coisa me conforta, Dionísio é um deus coxo que caminha torto deixando pegadas certas, e assim como aconteceu com a Idade Média, um dia, quando as gerações futuras se debruçarem sobre nossa IDADE MÍDIA, os senhores “neofeudais” ocuparão parcas notas de rodapé nos e-books , e carnavalescos, como o El Cid Carvalho, ganharão a imortalidade, porque como já diziam os gregos na voz de Hipocrates:” A arte é longa e a vida é breve.”.

1- "Não sabemos o que se passa e isso é o que se passa"