A TRAGÉDIA DA NOTRE DAME

 
Num tempo em que a religiosidade era uma qualidade da alma e os templos da cristandade erigidos para honrar a grandeza de Deus ou do santo que o patrocinava, o ser humano era lembrado apenas em sua pequenez diante do mistério da magnitude divina. Naqueles tempos a catedral gótica era o “Santuário da Tradição, da Ciência e da Arte” como diz Fulcanelli (O Mistério das Catedrais, 1920) e não devia ser olhada apenas como o local onde as pessoas podiam sentir-se em comunhão com Deus, mas sim como um simulacro do universo, onde todas as manifestações da existência humana se condensavam e encontravam o devido encaminhamento. Esse era também o sentimento dos maçons que as construíam, profissionais que no exercício da sua profissão, acreditavam estar realizando obra semelhante à que Deus fazia na construção do edifício cósmico.
A catedral refletia todas as tendências da vida medieval, pois nela realizavam-se assembléias políticas sob a presidência do bispo, discutia-se o preço do trigo ou do gado, a cotação dos tecidos, etc. E não havia corporação de ofício que não levasse a obra prima do seu novo companheiro para ali ser benzida. Assim, tudo devia passar pela benção sacerdotal, fazendo da catedral o edifício mais importante da comunidade.
Os tempos são outros, mas essa antiga disposição que liga o espírito da cristandade ao seu templo mais representativo não mudou. Por isso justifica-se a multidão que chorou, rezou, cantou e se escabelou ao ver as chamas consumindo a Notre Dame de Paris, a mais representativa das igrejas medievais da Europa. Independente da religião professada, ela foi tomada por um estupor quase místico, como se a população de Paris visse no incêndio do colossal edifício uma imagem simbólica do momento conturbado pelo qual passa a sociedade francesa, sacudida por uma crise social, política e econômica semelhante às que precederam os movimentos de 1832 (Cerco da Rua São Dinis) e a revolta dos estudantes em 1968, liderado por Daniel Cohn-Bendit.
Notre Dame de Paris sempre foi um tambor onde o eco do espirito revolucionário francês acaba ecoando. Desde os primórdios de sua construção, no século XII, todas as eclosões do sentimento popular desembocam ali. Durante a Revolução Francesa foi apontada como símbolo da ganância e da tirania do clero e acabou sendo saqueada pelo povo enlouquecido pela pregação iluminista. Foram também os seus sinos que anunciaram a libertação da França da ocupação nazista em abril de 1944.
Ela é o coração do povo francês. E está conectada ao espírito da civilização ocidental. Por isso a comoção mundial com o incêndio que quase a destruiu.  Por ter acompanhado oito séculos de vida da história ocidental ela é o retrato vivo das transições sofridas por essa civilização na luta para superar suas próprias contradições.  
Torcemos para que seja logo reconstruída. Mas que na sua nova roupagem não perca a atmosfera de magia e encantamento que é a sua maior característica.