A vida simples nos sítios

A vida simples nos sítios

São Gonçalo possui vários sítios localizados na sua periferia, não obstante, alguns já existiam antes mesmo da construção do açude, sendo que muitos deles foram extintos por desapropriação a partir do processo de colonização na década de 1970, que mudaria toda a face do vale do Piranhas.

Nos sítios localizados na bacia do açude, a partir da sua construção em 1936, a IFOCS implantou em São Gonçalo o sistema ou programa de irrigação/produção de vazante, que se constitui numa faixa de terra localizada em torno do açude, formada por uma parte seca e uma parte úmida, sujeita às variações do nível do reservatório. Este programa possui sistemática de cooperação interna mútua, na qual o vazanteiro efetua o seu cadastro perante a zeladoria do açude, através do pagamento de uma taxa e da assinatura de um contrato de arrendamento de uso da terra de propriedade da IFOCS para fins de produção.

Observa-se, também, que a IFOCS/DNOCS empreendeu forte impulso à irrigação em São Gonçalo, durante as décadas de 1930 a 1960, através da política de cooperação com os particulares das várzeas e ou sítios irrigáveis, em que o governo federal oferecia a infraestrutura de irrigação, com barragem, canais e drenos, além de fornecer a água pelos canais, que foram construídos em terras particulares com permissão dos respectivos proprietários.

Em contrapartida, o cooperando ou irrigando privado usufruía da água, mediante pagamento de uma taxa, ao passo que recebia orientações sobre o seu uso racional e sobre técnicas agrícolas, além de mudas selecionadas diversas e máquinas agrícolas para a produção, na forma de aluguel. O uso da água era liberado mediante o depósito de uma caução correspondente à quantidade de água pretendida em determinado período, geralmente mensal.

Tudo era bastante fiscalizado pelos guardas dos canais, que controlavam a quantidade exata, emitiam o boletim de consumo e encaminhavam ao Instituto de São Gonçalo para confrontar com o limite contratado anteriormente.

Os sítios localizados no entorno dos atuais Núcleos II e III eram abastecidos pelo canal sul e seus ramais, enquanto aqueles localizados no entorno do atual Núcleo I passaram a ser abastecidos pelo canal norte e seus ramais.

Os agricultores, alternativamente, também puxavam água empoçada do rio, através de motores bomba. Para o consumo doméstico, as pessoas pegavam água no canal com latas de querosene de 18 litros, pois não havia sistema de água encanada nas residências.

A implantação destas políticas cooperativas acarretou um significativo incremento positivo na produção agrícola na região, em decorrência da irrigação, que passou a ser permanente, contribuindo decisivamente para amenizar os efeitos da seca sobre a população.

Além da predominância da atividade agrícola e da criação de pequenos animais, alguns sítios de São Gonçalo dispunham da atividade industrial, que consistia na utilização de máquinas de descaroçamento do algodão, das engenhocas de cana-de-açúcar, sobretudo para fabricação de rapadura, nos períodos denominados de “tempo de moagem”, bem como das casas de farinha, que processavam a goma e a farinha de mandioca.

Na região sitiante, não havia energia elétrica. A iluminação era feita através das lamparinas com uso do querosene. No final da tarde, homens e animais se preparavam para a chegada da noite, que regulava a vida do sertanejo tanto quanto o vento.

Bandos de marrecos cortam o espaço infinito, indo para os lugares onde costumam dormir. Pássaros chamados de arroz acompanham o bando, também se recolhendo para os lares da beirada do açude. Esses pássaros saem das áreas mais secas e vão para as vazantes de arroz para se alimentarem durante o dia, voltando boquinha da noite para os ninhos. É um espetáculo bonito de se ver, não fossem os caçadores com as espingardas. (SARMENTO, 1999).

No sertão da Paraíba, a hora e o vento regulam a vida noturna da população. Todos aguardam este refrigério natural, que embala o sono dos sertanejos (ALMEIDA, 1923). Os sopros do aracati ainda traziam consigo a benevolência de espantar os mosquitos e muriçocas que tanto atormentavam as noites dos camponeses.

A escuridão das noites incendiava o ambiente com inúmeras estórias de assombração, envolvendo almas penadas, visagens e malassombros, imergindo das sombras e penumbras do mágico sertão rural. Acreditava-se que algumas destas almas penadas ressurgiam para contar segredos da vida anterior, notadamente sobre botijas e seus áureos segredos.

Uma estória bastante recorrente nos sítios, contada há gerações, refere-se a um homem muito rico da região, de nome Eugênio, acusado de matar a esposa e que viveu no século XIX. Eugênio possuía um escravo de porte avantajado, um velho e estimado burro e um cão fiel.

Certo dia, já com uma idade na vanguarda, chamou o seu escravo, selou o burro, juntou todo o ouro (garfos, facas, moedas) disponível em um baú e partiu em direção ao Sítio Lamarão, no sopé da serra. Eugênio, o escravo, o burro e o cachorro. Era uma madrugada silenciosa e negra, de lua descarregada. Os galos ainda aproveitavam as últimas horas de sono. Vez por outra, o vento frio quebrava o silêncio serrano, trazendo sons de latidos de alguns cães, advindos dos arredores do Sítio Pitombeira.

Ao chegar próximo a uma vivaz e solitária oiticica, nas proximidades do Sítio Lamarão, o Senhor Eugênio para e determina que o escravo cave dois buracos profundos com o intuito de enterrar o precioso baú. Indagado pelo escravo sobre o outro buraco, dissera que era para enterrar o burro, que alegara ser muito velho e doente.

Cavados os dois buracos e logo após o soterramento do baú, o Senhor Eugênio mata os seus três acompanhantes, o escravo, o burro e o cachorro, e os enterra juntos, de forma a não deixar nenhuma testemunha daquela que seria uma das botijas mais comentadas no século seguinte.

Pobre escravo. Tinha planos para o futuro. Em poucos anos, aconteceria a abolição da escravatura no Brasil. Por aquelas quadras, já ouvia os comentários alvissareiros para a sua gente. No entanto, morreria sem conhecer a tão sonhada liberdade.

Ao presenciar o banho de sangue, a jovem oiticica chega a temer pela sua vida. Antevia a fatalidade como certa. Desta feita, com o coração batendo a mil, se ajoelha e implora ao carrasco pela sua vivência. Promete, pela seiva que escorre de suas veias, levar o segredo ao túmulo. O cruel sertanejo abranda a alma e poupa a bela árvore. Interrogada por décadas, por forasteiros e nativos, a velha oiticica manteve-se reticente, cumprindo a promessa. Pouco antes de morrer, seria adotada por Boaventura Rocha, que respeitaria sua idade avançada e seus princípios arraigados.

O tesouro jamais seria encontrado, a estória nunca seria esquecida, a lenda se eternizaria...

As noites de chuva com ventos fortes assustavam os moradores em suas frágeis taperas de barro. Todavia, a superstição consolidada indicava a arma certa para o combate à natureza, que era jogar sal, mão de pilão ou um prato de porcelana para fora da casa. Em pouco tempo, o vento abrandava o seu ímpeto, tranquilizando os camponeses.

Para muitos, tudo isto não passa de estórias de trancoso , alimentadas por fantasias, embaladas pelas luzes das lamparinas, a partir de descortinantes sombras projetadas nas humildes paredes de barro, bem como pelo decorrer do tempo, a perder de vista.

Todavia, não se pode menosprezar a cultura e os costumes de épocas amareladas pelo tempo, que se configuram na própria historicidade da região, sob pena da perda da própria identidade local. A hodiernidade pode e deve conviver em afinidade com os encantos e hábitos do mundo clássico.

O sistema educacional instalado nos sítios do entorno do Piranhas era bastante precário. Na década de 1940, instalou-se uma escolinha no Alto da Boa Vista, que funcionou de forma improvisada em casas de moradores. Os primeiros professores foram: Mestre Cícero e Doralice (de Neco Ferreira), nas décadas de 1940 e 1950, Lourdinha de Constante e Deza de Chico Pedro, na década de 1960, cujos professores substitutos eram Mundinho de Joanita e Ormano de João Jó. No Sítio Paquetá, atuavam como professoras: Maria Augusta, esposa de Zé Messias; Dione Diniz (14.12.1939-16.06.1991), esposa de Geraldo Dias; Ivone Dias, filha de Manoel Dias; e Terezinha Dias.

De acordo com as práticas pedagógicas vigentes, em casos de indisciplina e de inabilitação nas atividades, a professora Doralice Ferreira costumava aplicar penalidades aos alunos, como o uso da palmatória e o castigo de joelhos sobre grãos de arroz e milho.

As atividades cívicas, como as comemorações da semana da pátria, se constituíam em um ponto alto da educação na década de 1960, em que os alunos do curso primário se vestiam impecavelmente para o desfile na cidade de Sousa e para a foto oficial do dia.

Nas proximidades dos sítios, havia um campo de futebol, em que eram realizadas memoráveis partidas nas tardes de domingo, envolvendo as equipes locais, com um grande número de torcedores e torcedoras. Uma grande novidade aconteceu no ano de 1962, quando o Senhor Ranulfo da Escadinha levou um rádio para a casa de Manoel Basílio, em que as pessoas puderam ouvir ao vivo a copa do mundo daquele ano, com muita dificuldade, haja vista a sofrível qualidade da sintonização. A maioria das pessoas nunca tinha visto um rádio na vida.

A religião católica exercia supremacia na região, porém nos sítios não havia igrejas, com exceção da capela do Matumbo. Realizavam-se alguns atos religiosos nas próprias casas dos moradores, a exemplo das novenas de Nossa Senhora no mês de maio e das novenas de São João, no mês de junho. Os casamentos e batizados aconteciam em Sousa, enquanto os festejos eram no próprio sítio. Na Semana Santa, a maioria dos moradores jejuava durante toda a semana, ou seja, só almoçava e jantava. Às quintas e sextas-feiras santas, era costume o pessoal não pegar em dinheiro, haja vista tal ato ser considerado um gravíssimo pecado cristão.

Nestas localidades, era comum ocorrer os casamentos entre parentes (consanguíneos), bem como uma grande quantidade de filhos por família.

Não havia médicos nos locais. Os partos eram feitos pelas mãos da parteira Joaquina Antonia (1895-1973), avó de Chico Pedro, que exercia o ofício natalício do Quandu até a Volta da Caiçara. Mulher simples e respeitada não media esforços para viabilizar a chegada de uma nova vida ao mundo, nos recessos do sertão. A categoria foi devidamente prestigiada pela genialidade de Zé Dantas e Luiz Gonzaga, com a música “samarica parteira”.

Nos primórdios, na simplicidade do sertão agrícola, era muito comum as casas possuírem uma puxada, tipo alpendre, com coberta de carnaúba ou de palha de coco, de forma a tornar o ambiente menos quente e acolher as visitas na parte externa do recinto. Outra utilidade do alpendre natural era a opção de armar redes para o descanso vespertino, após o almoço (a famosa sesta).

Segundo o Senhor João Miguel, morador do Sítio Alto da Boa Vista nas décadas de 1930 a 1960, naquela época havia muitas histórias de assombração, notadamente sobre botijas, pois se acreditava que o pessoal mais velho costumava enterrar ou esconder os objetos de valor, principalmente, confeccionados em prata e ouro, com medo de assaltos. Às vezes, as pessoas morriam sem que o segredo da botija tivesse sido revelado. O próprio João Miguel afirmara que uma vez sonhou que havia uma botija no paredão da casa da mãe de João Jó (Pai de Deza e Ormano). Então ele mesmo contara o sonho para o amigo João Jó que, por indiferença, não chegara a procurar a botija.

Também havia muitas estórias de fantasma e superstição. Muitos moradores tinham medo de pés de oiticica e de juazeiro, além de encruzilhadas. Havia um forte receio de passar próximo a estes lugares à noite, pois diziam ser locais mal-assombrados.

No início da década de 1960, mais um conto sobrenatural acontece na localidade. Naquele tempo, era comum os agricultores se aventurarem em pescarias noturnas no leito do Rio Piranhas. Certa noite, Manoel Galdino pescava tranquilamente às margens do rio, nas proximidades do Alto da Boa Vista, na companhia de alguns amigos, que se encontravam mais distantes. Em dado momento, avista um enorme objeto boiando. Mesmo assustado com o tamanho descomunal do ser, Manoel Galdino resolve jogar um pedaço de pedra na sua direção. De repente, o estranho ser debate, demonstrando agressividade e jogando água em todas as direções. Parecia uma anaconda. Manoel corre em disparada para a sua casa, sem entender do que se tratava. Nunca mais tornaria a empreender pesca noturna.

Manoel Galdino bancava o jogo de pif-paf na sua residência. Inclusive, possuía clientes até mesmo de São Gonçalo, como Tércio Santino e Pedro Teobaldo.

A bodega de Manoel Basílio, no Alto da Boa Vista, fornecia alimentos e bebida para todos os sítios das redondezas. Até mesmo alguns moradores de São Gonçalo se deslocavam até a bodega para tomar uma cachacinha, haja vista a proibição da bebida no acampamento.

Antes da construção do PISG, o Rio Piranhas era bastante raso, e os bons invernos sertanejos sempre causavam alagamento em várias propriedades e nas plantações. Como o rio era raso, os carros advindos de Sousa efetuavam a travessia pelo seu leito, pois não havia pontes. Contudo, em períodos de cheia, o cruzamento do rio somente poderia ser feito através de canoas. O Senhor Zé Noé disponibilizava o serviço de travessia de uma margem para outra numa velha e surrada canoa de remos.

Depois do inverno, ficavam os poços de água no leito rio durante o ano todo. Em anos de sangria do açude, após o seu cessar, os sitiantes pegavam muitos pirarucus e tucunarés que ficavam encalhados nos poços. Uma das maiores sangrias do açude aconteceu no ano de 1963, época em que o rio ainda era raso, chegando a ocasionar sérias aflições à população.

No processo de desapropriação, o governo indenizou apenas as benfeitorias existentes e as plantações. Portanto, as propriedades em si não foram indenizadas. Essa atitude causou muito desgosto ao pessoal mais idoso, inclusive, alguns morreram ou ficaram loucos, pois tiveram que entregar suas terras quase de graça para o governo, ficando desalojados e com o futuro incerto. O fato acarretaria a irremediável adulteração da história. A maioria dos sitiantes recomeçou a vida em Sousa.