Nada tenho contra personagens delinquentes

Uma vez, alguém me disse que eu era preconceituosa quando eu fiz uma resenha crítica acerca de um personagem de um mangá. Tudo isto porque eu disse que o personagem não tinha jeito de quem havia sido delinquente juvenil e que a autora não o havia desenvolvido bem, pois ela não fala nada de seu passado para explicar o que o teria levado a ter andado no mau caminho. Não fiz a crítica me baseando em preconceitos, pois não se trata de julgar alguém por seu passado. Trata-se de dar a um personagem um perfil que corresponda ao passado que você lhe atribui. Alguém que foi delinquente poderia ser ingênuo,ter um olhar inocente e angelical? Claro que não. Ele pode mudar, tornar-se uma pessoa exemplar. Mas jamais se tornaria uma pessoa boba, otária. Quem cria um personagem, tem que fazer com que suas atitudes sejam coerentes com o histórico e perfil que lhes são dados. Eu não posso fazer uma ex-prostituta ser ingênua, não é mesmo? Pela sua experiência, ela aprendeu a identificar os homens que prestam e que não prestam. Seria o mesmo que fazer um ex-matador arrependido do seu passado não saber manejar uma arma.

Quem foi delinquente, conviveu com os mais diversos tipos de pessoas, teve de brigar, enfrentar perigos de morte e passou por reformatórios . Todas essas experiências ficam na pessoa, como a cicatriz de um ferimento. Eu acho que personagens delinquentes ou ex-delinquentes são muito interessantes e podem render boas histórias. Um delinquente não é necessariamente um mau caráter. Muitas vezes, é alguém que vem de uma área pobre ou de um lar desestruturado.

Muitos personagens delinquentes que observei nos mangás e animes são bastante interessantes, como o Yusuke de Yu yu hakusho; Takaya, de Mirage of Blaze e Ash, de Banana Fish. Todos eles têm histórias bem desenvolvidas, que mostram por que são como são. E o que há de comum em todos eles? Têm um olhar endurecido, a pose de durão e um jeito invocado que mostra que provocá-los não é uma boa ideia. O jeito durão e intimidador do delinquente pode soar clichê, mas não é irreal. Eles precisam ser durões para impor respeito, principalmente aos que pertencem a gangues inimigas.

Se você cria um personagem, precisa desenvolver bem sua história, até para que ele seja convincente. E, no caso do delinquente ou ex-delinquente, se você mostrar bem sua história, nós iremos simpatizar com ele. Vejamos o caso de Yusuke, de Yu yu hakusho. Ele é durão, mata aulas, vive batendo em outros adolescentes e até os professores o temem. Porém, ao vermos sua vida, criamos empatia com ele. Sua mãe, irresponsável e bêbada, não lhe dá atenção. Ela o teve aos quatorze anos e ninguém sabe quem é seu pai. Como se vê, ele não é mau, apenas desajustado. Com o tempo, após se tornar detetive sobrenatural, ele vai se tornando mais sério e forte. Mas conserva seu jeito durão e invocado.

Outro que parece um típico bad boy mal-encarado é Takaya, de Mirage of Blaze. Ele tem esse jeito porque foi abandonado pela mãe e o pai era violento e alcóolatra. Num capítulo do anime, ele explica que se tornou o que é para proteger a irmã do pai abusivo. Assim, vemos que ele não é apenas um bad boy, mas um jovem cuja família foi destruída e que faz de tudo pela irmã.

Talvez o que tenha a história mais complexa seja o Ash. Ele foi violentado várias vezes por seu técnico de beisebol, tendo-o matado aos oito anos. Então, fugiu de casa e foi "adotado" por um chefão mafioso de Nova York, que o fez de brinquedo sexual e o treinou para ser criminoso. O jovem é violento, bate nos rivais e mata mas, quando revela seus traumas por ter sido abusado sexualmente e forçado a uma vida de lider de gangue, vemos o quanto são profundas suas sequelas psicológicas e ele se sente perdido e sozinho.

Portanto,espero que entendam que não tenho preconceitos com o passado de ninguém. Só acho que temos de dar a um personagem um perfil real. Para reforçar o que digo, vejamos o caso de Bruce Lee, o lendário ator de filmes de artes marciais e um dos meus maiores ídolos. Ele era delinquente juvenil, arruaceiro e vivia brigando nas ruas. Foi mandado aos Estados Unidos por seus pais por ter espancado um membro da máfia chinesa. Na América, mudou, tornando-se aluno aplicado, formando-se em Filosofia e traçando o caminho que o levou a se tornar uma lenda. Entretanto, ele sempre manteve aquele ar invocado que sugeria que não era bom provocá-lo. O próprio Bruce Lee, numa entrevista, admitiu que era violento e precisava aprender a domar seu gênio. Ele era bastante consciente de que seu corpo era uma arma mortal.

Um outro bom exemplo de que temos que nos preocupar em dar aos personagens um perfil real é o do Henry Mitchell, pai de Dennis o pimentinha. Num episódio, o avô paterno de Dennis diz que Henry também havia sido um menino arteiro. Entretanto, quem olha para o pai de Dennis, só o acha com jeito de quem foi o nerd da sala de aula, não é? Pensamos nisso principalmente devido à sua profissão: engenheiro aeroespacial. Claro que uma criança travessa pode ser extremamente inteligente e boa aluna, mas ele é um homem extremamente calmo e quieto. Nada no seu jeito sugere que ele vivia fazendo travessuras e se metendo em encrencas. Faz sentido? Sabemos bem que adultos que foram crianças travessas continuam agitados mesmo após crescerem.

Enfim, a construção de um personagem é difícil e requer atenção e que se saiba sobre o que está escrevendo. Caso queiramos construir certos tipos de personagens, é bom que pesquisemos casos da vida real até para que os leitores possam se identificar.