O ADMIRÁVEL ALBRECHT DÜRER (1471-1528)

Após a II Guerra Mundial, a cidade de Nürnberg (Nüremberg ou Nuremberga), na Baviera alemã, tornou-se mundialmente falada. Realizaram-se ali os famosos processos contra os nazistas, responsáveis por milhões que morreram nesta guerra.

Os bombardeios de 1940-1945 danificaram em 90% o centro industrial de Nürnberg, hoje com aproximadamente 520.000 habitantes. Na reconstrução da cidade no após-guerra, os escombros foram rapidamente removidos. O visitante superficial de hoje nada mais reparará da barbárie destruidora das bombas americanas.

É gratificante visitar Nürnberg, especialmente pelo destaque que a cidade dá a um de seus mais ilustres filhos, o artista Albrecht Dürer, que há mais de 500 anos nasceu em seus muros.

A Casa “Albrecht Dürer”

A poucos metros de um castelo e de fortificações medievais, onde imperadores do Sacro-Império-Romano-Germânico costumavam estagiar, ergue-se ainda hoje resistente a casa onde Dürer, nas últimas décadas de sua vida, viveu e produziu grande parte de suas obras artísticas. Entre elas pinturas de aguarelas, xilogravuras e artes gráficas diversas.

Por ocasião dos 500 anos de seu nascimento (1971) a “Casa de Dürer” foi restaurada para os festejos. Parte da mobília é original; a outra, imitação, conforme plantas medievais da residência.

Ao pisar na “Casa de Dürer” pratica-se um regresso de mais de 500 anos, entrando num ambiente tipicamente medieval. Para nós: estilo pesado, paredes escuras, recobertas com madeira e ornamentos com muitos quadros; escadas rangendo, corredores estreitos, pouca iluminação. Enfim, um ambiente sóbrio.

Como, praticamente, nenhuma obra original de Dürer se encontra em sua antiga moradia, estão ali miniaturas de sua obra para que os visitantes possam ter uma ideia da genialidade deste artista.

A Arte

Pelo que nos ensina a psicologia da arte, sabemos que a obra, nascida da mão do artista, não é produção do acaso, mas brota do subconsciente humano, e encerra as vivências e dinamismos duma pessoa, influenciada pelo ambiente e pelo momento histórico em que vive.

O autêntico artista, especialmente sensível aos fenômenos do meio, capta as reações históricas dos contemporâneos, as quais, elaboradas no subconsciente, brotam em forma de criação artística. Arte plástica ou rítmica. Dürer, artista de múltiplas faces, foi um clássico plástico.

Ambiente e obra

As principais obras de Dürer retratam a natureza, o mundo social e religioso dos fins da Idade Média. Dürer é um artista humanista e renascentista. Dos motivos da natureza, que o cercavam, fixou a célebre “Lebre”, a coruja, os esquilos, etc... As obras, com motivos religiosos, mostram aspectos da vida de Nossa Senhora, da Paixão de Cristo, cenas do Paraíso, com a famosa representação de Adão e Eva.

O grande número de motivos religiosos revelam que Dürer viveu ainda no mundo sacral da Idade Média, apesar de, nos últimos anos de vida, ter sentido, na própria pele, as correntes religiosas em brotação, das quais a mais influente era a reforma luterana. Contudo, todas estas inquietações não foram problema vital para a arte religiosa em Nürnberg.

As igrejas de Nürnberg, passadas ao protestantismo, ainda hoje estão repletas de quadros de santos e da Virgem Maria. O povo respeitou a arte das igrejas, até então católicas, conservando-as através dos séculos, tal e qual como eram antes da Reforma Protestante.

O mundo sacral de Dürer aparece também em motivos propriamente profanos. Como exemplo: “o cavaleiro, a morte e o demônio”. Nesta obra mostra-se classicamente um aspecto da vida medieval. O “Cavaleiro”, sempre preparado para a guerra; o “Demônio”, na figura típica dum cabrito, procurando adeptos para seu reino de perdição; a “Morte”, com a gadanha na mão, medindo os dias de vida dos indivíduos. Inimigos, forças do mal e morte eram os companheiros sempre presentes ao homem medieval.

No aspecto social e político, as vivências de Dürer estão marcadas pela vida do castelo e pelo movimento nas fortificações, distantes poucos metros de sua casa. Muitas vezes foi contratado para trabalhos nas salas dos imperadores. E, por ter feito a ornamentação do carro de honra do Imperador Maximiliano I, recebia uma pensão.

Dürer também se preocupou com a arquitetura das fortificações, elaborando, inclusive, um projeto ideal de como deveria ser construído um castelo, indicando onde deveriam ficar os canhões, a infantaria, a cavalaria para melhor proteger o castelo e a cidade. Com certeza, também não passaram desapercebidas a Dürer as terríveis prisões medievais, distantes apenas algumas quadras de sua residência.

Quando se visita as celas destes antros, não se pode deixar de sentir um calafrio por todo o corpo, ainda mais quando se sabe que muitas prisões de hoje não são menos desumanas do que as prisões de quinhentos anos atrás.

As prisões medievais de Nürnberg, hoje, apenas são referências turísticas. A maioria dos visitantes apalpa em silêncio os terríveis aparelhos de tortura que, há centenas de anos, rasgaram a carne dolorosa, também de muitos inocentes. O sangue destes inocentes não deixará de clamar aos céus, como o sangue de qualquer inocente, bebido pela terra, clamará aos céus em todos os tempos.

Encontram-se nas prisões medievais de Nürnberg, fielmente conservadas, as “câmaras da morte”, donde somente se saía para a execução. Ali também se preservam as “celas escuras”.

Nas “celas escuras” os prisioneiros eram isolados, por meses, e até por anos, sem luz e sem contato humano. Quem nelas permanecesse por alguns meses, poderia estar certo que, ao sair dali, ficaria cego, pois as pupilas dilatadas, após meses de escuridão, cegavam no contato com a luz.

Aos condenados à pena capital, servia-se, na noite anterior à data da execução, o “banquete da morte”. Um lauto jantar! Regalia que lhes era oferecida após terem, pela última vez, contemplado a luz do sol, através de pequena abertura gradeada, por onde também podiam contactar, pela última vez, com seus familiares.

No dia da execução, conduziam o réu para fora da cidade, antes do nascer do sol. Para evitar tentativas de fuga, amarravam numa das pernas do condenado um pedaço de tronco, que ele arrastava dolorosamente, às vezes, por vários quilômetros até o lugar da execução. Fora dos muros da cidade, esperava-o a forca ou a espada.

Entre os muitos instrumentos de tortura, preservam-se, hoje, nos museus de prisões medievais, tenazes para puxar e machucar a língua; instrumentos para arrancar unhas, dentes; agulhas para espetar debaixo das unhas; atarrachadores de dedos; instrumentos aplicáveis aos órgãos genitais, etc...

A crueldade do homem medieval pode-nos estarrecer, mas, parece-me, não são comparáveis com as técnicas refinadas de tortura e massacres praticados durante a II Guerra Mundial e, em nossos dias, nas guerras, nos sequestros e em prisões de países que se consideram “civilizados”. Pensando um pouco sobre isto, podemos concluir que nem tudo o que afetou negativamente a vida de Dürer deixou de ser realidade para nós.

Mas, ao lado deste ponto negro da vida de sua cidade, Dürer foi influenciado, predominantemente, por vivências diferentes: natureza, animais, palácios, fortificações, guerras, igrejas, viagens à Itália. Enfim, vivências do dia-a-dia dum homem culto e sensível ao final da Idade Média.

Na última década de sua existência Dürer viu sua cidade natal, Nürnberg, religiosamente dividida pela Reforma Protestante. Contrariamente a isto, em sua juventude vivenciara a teoria que ensinava: “um rei, um povo, uma fé”. Teoria que, durante séculos, predominou em grande parte dos países europeus.

Considerações finais

Enquanto os homens de nossa época ainda são capazes de reconhecer a arte, expressão de valores e de dimensões espirituais, podemos acreditar que a humanidade ainda não está totalmente dominada pelo ativismo da civilização tecnocrata. Uma civilização responsável pela desvalorização de muitos aspectos do belo, da contemplação e das manifestações do espirito.

Tenho a impressão de que, daqui a quinhentos anos, os habitantes do “planeta azul” falarão da cultura de nosso tempo com certa compaixão. Nos escombros dos arranhacéus e nas carcaças dos automóveis somente encontrarão a pobreza espiritual das nossas obras. Em vão procurarão os valores espirituais, os únicos capazes de eternizar a humanidade.

Com razão Nürnberg continua prestigiando Albrecht Dürer que, aos 21 de maio de 1471, nasceu em seus muros, pois vê nele um gênio capaz de retratar o belo de nossa terra, e alertar-nos frente aos perigos que nos ameaçam.

Inácio Strieder é professor de filosofia.- Recife- PE.