Ex-operário, tradutor conclui trabalho com os 'cinco elefantes' de Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski (1821-1881) estava morto havia 80 anos quando Paulo Bezerra, paraibano de Pedra Lavrada, o encontrou pela primeira vez.

Na época, o nordestino radicado em São Paulo, então um militante de 21 anos do PCB (Partido Comunista Brasileiro), só tinha lido um livro na vida, "A Lã e a Neve", do português Ferreira de Castro. Por sugestão de uma amiga do Partidão, resolveu, em 1961, encarar "Crime e Castigo" na tradução das edições francesa e espanhola feita por Rosário Fusco e publicada pela José Olympio.

"Entendi muito pouco, mas fiquei fascinado com a história de Raskólnikov e o clima do romance", lembra.

Cinco anos depois, Bezerra imaginou, pela primeira vez, verter "Crime e Castigo" para o português direto do russo. Era um aluno de tradução da Universidade Estatal de Moscou, quando encontrou a mesma edição da José Olympio numa biblioteca. Aproveitou para cotejar com o original russo a versão de Rosário Fusco.

"Foi impressionante: era como se autores diferentes contassem a mesma história, cada um a seu modo", diz.

Trinta e cinco anos depois do vislumbre foi lançada pela editora 34 a tradução de Bezerra para o clássico de 1866 –a primeira versão direta do russo publicada no Brasil.

Ali começou a saga de verter diretamente da língua original os "cinco elefantes de Dostoiévski", apelido dado aos romances da maturidade do escritor no documentário "Die Frau mit den 5 Elefanten" (a mulher com os 5 elefantes), sobre a história de Svetlana Geier, que, como Bezerra, traduziu do original os cinco grandes romances, só que para o alemão.

Além de "Crime e Castigo", integram a lista "O Idiota" (1869), "Os Demônios" (1872), "O Adolescente" (1875) e "Os Irmãos Karamázov" (1881).

A saga de Bezerra chegou ao fim neste ano, uma década e meia depois, com o lançamento da tradução de "O Adolescente" para a editora 34.

"Meu pai era ferreiro; minha mãe, costureira –logo, não podiam custear meus estudos", lembra o tradutor de 75 anos que, aos 10, garimpava minério no Seridó da Paraíba. Também trabalhou em farmácias e no comércio, tentou –sem sucesso– se alistar na Marinha e ajudou um tio na construção de açudes.

Deixou o nordeste aos 18 em direção a Atibaia (SP). Após dois meses trabalhando numa granja, rumou para a capital e, depois, Guarulhos (SP), onde morou com o irmão, soldador e mecânico de uma fábrica e militante sindical.

No começo 1960, seguiu os passos do mais velho. Virou operário. Foi quando começou a se envolver com o movimento sindical e, por fim, se filiou ao PCB. Pela filiação, acabava demitido de todas as fábricas. Chegou a ser preso em 1962, durante uma greve. Foi liberado horas depois, mas não conseguia mais emprego.

No ano seguinte, aceitou o convite do PCB de fazer um curso de formação política em Moscou. Deixou o Brasil com um manual de russo, onde aprendeu o alfabeto cirílico e nada mais. "Eu só falava o português, minha formação regular era o curso primário e o curso de desenho mecânico."

OITO ANOS

Veio o golpe militar de 1964. Bezerra, comunista fichado pela polícia, não tinha como retornar. A estada, que deveria durar seis meses, se estendeu por oito anos. Nesse período, ele ingressou na universidade e trabalhou na Rádio Paz e Progresso, dedicada a questões políticas. Também conheceu Ênio Silveira, fundador da editora Civilização Brasileira.

"A ditadura assustava qualquer um, sobretudo quem trabalhava com jornalismo na União Soviética e estava bem informado do que acontecia por aqui", conta. Por orientação do PCB, retornou ao Brasil pelo Uruguai. "O clima era sinistro, sentia-se o perigo no ar." Como fora preso em São Paulo, decidiu se fixar no Rio. Era uma forma de precaução.

De volta ao país natal, Bezerra fez letras na Universidade Gama Filho e se tornou mestre e doutor pela PUC-Rio e livre-docente em literatura russa pela USP. Também reencontrou Silveira. Dessa primeira visita ao Brasil, em 1971, saiu com "Fundamentos Lógicos da Ciência", de Pavel Kopnin, para traduzir.

"Foi meu primeiro contrato de tradução", diz. Hoje, tem no currículo 33 obras traduzidas ao português, o que o torna um dos grandes tradutores de russo do Brasil, país até o século 20 acostumado a tradução de traduções do espanhol, do francês e do inglês.

Para Bezerra, "o tradutor de texto indireto é um imitador de terceira categoria". Ele diz que o texto perde as peculiaridades das falas das personagens dostoievskianas, tornando-as claras e elegantes. Algo oposto a Dostoiévski, que "é rude, áspero, deselegante quando a forma o requer; logo, estilizá-lo e torná-lo palatável às chamadas regras do bem escrever significa trair uma peculiaridade essencial de seu estilo".

Aspereza que toma tempo: Bezerra leva, em média, dois anos e meio para traduzir e revisar cada obra.

TRADUTOR COMENTA TRADUÇÃO DOS CINCO ROMANCES

"Crime e Castigo"

Publicação 2001

Sinopse Dostoiévski narra a história do estudante miserável que assassina uma idosa e não consegue se livrar do peso do remorso.

Nota do tradutor "O principal é encontrar a linguagem específica de Raskólnikov, manter o padrão de aproximação e distanciamento ao longo do romance."

O Idiota

Publicação 2002

Sinopse O príncipe Míchkin é um indivíduo virtuoso que, inadaptado, passa por "idiota" numa sociedade corrompida.

Nota do tradutor "A grande dificuldade foi traduzir o prenúncio da epilepsia de Dostoiévski, em que os pensamentos eram desestruturados."

"O Adolescente"

Publicação 2015

Sinopse Romance de formação, com um jovem de 20 anos que busca ser aceito na sociedade russa no começo do capitalismo.

Nota do tradutor "Dos cinco livros, este foi o mais leve de traduzir, pois se trata de um romance praticamente sem a tragédia dos demais."

"Os Demônios"

Publicação 2003

Sinopse O autor cria uma ficção a partir de um episódio verídico: o assassinato de um estudante por um grupo niilista.

Nota do tradutor "Este romance tem uma dinâmica de crônica, diferente da das demais. O narrador está dentro da narrativa -não participa, mas vê."

"Os Irmãos Karamázov"

Publicação 2008

Sinopse O último livro de Dostoiévski trata da conturbada relação entre Fiódor Karamázov e seus três filhos.

Nota do tradutor "Foi um dos mais difíceis de traduzir. A mulher do capitão Sneguirióv tem problema de cabeça e sua linguagem é embaralhada, descontínua."

RODOLFO VIANA

DE SÃO PAULO

30/12/2015 02h00