BRASILEIRO LÊ POUCO ? – IMPRESSÕES PARCIALÍSSIMAS E SUSPEITAS
 
Sobretudo lê mal, se queremos uma resposta rápida, e isso talvez seja o pior.A percepção quantitativa – denunciada por ‘pouco’, ‘muito’ e ‘o suficiente’ – talvez seja pertinente, se o for, em se tratando do leitor em formação.O indivíduo recém alfabetizado recebe muito estímulo para leitura?Há figuras de autoridade e influência atuantes que levem a criança a uma intimidade com os livros?Seu ambiente familiar é propício à cultura de aquisição de conhecimento e entretenimento através dos livros?Sua educação é de qualidade?Responder a essas questões não exige muito esforço, e cada uma delas pode ser o ponto de partida de uma orientação efetiva de toda uma nova geração de leitores, e isso é de grande importância.Quero, no entanto, manter o foco no consumidor de livros, já (bem ou mal) alfabetizado e de algum modo familiarizado com leituras e literatura.Muito de minhas tendências pessoais mascarará os julgamentos aqui esboçados, não tenho problema algum em relação a isso, acho inevitável, até, mas tentarei uma abordagem objetiva sobre o perfil do leitor, qualidade da produção literária atual, leitura de clássicos, e o que mais surgir em relação a questões que daqui venham à tona, sem muito planejamento prévio.
 
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Como é possível deixar claro que determinado livro, de certo autor famosíssimo, é uma bela porcaria sem valor algum?Como provar que o que aquele obscuro autor local, que mal consegue pagar suas contas em dia, está explorando talvez seja algo de significado e valor literário muito superior ao do best-seller do escritor consagrado? A questão é colocada, em algum momento, lá nos confins do A ARTE NO HORIZONTE DO PROVÁVEL (Haroldo de Campos) não me ocorre em que parte – leia todo o livro, não precisa concordar com tudo (eu não concordo), será muito instrutivo, de qualquer maneira.Tentar encontrar respostas para esses questionamentos pode deixar nossas escolhas mais criteriosas.
 
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O primeiro livro que li – e isso lá pelos anos 70 – foi A MORTE NO NILO (Agatha Christie), presente de uma senhora rica, para ‘criar o hábito da leitura’.Eu era muito jovem, e provavelmente o fato de ter aprendido a ler em casa deve ter pesado na escolha do meu presente.Levei algumas semanas na leitura, sem grande entusiasmo, confesso, e algum tempo depois assisti ao filme, na tevê, com aquela sensação abobalhada de ‘Ah, então foi assim que aconteceu!’.Voltei ao livro e o reli, bem mais rápido, se não me falha a memória.Coloco esse fragmento autobiográfico apenas para evocar a tese (schopenhaueriana, eu acho) de que a leitura é um exercício algo passivo, uma vez que, ao demandar atenção total no texto, o leitor não pensa durante a leitura, é apresentado ao pensamento de outrem, pensamento sintetizado estética e funcionalmente no limite de seu talento e perícia literária.O domínio do código comum a autor e leitor não implica necessariamente na apreensão efetiva do que se disse, de fato, e do que se quis dizer, uma vez que a percepção da realidade (sua leitura) é condição pré-existente à absorção da mensagem escrita.Enriquecida de algum modo pela experiência pessoal ou por estímulo de outro teor (um filme, por exemplo), a leitura ganha nova interpretação.O que talvez se assemelhe ao fenômeno da contínua atualidade dos clássicos, por exemplo.    
 
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Então, que motivo eu tenho para afirmar que o brasileiro lê mal?Frequentemente o livro mais badalado, o que ‘todo mundo está lendo’, pode ser enquadrado numa categoria de literatura que, além de mal escrita, sem desafio a leitores mais experientes ( ou mesmo a novos leitores com imaginação acima da média ), ocupa-se de frivolidades ao sabor do que seja a tendência do momento, podendo ser esoterismo de butique, vampiros vegetarianos, conspirações clericais, erotismo light e por aí vai.Esse tipo de literatura vende pois corresponde à expectativa de entretenimento da maioria do público leitor, que não espera nada além de algo facilmente digerível, que não faça pensar muito e que não o deixe desconfortável diante de qualquer aspecto concernente à sua própria condição existencial, à realidade.Essa busca pelo trivial não é necessariamente consciente, mas alimentada pela forte promoção do superficial, por parte das editoras e da indústria do entretenimento em diversas plataformas, e por uma necessidade de contemporaneidade, de identificação com a orientação geral do ‘rebanho’.Querer ser de seu tempo talvez seja, mesmo, já estar ultrapassado, como afirmava Ionesco – que, até onde se sabe, não foi best-seller.O fato, leitor, é que sua sobrinha adolescente de cabelo azul ou seu neto imberbe com piercings no mamilo não possuem essa percepção, e as causas disso são numerosas.
 
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Não se enfia a CRÍTICA DA RAZÃO PURA ( Kant ) goela abaixo de um leitor inexperiente, isso não seria muito produtivo, mas também não há motivo para subestimar a inteligência alheia com livros de qualidade duvidosa a pretexto de que ‘é necessário começar de alguma maneira, mais tarde o leitor determina por si o que tem valor ou não’.O problema é que isso não ocorre como uma regra.Li, aos catorze, O VERMELHO E O NEGRO ( Stendhal ) e a DIVINA COMÉDIA ( Dante ) aos dezesseis, sem grandes problemas – é óbvio que teria usufruído mais de Stendhal se fosse mais velho, e a obra-prima de Dante me surpreende a cada nova releitura – a sensação de que estava no caminho certo me acompanha desde então, quando as questões que motivam esse artigo ainda nem se insinuavam ao meu espírito.
 
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Leio best-sellers como qualquer ser humano normal com tempo disponível para tanto, apenas não é o meu foco no momento.Basicamente Stephen King, os contos.
 
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Creio não ser exagero afirmar que o livro escolhe o seu leitor, não o contrário.A expectativa de um leitor de best-sellers em relação à mais nova aquisição – da qual fará um vídeo de ‘unboxing’ e outro sobre suas impressões profundas sobre o que acaba de ler... – é basicamente determinada por aquele senso de rebanho inescapável nesse tempo de redes sociais, a tirânica necessidade de gostar do que a indústria do entretenimento espera que seus clientes gostem.Pouco importa a qualidade literária do produto, se um grande número de pessoas lê e gosta – como tanta gente pode estar equivocada ao mesmo tempo, não é mesmo?...Harold Bloom deve ser um pedante velho amargo e invejoso por afirmar que Harry Potter é mal escrito, com certeza.J.K.Rowling é o gênio literário de uma geração, imagine...O fato é que esse tipo de autor sabe para quem escreve e, conhecendo os fundamentos de seu ofício ( imitação barata de arte ou arte ruim ), dosa com maestria os temperos apetecíveis a seu público alvo.A fórmula ( receita ) é infalível.
 
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Meu interesse por poesia foi meio tardio, aos vinte e poucos.Tinha uns primos na faculdade, na época (anos 90), então sempre havia algum exemplar de um periódico da Editora Brasiliense, com artigos sobre autores e livros de diversos estilos – lembro-me da coleção Cantadas Literárias e dos livrinhos ( importantíssimos e acessíveis ) da série Primeiros Passos – e uma série local chamada Escritos de Vitória, com crônicas, contos e poesia de autores capixabas.Foi uma introdução razoável.Tomei contato com a produção de gente que ainda estava viva e atuante na cena, isso foi muito impactante como estímulo a escrever.Lia por essa época os livros de Sérgio Blank , Orlando Lopes, Viviane Mosé e outros.Levaria um longo tempo para perceber o cerne ideológico de cada orientação formal, de cada atitude estética assumida deliberadamente ou de forma tácita, sutil.Abusado, submeti meus poemas ( bem ruinzinhos, naquela época ) ao Francisco Aurélio Ribeiro(!), que com toda a paciência de um educador me estimulou a trabalhar mais no que pretendia.Conheci pessoalmente os poetas Valdo Mota, Sérgio Blank e Miguel Marvilla, que em 1997 publicou meus poemas na hoje extinta revista VOCÊ, da Secretaria de Produção e Difusão Cultural, da UFES, a universidade federal local.
 
As leituras, por esse tempo, eram diversas e sem tanto critério além da curiosidade.Com mais de vinte anos, sem trabalhar ou estudar, tinha cadastro em três bibliotecas públicas e lia muito.Lia, além de coisas descartáveis como o já citado Stephen King, literatura fantástica de Cortázar, Borges e Kafka ( e Murilo Rubião! ), poesia traduzida de diversos autores como Rimbaud e Ezra Pound, os contos de Edgar Allan Poe e muitas antologias de contistas nacionais, além de autores peculiares que ainda admiro, por exemplo, Isaac Bashevis Singer.
 
Essa longa intromissão autobiográfica serve ( ou não ) para ressaltar que desconfio de que minha percepção da clara distinção entre a literatura de consumo e a literatura de verdade talvez se deva ao meu contato com a poesia.Não raro o efeito decorrente de ler um clássico da literatura era muito semelhante ao experimentado ao ler os poemas realmente bons.Seja como for, por essa época – anos 90 – minha leitura começa a ficar mais crítica e aguçada.
 
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Israel Rozário
Enviado por Israel Rozário em 31/07/2016
Reeditado em 02/08/2016
Código do texto: T5715047
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