Sobre “realidades” e televisão

Conheci a televisão oito anos depois que nasci, em 1969, quando um dos primeiros televisores a serem vendidas no país estava na casa de meu avô, onde vivi a primeira década de minha estada neste mundo.

Para a minha avó paterna, devota da Igreja Adventista do Sétimo Dia, certa da excelência dos valores supremos das “riquezas celestiais” prometidas aos “eleitos” por Jesus Cristo no arrebatamento final à perfeitas convivências com um “Pai celestial” em Sua luminosa morada; ciente de sua missão enquanto adventista da vinda do imperial “Reino dos Céus” a Terra sob os auspícios de uma Consciência Suprema na percepção da presença interior de um harmonizador “Espírito Santo”, original guardião consolador e mentor de boas almas – para a minha avó, então, a televisão era nada menos que uma “máquina de fabricar loucos”, embora décadas antes de seu advento o Cinema tivesse já sido inventado a ter começado a por loucas gentes noutros lados do mundo.

Mas mesmo que ela nos parecesse, não ficara louca Dona Maria, preta velha ajudante doméstica de minha avó para quem seria impensável pôr-se diante da televisão sem tomar um banho e enfeitar-se a que nenhum personagem de novela a visse desajeitada! – tamanha a magia e o fascínio que a televisão provocara nas mentes mais ingênuas, como ainda hoje faz, embora naquele tempo fôssemos todos nós um bando de ingênuos sobre o que nos aguardava no futuro.

A inusitada preocupação da velha Maria dava-se por completa ignorância – como ainda hoje há a nossa – sobre como funcionava aquela primeira barulhenta caixa mágica e suas luminosas sombras que, ainda em preto e branco, apareciam e desapareciam dela e que, todavia, nos mostravam – como ainda hoje, agora em cores – os absurdos de realidades ora terríveis, como quando, em plena hora do jantar, o telejornal “Repórter Esso” nos fazia cientes do que acontecia no campo de batalha, onde norte-americanos trucidavam vietnamitas e vice-versa, ora quando resultado da magia tecnológica a revelar outras conquistas de mágicos cientistas, nos fazendo partícipes das aventuras dos astronautas que pisaram na lua, por exemplo; ou quando, graças ao poder da imaginação, nos encantava ao mostrar as mágicas de uma fictícia feiticeira que, a despeito dos preconceitos que tínhamos sobre a inevitabilidade da feiúra de uma bruxa, no seriado A Feiticeira a “bruxa” era uma bela mulher, boa dona de casa, excelente esposa e dedicada mãe – naturalmente considerando os estereótipos daquele tempo ao reconhecimento e valorização dessas qualidades femininas.

E mesmo que, como desejam muitas mulheres hoje, ela pudesse mesmo transformar momentaneamente seu marido em sapo em horas de estresse.

Assim, a televisão nos parecia oscilar entre sua função de “fabricar loucos” e nos promover esperanças, já que transmitia a loucura ao noticiar a realidade brutal que, sofrida em outros lados do mundo, malgrado a considerável distância que nos separavam dela, fazia-nos desesperar de um pretendido “bom futuro” à humanidade, retirando-nos do sono reparador, necessário à manutenção de nossa sanidade física, emocional e metal, entre filmes de faroeste onde revólveres disparavam sem parar a matar instantaneamente bandidos que não derramavam uma só gota de sangue, nem agonizavam em convulsões antes da morte (que sempre nos parecia apenas tê-los posto para dormir), além dos virtuosos desenhos animados de Walt Disney e as sagas de super-heróis vindos “do céu”, que nos inspiravam a busca e desenvolvimento de nosso próprio potencial maravilhoso, tendo infelizmente contribuído para a proliferação de muitos frustrados ao redor do mundo.

Mas, com o passar do tempo, para serem ainda mais realistas, então, foi preciso que os produtores de animadas artes visuais caprichassem nos efeitos especiais, com o apoio de mais excelentes atuações dos atores à conquista de mais densa estética da violência, onde, em filmes do gênero, o hiper-realismo de explosões de crânios, cérebros, quebra de ossos, guinchos hemorrágicos e explosões de corpos em convulsões, produtos da pós-moderna computação gráfica, são muitas vezes mais protagonistas dos filmes do que o melhor de seus atores – quando não suscitam aumento dos que adoram crer, ou a intensidade de suas “certezas”, da fé na existência daquele “Deus-Pai Todo Poderoso” tão adorado por minha avó.

Ou seja: a televisão, disseminando produções cinematográficas, além de nos mostrar mais realisticamente as consequências da violência, mais ajudou a crescer o número de crentes incondicionais na dimensão fundamental metafísica do universo físico. E não apenas por transmitir a Missa do Galo, rezada pelo papa em noites de natal, ou as muitas pregações diárias dos protestantes de suas interpretações sobre as “coisas do Céu” a influenciar as coisas da Terra – malgrado as orientações dos santos sobre a natureza excludente que eles promovem na divisão da unidade do Espírito e, consequentemente, dos que se pretendem íntegros inquilinos do esperado Reino por vir – mas também graças à expectação de filmes como Poltergeist, Ghost, Cocoon, Amor além da vida e as mais recentes produções cinematográficas Atividade Paranormal, Presságio, Transcendência, Lucy e Êxodo, entre muitas outras.

Dessa forma, seguem as programações veiculadas pela televisão hoje, ainda fundamentadas nos princípios de informar e entreter – embora, como escrevi, as conquistas de novas técnicas de produção de imagens tenham se nos apresentado nas telas a nos fazerem crer “mais verossímeis” as mais delirantes fantasias; quer as produzidas pelas técnicas cinematográficas, quer as produzidas por aqueles que, detentores do poder de manipulação ideológica das massas, não param de inventar novas realidades e, por intermédio da televisão – a despeito das pós-modernas mídias que ainda a utilizam – as fazem tomar corpos a convencerem a gente de que tudo ali transmitido, numa evidente amálgama de contradições fundamentais, será sempre “o melhor” que todos têm a oferecer ao estímulo delirante dos desejos.