O NORDESTE BRASILEIRO

Habitado há tempos imemoriais que remontam à pré-história, a região foi o palco do descobrimento do Brasil. Ao aportar na cidade baiana de Porto Seguro, no longínquo 22 de abril de 1500, Pedro Álvares Cabral descobriu o Nordeste, tornando a região o berço da colonização portuguesa no país.

Ali abrolhou o Brasil, engatinhando-se em seguida para outros confins. Ali nasceu o nome Brasil. Assim, o Brasil é uma extensão do Nordeste e não o oposto, como muitos acreditam, como os livros de história insistem nessa cristalização.

O Nordeste é a mais autêntica região do continente brasileiro. Idolatrada em prosa e verso por seus filhos mais ilustres; exaltada em denodos infindáveis por seus analfabetos e intelectuais: de Patativa do Assaré a Rui Barbosa. Aqui, mesmo a chaga do analfabetismo - não por opção ou por má vontade de instruir-se, mas, exclusivamente, por falta de condições ou de oportunidades - pode não significar exclusão. Pode significar ser um Patativa, um Gonzagão, um Jackson (o dos pandeiros)... Ou seja, ser um ser de outro planeta...

Região tão bem cantada de norte a sul do país, em serenatas orquestradas por namorados apaixonados e consagrados: Luiz Gonzaga, Trio Nordestino, Sivuca, Dominguinhos, Gilberto Gil, Jorge de Altinho, Belchior, Ednardo, Fagner, Amelinha, Mastruz com Leite, Flávio José...

Terra esplendorosa de Majestades, de Reis: Rei do baião, Rei do cangaço, Rei do pandeiro, do astro-rei... Aqui até o Rei do Pop, na época casado com a filha do Rei do Rock, sentiu a força da magia e do encanto no estado berço da civilização sul-americana contemporânea, sob os olhares e batuques atentos do Olodum.

Pedaço de chão de Presidentes republicanos: Epitácio Pessoa, João Café Filho e Luiz Inácio Lula da Silva conquistaram e governaram a grandeza de um país sem limites físicos e estéticos, durante períodos conturbados da história. O paraibano Epitácio espalhou sementes de água em todos os torrões ressequidos do interior do Nordeste, irrigando otimismo nos desditosos corações nordestinos no início da década de 1920.

Reduto de mestres em seus ofícios: vaqueiro, repentista, jangadeiro, mulher rendeira, cassaco, cangaceiro, triangueiro, moleiro, músico de orquestra sanfônica, embolador de coco, zabumbeiro, poeta de cordel... Não existem categorias homeomorfas noutros pisos.

Terra natal de homens e mulheres, quase gênios, que usando da caneta e a mente, criaram devaneios, fábulas, imaginações, além de retratarem a face trágica do sertão, reinventando a literatura brasileira: José de Alencar, Sousândrade, Graciliano Ramos, José Américo de Almeida, José Lins do Rego, Gonçalves Dias, Castro Alves, Aluízio Azevedo, Graça Aranha, Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Rachel de Queiroz, Dias Gomes, Jorge Amado, Ariano Suassuna...

Nestas terras, a poesia brota feito água no aquífero guarani, como petróleo no oriente médio. Desse modo, até mesmo os cangaceiros eram poetas: Lampião e Chico Pereira derramaram angústias, pesadelos, alegrias, batalhas, decepções, vinganças, sofrimentos, em poemas que se constituem numa das mais belas formas de arte da civilização.

Solo cobiçado pelos europeus desde os primórdios: portugueses, franceses e holandeses tentaram apoderar-se, à custa de muito sangue derramado, de muitas vidas sacrificadas, da região. Até hoje, o Nordeste continua palco de invasões estrangeiras. Estes chegam aos montes. Aos milhares. Aos milhões. São os turistas à caça do paraíso, à caça da felicidade, ainda que de forma súbita, breve.

Bem dissera Euclides da Cunha que o sertanejo é, “antes de tudo, um forte”. Afinal de contas quantas vezes o Estado Brasileiro teve que se armar, séculos após séculos, para exterminar um nordestino, um ideal, um povo? Foi assim, com Zumbi. Foi assim com Conselheiro. Foi assim com Virgulino.

As secas inclementes continuam assolando o Nordeste, é bem verdade... Todavia ele é o Senhor absoluto do Rio São Francisco, Rio Corrente, Rio do Peixe, Rio Grande, Rio Parnaíba, Rio Jaguaribe, Rio Paraíba, Rio Pajeú, Rio Piranhas-açu, Rio Capibaripe, Rio Apodi, Rio Mossoró... Não se contentando com estas dávidas divinas, quis o sertanejo mais. Assim, mesmo sem o homem querer “brincar de Deus”, sobrevieram: São Gonçalo, Riacho dos Cavalos, Condado, Lagoa do Arroz, Boqueirão de Piranhas, Pilões, Cedro, General Sampaio, Pentecostes, Boqueirão de Cabaceiras, Pedra Branca, Serrinha, Araras, Coremas-Mãe d´água, Banabuiú, Açu, Orós, Castanhão...

A região ainda pena com o desemprego e a miséria, mas é abastada na produção de abacaxi, cacau, cana-de-açúcar, algodão, babaçu, caju, manga, castanha, melão, feijão, milho, goiaba, coco, banana, sal... Também produziu São Gonçalo e Petrolina, oásis transgressores da natureza, verdadeiras anomalias climatológicas, terras que viraram a casaca, derrotando a seca.

A fome ainda não foi exterminada da região, mas na culinária, os nordestinos se deliciam com pratos típicos que dão água na boca: pirão de peixe, acarajé, vatapá, grude de goma, mungunzá, canjica, pamonha, panelada, galinha à cabidela, baião de dois, bobó de camarão, arroz de cuxá, vinagreira, torta de camarão, arroz de leite, macaxeira cozida, bode guisado, chouriço doce, cabeça de galo, frango com quiabo, arrumadinho, carne de bode, buchada de bode, maxixada, rabada, sarapatel, cuscuz, beiju, paçoca de carne seca, cocada, doces de caju, carne de sol, tapioca, milho verde, coco, surubim...

Aqui o termômetro alcança os 40 0C. Algumas vezes usurpa esta marca. No entanto, a Serra da Ibiapaba na divisa do Ceará com o Piauí; a região montanhosa do Planalto da Borborema, onde se localizam os municípios de Garanhuns e de Triunfo em Pernambuco; o Brejo Paraibano, em que contempla as cidades de Areia, Bananeiras e Solânea; a região da Serra de Martins no Rio Grande do Norte; entre outras; estão para o Nordeste assim como Campos do Jordão, São Joaquim, São Leopoldo e Gramado estão para o Brasil.

O Nordeste apresenta um cantar triste nos versos de: “A triste partida”, “Asa branca”, “Assum preto”, “O último pau-de-arara”, “Vozes do sertão”, “Pau de arara”, “Vaca estrela e boi fubá”, “Súplica cearense”, “Lamento sertanejo”, “Seca do nordeste”, “Meio-dia”, “No vôo da asa branca”... Mas a redenção vem com: “A volta da asa branca”, “Petrolina juazeiro”, “Saga de um vaqueiro”, “Raízes do nordeste”, “Pout porri do interior”... Na região a alegria é contagiante e não para: é de Caruaru o maior São João do Brasil; já o maior do mundo é de Campina Grande. O bumba-meu-boi é do Maranhão. Olinda possui o melhor carnaval do planeta. Ou será o da Bahia? Já as Micaretas não têm dono: pertencem a 1.794 municípios espalhados em nove alegres estados da federação.... Não se deve esquecer de Chico Anísio, Renato Aragão, Tom Cavalcante, Shaolim, Zé Lezin, Tiririca, Adamastor...

Nestas bandas, o cerrado, mata dos cocais e mata atlântica são bastante escassos. O ecossistema pantaneiro, a mata das araucárias ou a densa floresta tropical não existem. No entanto, a caatinga, ecossistema único, bioma exclusivamente brasileiro, é vasta, densa, quase uma praga. Uma praga benigna, que resiste imune às tentativas de queimaduras de quarto grau de um sol escaldante e impiedoso. Uma praga que passa meses a fio sem beber água e que se verdifica com os simples boatos de chuva, jorrando esperanças nas almas dos nordestinos.

Os jardins nordestinos são mais floridos, graças à beleza e imponência dos cactos, aroeiras, mandacarus, carnaúbbas, juremas, coroas-de-frade, juazeiros, palmas, xique-xiques, umbuzeiros, angicos, marmeleiros, caroás...

A região é castigada por algumas paisagens semiáridas, desérticas; por outro lado, é abençoada com paraísos naturais deslumbrantes: Fernando de Noronha, Porto de Galinhas, Abrolhos, Serra da Capivara, Chapada das Mangueiras, Porto Seguro, Costa do Sauípe, Tambaba, Chapada da Diamantina, Canoa Quebrada, Jericoacara, Itamaracá, Genipabu, Maragogi, Genipabu, Lençóis Maranhenses...

No Nordeste, não se conhecem pinguins, lontras, onças pintadas, tucanos, zebras, girafas, leões, elefantes.... Todavia não seria incomum, nem tampouco desonra, organizar um zoológico com mocós, acauãs, seriemas, tejus, rolinhas, cassacos, codornas, sapos cururus, jararacas, bigodes, arribaçãs, cotias, gambás, tatus-pebas, calangos, preás, asas brancas, teiús, soins, sabiás, lagartixas, assuns pretos, e até onças pardas... Os jegues e bodes seriam ilustríssimos visitantes do zoo.

Daqui não surgiram Papas ou Santos. Já no imaginário popular e na fé, muita fé, dos católicos, que compõem a religião predominante, Padre Cícero, Frei Damião e Irmã Dulce representam poder espiritual em abundância, um atalho sagrado para o criador, para a consecução dos milagres e bênçãos divinas.

O Nordeste não conheceu os quatro jovens rebeldes de Liverpool. Porém de suas entranhas adveio um grande encontro, capaz de abalar os arcabouços da música popular brasileira: Zé Ramalho, Elba Ramalho, Geraldo Azevedo e Alceu Valença. A reunião artística representou um marco na composição pop, celebrando a revitalização da música nordestina.

O desprezo governamental faz-se presente, como também em outras regiões, mas os sertanejos ainda se orgulham, muitas vezes lacrimejam ao se referirem à pré-idosa SUDENE, ao idoso BNB, ao centenário DNOCS. A atuação destes organismos pode até ser questionada, do ponto de vista político-administrativo, mas jamais deve ser desprezada a contribuição deles, tanto para o enfrentamento da seca em si, como para a aprendizagem da convivência do nordestino com ela.

Assim é o Nordeste. Repleto de contrastes, de antagonismos. Pode até ter sido bem ser resumido ou definido por Glauber Rocha: “Deus e o diabo na terra do sol”. Contudo, nada abala a alegria, a esperança de dias melhores, o amor e o orgulho do povo pela sua terra, pelas raízes do sertão. Os que permanecem na terra não pretendem deixá-la, enquanto os filhos ausentes não pensam em outra coisa, a não ser o regresso, como bem versam Mastruz com Leite e Luiz Gonzaga.

No meu sertão tem de tudo

De bom que se possa imaginar

Tem um sol clareando

Lá onde canta o sabiá

Tem a bondade nos olhos

De um homem trabalhador

Que usa chapéu de palha

Com humildade, sim senhor [...]

No meu sertão xique-xique é a bandeira do nordeste

Tem forró, vaquejada, xote, baião de leste a oeste

(Raízes do Nordeste. Matruz com Leite, 1993)

Já faz três noites que pro norte relampeia

A asa branca ouvindo o ronco do trovão

Já bateu asas e voltou pro meu sertão

Ai, ai eu vou me embora vou cuidar da prantação

A seca fez eu desertar da minha terra

Mas felizmente Deus agora se alembrou

De mandar chuva pr'esse sertão sofredor

Sertão das muié séria dos homes trabaiador.

(A Volta da Asa Branca. Luiz Gonzaga/Zé Dantas, 1950)