Anko Uehara x Noburu Yoshikawa: um casal que não convence

É comum vermos casais que não conseguem nos convencer em histórias de ficção e os motivos são muitos: eles não têm química, o autor não conseguiu desenvolver o relacionamento entre ambos ou então, simplesmente, a gente nota que é um casal que jamais daria certo na vida real. Embora a ficção seja pródiga em juntar casais improváveis, um bom autor tem de saber conduzir a história de forma que a gente sinta que eles foram feitos um para o outro e que o amor e as afinidades são maiores que as diferenças que em princípio indicavam que eles nada tinham em comum.

Também devemos mencionar que mesmo obras fictícias que nos agradam podem conter inverossimilhanças e aspectos errados que, se não chegam a estragar a história, merecem ser discutidos. Então, falemos do mangá Great Teacher Onizuka, de Tohru Fujisawa, que deu origem a um anime com o mesmo título, a dois seriados live -action e até hoje tem vários fãs. A história narra as aventuras de Eikichi Onizuka, um ex-bosozoku* que decide se tornar professor por um motivo bastante inusitado: ele quer se aproximar das estudantes pois deseja uma namorada. Ao assumir o cargo, Onizuka enfrenta mil dificuldades pois os alunos são problemáticos e fazem de tudo contra ele. Entretanto, com persistência e métodos heterodoxos, ele vai aprendendo a vencer a resistência dos alunos e se aproximar deles.

Um dos primeiros alunos a se tornar amigo de Onizuka é Noburu Yoshikawa, menino franzino, pequeno, tímido e frágil que enfrenta um sério drama: três garotas fazem bullying contra ele, que não aguenta mais e quer se matar. Aliás, Onizuka começa salvando-o de se matar. Quando o professor pergunta o porquê dele não falar com ninguém, o rapaz explica que tem vergonha de admitir que apanha de meninas. As meninas são Anko Uehara e suas duas amigas, Naoko Izumi e Mayuko Asano, que são altas e atléticas. Elas o espancam, deixando-o cheio de hematomas, chegam a desnudá-lo e tirar fotos dele nu. O bullying se torna mais violento quando as meninas querem se vingar de Yoshikawa por se tornar amigo de Onizuka. Elas chegam a escrever palavrões no seu corpo, xingando-o com todos os significados de homossexual e ameaçando que divulgarão suas fotos se ele continuar amigo do professor.

Após o menino tentar se matar uma segunda vez, saltando do prédio da escola, Onizuka toma suas dores e arma uma armadilha, amarrando as três meninas e batendo em seus traseiros. Anko e suas amigas, ao se ver na posição de indefesas, reclamam que Onizuka não pode tratar garotas assim e que têm direitos. Anko é filha da presidente do conselho de pais e mestres e recorre à mãe para tentar demitir Onizuka por maus-tratos mas outro aluno, Kikuchi, grava uma conversa de Anko e suas amigas e faz com que toda a escola saiba quem realmente são Anko e suas amigas, mostrando como Anko, além de tratar brutalmente Yoshikawa, ainda se achava poderosa e se gabava de enganar a todo mundo, dizendo que poderia derrubar qualquer aluno ou professor pois a mãe só fazia o que ela queria. Que pessoa sórdida, não?

Depois disso, entretanto, há outros episódios em que Anko e as outras agridem Yoshikawa até que, quando a história já está bem adiantada, algo inusitado ocorre: Anko descobre que, na verdade, gosta de Yoshikawa, chegando a defende-lo de uns agressores. Ela diz: “eu gosto dele, eu gosto dele.” E é assim que tudo termina?

Muitos acham lindo vê-los como um casal, porém, sejamos sinceros. É um casal muito errado. O que fica subentendido? Que uma pessoa agride a outra porque, no fundo, gosta dela? Isso é maneira de mostrar um relacionamento? E vejamos o que o bullying que ela fazia contra ele o fez fazer: ele tentou o suicídio duas vezes. De repente, foi como se toda a covardia e crueldade com que ela o tratou no passado fosse apenas uma implicância de menina? Alguém que tenta o suicídio está altamente perturbado. Yoshikawa não ficou com nenhuma sequela psicológica de tudo que sofreu? Quem sofreu bullying sabe muito bem que as sequelas não passam num piscar de olhos assim.

Colocar Noburu Yoshikawa formando um casal com sua antiga agressora faz tanto sentido como botar o estupro como um ato romântico (outro problema comum em animes e mangás) e, analisando bem o caráter de Anko Uehara, tudo que podemos concluir é que ela é uma pessoa abominável. Vejamos: como toda pessoa que pratica bullying, ela não escolhe aleatoriamente suas vítimas. Escolhe pessoas que não conseguem se defender. E não age sozinha. Isso é um procedimento calculado e covarde. O que ela fez com ele não foi apenas feri-lo fisicamente. Ela o feriu em sua dignidade, ameaçando expor fotos dele nu perante toda a escola. Isso é brincadeira de adolescente? Não. É uma atitude de delinquente, de uma pessoa incapaz de empatia e compaixão e que se deleita em ser cruel, humilhar e fazer alguém sofrer. Ela nunca parou para pensar no que é fazer alguém se sentir tão sem valor e desesperado a ponto de tentar se matar? Quanto a suas amigas, são moças sem personalidade, as típicas “maria-vai-com-as-outras” que seguem a líder. Agem igual a muita gente que, na vida real, ajudam o líder a fazer bullying contra uma pessoa indefesa mesmo sem nenhum motivo ou àqueles que observam a vítima ser humilhada e nada fazem além de rir, como se aquilo fosse uma coisa bonita e engraçada.

Na conversa com suas amigas (gravada por Kikuchi), Anko diz que manipula a mãe e faz o papel de moça perfeita em casa. Que podemos dizer do caráter de uma pessoa dessas? Que ela é hipócrita, manipula as pessoas, usando-as para atingir seus objetivos. E, quando a mãe – que a julgava uma menina sensível, gentil e obediente - chocada, pergunta por que ela faz bullying contra o indefeso Yoshikawa, Anko justifica dizendo que tem raiva do jeito de sabe-tudo da mãe. Boa desculpa, não? Descontar a raiva que tem do jeito da mãe batendo em quem não tem nada a ver com seus problemas é algo razoável?

Em outra ocasião, Anko, com raiva de Yoshikawa, diz para ele: “É por você ser assim que tenho vontade de fazer bullying com você.” A atitude dela nessa hora deu vontade de entrar na história para bater nela porque foi típica de muitos maridos abusivos que culpam as esposas por bater nelas: transferir a culpa para a vítima. Todo o procedimento de Anko Uehara não é de uma menina problemática com dificuldades para se aproximar das pessoas como o mangá tenta fazer parecer no fim da história, mas de uma pessoa de mau caráter, com tendências criminosas. Afinal, ameaçar expor fotos de uma pessoa nua e cheia de hematomas não leva a outra conclusão.

Sejamos francos: e Yoshikawa não tem nenhuma dignidade? Fica com ela, que o tratou como lixo no passado? Está certo que na ficção não é incomum inimigos se tornarem amigos, mas o autor de Great Teacher Onizuka poderia ter desenvolvido melhor. Uma outra história que aborda melhor uma situação parecida é A voz silenciosa, em que um rapaz faz bullying com uma menina surda que é forçada a sair da escola mas, após se ver vítima dessa prática abominável, ele se coloca no lugar da menina e, ao reencontrá-la, anos depois, tenta se desculpar e entendê-la, chegando a aprender a língua dos sinais. E A voz silenciosa não comete o erro do autor de Great Teacher Onizuka: minimizar o bullying, fazendo com que de repente ele não pareça tão grave como parecia no começo, levando Yoshikawa a tentar se matar. Outro mangá que fala com mais realismo sobre isso é Limit, de Keiko Suenobu. Nele, Mizuki Konno, que antes fazia bullying contra Arisa Morishige, resolve se redimir principalmente após saber que a mesma é vítima de violência doméstica e se aproxima dela para pedir perdão e tentar entender seus sentimentos. Nada disso ocorre entre Anko Uehara e Noburu Yoshikawa.

Um outro aspecto lamentável é que Great Teacher Onizuka também comete o erro de abordar o bullying como problema da vítima, como se a culpa fosse dela por ser fraca. Mesmo Onizuka, que toma as dores de Yoshikawa, briga com o rapaz quando ele tenta cometer suicídio pela segunda vez, perguntando se não tem vergonha de ser tão fraco e chega a perguntar por que ele não se defende. O menino diz que não tem como se defender de três meninas mais altas que ele. A situação de Yoshikawa é típica de muitas vítimas: quase ninguém apoia mas cobra da vítima que aja, quando, na verdade, a escola é que deveria tomar as providências.

Quem quiser ver o bullying sendo retratado como um problema a ser combatido pela escola, alunos e pais de alunos, assista ao anime Ijime ou leia Vitamin e Life, de Keiko Suenobu, autora que coloca o bullying como tema central de suas obras, mostrando-o como um problema sério, que causa danos psicológicos e não deve ser tratado com indiferença. A autora ainda faz questão de dizer que quem vê e se omite também é culpado pela perpetuação dessa prática covarde.

Pena que a maneira como o autor de Great Teacher Onizuka tratou o bullying e fez com que Anko e Yoshikawa ficassem juntos acabou por ser um erro que impediu que um bom tema fosse tratado como devia. Colocá-los juntos soou como algo forçado e artificial até porque, pensando sobre tudo que envolve a história dos dois ao longo da trama, podemos concluir que eles nunca dariam certo na vida real. Ela nem mesmo se desculpou pelo que fez no passado e, ao vê-los formando um casal, só se consegue pensar no que Rhett Butler diz a Scarlett O’hara no fim de ...E o vento levou quando ela, que passou todo o filme a rejeitá-lo, diz que o ama e sente muito: “Querida, como você é criança. Acha que um simples pedido de desculpas apaga todo o passado?”

Com certeza, isso era o que Anko merecia ouvir de Yoshikawa. Afinal, o bullying que ela praticou contra ele o feriu de forma profunda e foi uma atitude inominável.

• Termo usado para denominar membros de gangues de motocicletas.