Mitos da masculinidade Diálogos entre psicanálise, psicologia junguiana e sociologia Diálogos entre psicanálise, psicologia junguiana e sociologia

Introdução

‘Talvez passemos a vida inteira subindo a escada, apenas para perceber que ela foi posta de encontro à parede errada.’ J. Campbell

Esse trabalho visa apresentar e cotejar o pensamento de diversos autores acerca da masculinidade, como ela se apresentaria na psique do homem e na cultura. Para estudá-la do ponto de vista psíquico, recorre-se à vertente psicanalítica e à junguiana da psicologia. Para examiná-la sob o enfoque sociocultural, trabalha-se com pensadores ligados a ele. A essas contribuições teóricas, adicionam-se alguns recortes de situações sociais e algumas expressões linguísticas coloquiais sobre a masculinidade, típicas da cultura contemporânea.

De antemão, cabe esclarecer seu título e alguns dos elementos que o compõem.

O termo mito – referido ao senso comum – remete às concepções errôneas e aos conhecimentos inverídicos acerca de um fenômeno. No caso dos homens e de sua masculinidade, o senso comum propala o mito de que eles não sofrem em seu papel de ‘machos’ na cultura patriarcal. No âmbito científico, o mito se refere às narrativas utilizadas pelos povos antigos para explicar os fatos da realidade, os fenômenos da natureza, assim como as origens do mundo e do homem. Mais especificamente, na psicologia junguiana, os mitos e os arquétipos são fontes simbólicas fundamentais para se compreender o inconsciente humano (JUNG, 2001). Nesse sentido, eles são utilizados pelos analistas junguianos – inclusive para pensar a masculinidade. Esta compreende uma série de atributos, comportamentos e papéis culturalmente atribuídos a meninos e homens. Logo, reúne fatores definidos e construídos socialmente, bem como estabelecidos biologicamente (HOUAISS, 2003).

Faz-se necessário, ainda, precisar o recurso ao pensamento sociológico no bojo desse trabalho. A antropologia e a sociologia são ciências sociais que estudam o homem, seu comportamento, sua cultura e a sociedade em que vive. Contudo, a antropologia concentra-se nas tribos e nas culturas menos avançadas dos povos colonizados, ao passo que a sociologia se debruça sobre as sociedades urbanas, a ordem social, as relações sociais e as instituições sociais (MAUSS, 1974).

Tendo em vista essa diferenciação, justifica-se o recurso ao pensamento de expoentes relevantes do pensamento sociológico para se pensar o homem e sua relação com sua masculinidade – termo que de per si tem forte conotação sociocultural.

Essa reflexão demanda, ainda, apontar algumas questões linguístico-culturais preliminares relativas aos dois gêneros.

No contexto cultural diferenciado para homens e mulheres, o duplo padrão de moral permeia diferentes culturas. Oriunda dos tempos vitorianos, make an honest woman out of someone remete a tornar uma mulher honrada, honesta, virtuosa – após um longo relacionamento do homem com ela. Contudo, não se encontra uma expressão correspondente ao homem – a não ser num sentido jocoso. Ainda em inglês, slut significa vadia, biscate, piranha, galinha, enquanto stud significa garanhão, gostosão – ambos referidos a grande número de parceiros sexuais. Além disso, a mera mudança do gênero masculino para o feminino, em alguns casos, pode implicar uma mudança semântico-moralista considerável. É o caso de vadio – tramper, idler em inglês; fainéant em francês; vagabundo em espanhol – e de vadia – slut, bitch em inglês; salope, chipie em francês; mujer fácil em espanhol. Em quaisquer dos quatro idiomas, vadio designa o homem que não quer trabalhar e que vaga sem rumo, ao passo que vadia designa a mulher prostituta (REVERSO, 2017).

Ao longo da história da humanidade, o império masculino e o patriarcado estiveram presentes durante cerca de cinco mil anos - após terem sobrepujado o matriarcado - de origem agrícola. Nessa trilha histórico-cultural, o modelo tradicional relativo a ser homem tem sido pautado pela agressividade, competitividade, dominação, busca do sucesso e de poder. Contrapõe-se à visão cultural acerca da mulher, baseada em suavidade, delicadeza, expressão de suas emoções, repressão de sua sexualidade e submissão ao homem. Ademais, a ela se associam as ideias de ser fraca, dominada, inferior, desvalorizada, dependente, histérica, descontrolada, femme fatale e vadia.

Os modelos tradicionais de relações de gênero são construídos socialmente. Eles dispõem o macho como forte, dominador, viril, rude e inflexível, em detrimento da mulher - com características opostas as dele. Nessa medida, o modelo tradicional masculino requer do homem, frieza, insensibilidade, altivez, opressão, poder, força, virilidade, que representam sua superioridade física e intelectual. Desde criança, ele é educado, inclusive pelas mulheres, para se tornar agressivo, competitivo, provedor e intolerante para com a manifestação de sentimentos e emoções. Ele teme ser rotulado como ‘fraco’, caso seu comportamento lembre as emoções femininas (SANTOS, 2010).

Nessa mesma linha de raciocínio, a masculinidade é vivenciada com base na desvalorização do feminino e na supressão dos sentimentos, gerando-se um homem inflexível e agressivo. Sob tal contexto, o ato sexual se torna uma manifestação superior de poder e dominação do homem sobre a mulher, à medida que ele fica em cima. Assim, o pênis ou o falo - poder simbólico do pênis - representa um instrumento de força e de agressão metafórica, exercendo uma violência simbólica. Em contrapartida, a vagina representa fragilidade, inferioridade e impureza, estando associada às ideias de passividade e negação da condição feminina. Portanto, para além de características físicas naturais, os órgãos sexuais - femininos e masculinos - traduzem valores culturais construídos (BOURDIEU,1999). Quanto a isso, o falo é uma arma e a penetração de uma mulher por um homem é aparentada a um estupro. Tão somente a destruição dos estereótipos de sexo e a abolição da prisão do gênero permitem superar as definições artificiais da masculinidade e da feminilidade (LIPOVETSKY, 2000).

Badinter (1993) afirma que o pênis permite ao menino ascender ao primado da virilidade e da masculinidade, funcionando como metonímia do macho. Ele adquire caráter antropomórfico e passa a representar seu detentor. O pênis/parte define o homem/todo, levando-o à busca do sexo perfeito. Para Nolasco (1995), o menino, ao ser socializado, é lobotomizado em sua afetividade e suas ligações afetivas com o outro são bloqueadas pela família e pela escola. O homem é reduzido a uma ‘sensibilidade peniana’, visto que suas reações emocionais são vinculadas a seu pênis. Seu desempenho tende a determinar sua felicidade ou sua angústia existencial.

Nessa medida, a virilidade masculina é construída dentro do homem, em função de outros homens e em oposição ao feminino. Certas demonstrações de coragem são testadas em situações de afirmação de sua virilidade, associadas a seu medo de perder a estima do grupo e de ser chamado de ‘fraco’, ‘delicado’, ‘mulherzinha’, ‘veado’. Essas categorias desqualificam o feminino e o homossexual masculino, visto que ele representa uma afronta à condição de macho (SANTOS, 2010).

Sob tal sistema patriarcal, certos homens afirmam ser ‘homens de verdade’, insinuando que os outros teriam uma forma masculina, mas seriam falsos. A partir desse background milenar, os homens buscam fazer do jovem um ‘homem de verdade’. Quanto a isso, desde sua infância, os meninos ouvem a ordem ‘seja homem’, como se o fato de nascerem com um fenótipo masculino não lhes bastasse. No tocante às provas de masculinidade, ‘prove que você é homem!’ é um desafio que o homem enfrenta permanentemente. A partir disso, ele se distancia da consciência de seus sentimentos e emoções. Tenta, dessa forma, se livrar do estigma de ‘efeminado’ ou de ‘frouxo’. Assim, a virilidade não é um dom, mas é fabricada de acordo com um referencial idealizado (BADINTER, 1993).

Em relação a isso, Nolasco (1997) ressalta as pressões sociais que convergem para a representação do ‘homem de verdade’. Ao se adotar esse parâmetro de socialização dos meninos - advogam-se os cuidados a serem tomados com eles, para que se tornem tais homens. Bourdieu (1999) acrescenta que a sociedade é organizada com base no primado da masculinidade. Para tanto, os homens são instruídos nos ‘jogos de dominação’ – nos quais eles reproduzem a ideologia masculina dominante sobre as mulheres. Nesse sentido, Santos (2010) aponta que o homem tem sido vítima da representação de sua dominação: sua virilidade. Porquanto, ele precisa constantemente ‘provar que é homem’, por meio da demonstração de força, violência e virilidade.

Todavia, o homem idealizado - viril, agressivo, conquistador de várias mulheres e insensível para com os sentimentos - tem sido desmistificado. Porquanto, uma série de transformações históricas, políticas, socioeconômicas e culturais tem se contraposto ao domínio masculino. Dentre os movimentos histórico-culturais responsáveis por isso, têm-se: a revolução francesa - com seus ideais de igualdade, liberdade e fraternidade; a revolução industrial - a partir da qual milhares de mulheres entraram no mercado de trabalho; as duas grandes guerras mundiais - nas quais milhões de homens morreram e as mulheres tiveram que entrar no mercado de trabalho; o direito de voto para a mulher, a criação de universidades laicas, a contracultura - com suas críticas ao status quo patriarcal, militarista, imperialista; o movimento feminista - com suas reivindicações no tocante aos direitos das mulheres; a pílula anticoncepcional - a partir da qual as mulheres puderam escolher se queriam ter filhos ou não, entre outros. Doravante, cinco mil anos de civilização patriarcal pode dar lugar, quiçá, a uma convivência mais amorosa e mais igualitária entre os sexos.

Nesse processo, imposta a inversão de papeis pelas mulheres, os homens passaram a ter medo de perder sua virilidade. Cabe-lhes, então, exacerbar sua ‘macheza’ diante dos demais. Entretanto, em face das mudanças atuais, não se pode apontar uma masculinidade inabalável, mas várias masculinidades (BADINTER, 1993).

Dada a ruptura da determinação sexual da cultura - na qual o homem exercia seu poder hegemônico - se instaura a crise do poder do macho. Este se sente desestruturado, diante da crescente recusa dos valores masculinos ‘eternos’, aos quais estava acostumado. Assim, ele sofre de indolência, desamparo e abulia. Em suma, o fardo do ideal de masculinidade leva à fragilização masculina (TREVISAN,1998).

Nolasco (1993) advoga que o feminismo trouxe para a pauta de reflexões as questões de gênero, mas não ajudou os homens em suas questões de identidade. Impugnando o paradigma patriarcal, o feminismo enfocou os homens como opressores, cruéis e vilões contra as mulheres. Não obstante o fato de ainda serem dominadores e opressores das mulheres, eles carregam seu próprio sofrimento psíquico.

Quanto a isso, os homens contemporâneos vivem uma ressignificação de sua masculinidade Conquanto lutem para garantir o lugar privilegiado que lhes foi conferido, têm que encontrar novas formas de se relacionarem e se posicionarem ante as conquistas femininas e as transformações sociais (NOGUEIRA, 2016). Diante dessas mudanças, Giddens (1993) propõe que, a partir da transformação da intimidade, instauram-se condições reais de democratização da vida pessoal. Os padrões das pessoas são reelaborados, implicando novos estilos de vida.

Surgem, então, novas perspectivas para se transformar as disposições e regras predominantes da sexualidade fálica. Com isso, emerge uma sexualidade plástica, livre dos laços de parentesco e da reprodução. Ela se situa no campo de domínio do eu e do desenvolvimento da sexualidade, sem distinção e sobreposição de sexos. No que se refere a isso, Guattari (2000) afirma que a melhoria das condições de vida da espécie humana depende de um esforço considerável de promoção da condição feminina. Pois, a única finalidade aceitável das atividades humanas é a produção de uma subjetividade, que enriqueça sua relação com o mundo.

Apresentado esse panorama sobre a masculinidade de um ponto de vista sociocultural, faz-se necessário expor seus aspectos psíquicos - segundo psicanalistas e analistas junguianos.

A masculinidade e seu enfoque pela psicanálise

Para dar continuidade a esse debate no campo psícanalítico, parte-se de um recorte significativo do pensamento de Freud (1937) no tocante ao feminino.

Para ele, o ‘repúdio à feminilidade’ consiste numa notável característica da vida psíquica de homens e mulheres, evidenciada no final da análise. Neste final, o enfrentamento do rochedo da castração é comum aos dois sexos, mas sua expressão é diferenciada em cada um. À mulher cabe enfrentar a inveja do pênis. Ao homem cumpre enfrentar a recusa da feminidade: recusa em receber de um analista homem - substituto do pai - a cura, pois ele se recusa a ser devedor do analista.

Em franca oposição às ideias de Freud quanto ao tema, o autor -apresentado a seguir - aponta que o repúdio ao feminino aloja-se no próprio bojo da teoria freudiana.

Tort (2016) afirma que grande parte das construções sociais dominantes relativas ao sexo e ao gênero - solidárias com a ordem patriarcal - foi inserida pela psicanálise, em sua conceituação. Imperam, assim, as fantasias psicanalíticas sobre a psicossexualidade como: a suposta superioridade dos homens ligada a seu falo e a inferioridade das mulheres, vinculada a sua falta de pênis. E recrimina os psicanalistas ‒ cujas ideias se assentam sobre o foco patriarcal da falicidade e do repúdio ao feminino ‒ assim como critica a conclusão que o poder será sempre masculino e que ao feminino sempre se associará o horror feminae. Parte considerável das teorias psicanalíticas esteia-se na ‘solução paterna - fantasia de salvação pelo pai - que atribui a essa figura, a resolução do Édipo. A solução paterna é uma formação do inconsciente, decisiva nas religiões e axial na teoria freudiana. O repúdio ao feminino é um retrato sintomático do patriarcado. Frente a essas questões, instaura-se - desde 1980 - o conflito entre uma psicanálise de extração patriarcal e as transformações sociais na contemporaneidade.

Sob esse crivo, Bleichmar (2009) pontua que um dos problemas da psicanálise atual consiste em identificar e diferenciar os núcleos de verdade - que se conservam heurísticos em face da passagem do tempo, remetendo às questões invariáveis da constituição psíquica - dos modos de subjetividade - que mudaram ao longo do tempo. Porquanto, a produção da subjetividade é de cunho social, político e histórico.

Dentre as inovações da psicanálise para além do modelo falocrático, tem-se:

Horney (1968) propala que todo menino sentiu o desejo de ser mulher e sentiu-se ferido no seu narcisismo, por não sê-lo. Alinhada a essas ideias, Lax (1997) aponta que a inveja ao ventre fértil da mulher – fantasia mimética com a maternidade – é fonte de frustração nos meninos, sendo parte dos conflitos de rivalidade entre os sexos. A repressão de seus anseios e desejos femininos se alia aos estereótipos da masculinidade reforçados pela sociedade e pela influência patriarcal (itálicos do autor).

Conquanto os dois próximos autores façam uma interlocução relevante com a obra freudiana – para pensar a masculinidade – não questionam seu falocentrismo.

Cecarelli (1998) reflete a respeito da construção da masculinidade, no homem. A aquisição de sua masculinidade deriva da relação do filho com seu pai real. Este, dada sua inscrição na função fálica, se posiciona simbolicamente como homem. Contudo, a relação do menino com o pai é marcada pela ambivalência. No complexo de Édipo, duas vertentes se opõem e se conjugam: de um lado, uma atitude afetuosa para com o pai; de outro, uma hostilidade intensa em relação a ele, rival a ser eliminado. Ao final do complexo, essas tendências podem produzir uma identificação: para ser como o pai, é necessário parar de temê-lo. A angústia de castração, que visa preservar sua masculinidade, leva o menino a recalcar sua hostilidade contra o pai. Entretanto, se o recalque falhar, as tendências afetuosas retornam de forma intolerável para o ego, ao reatualizar a atitude afetuosa feminina para com o pai e reativar a ameaça de castração. De maneira geral, alguns fantasmas não integrados ao ego do homem – percebidos como passivos e ligados à feminilidade – consistem no retorno da corrente afetuosa em relação ao pai, que reativa a ameaça de castração. Desse modo, a posição masculina é bastante ameaçada e a feminina é tão temida pelos homens.

A relação do sujeito com seu pai – ou substituto – é decisiva quanto ao seu acesso às representações simbólicas do masculino. Na identificação do filho com o pai – mediante os investimentos do pai em relação a ele e as particularidades de sua cultura – se dá a construção da masculinidade, bem como suas diferenças. Tornar-se pai é aceitar que seu filho seja seu sucessor, legar-lhe sua função. Depende de ele saber que o lugar ocupado por qualquer pai é transitório. Ser um mero elo na cadeia de gerações significa descobrir-se mortal e compreender sua morte como uma lei universal – não como punição retardada por desejos edipianos proibidos. Logo, na relação pai-filho se reatualizam as ambivalências da relação desse pai com seu pai. Além do mais, a relação com o pai é protótipo das relações do sujeito com outros homens (CECARELLI, 1998).

Nessa trajetória, a tarefa de substituir a mãe – na proteção da criança – contra os perigos de mundo externo é conferida ao pai – na infância. Desse pai protetor –onipotente herói admirado/temido – fica a ‘nostalgia do pai’. Esse sentimento coincide com a necessidade de proteção, ligada ao desamparo humano. A origem do pai como protetor da criança reside no pai da horda primária. Nesse caso, o pai que protege a criança – no início da vida – reatualiza aquele que – nos primórdios da humanidade– protegia os membros da horda contra os perigos do mundo exterior. Na era glacial, quando as mudanças do ambiente superam a capacidade protetora do pai, este se tornou alvo da angústia do grupo. Assim, a interiorização do medo do real – como ‘angústia do pai’– possibilitou o desejo de morte contra ele e sua função simbólica. O complexo paterno culmina com o assassinato do pai – crime primevo da humanidade – pois sua morte atualiza a morte do pai primevo da horda primitiva (CECARELLI, 1998).

Fonseca (2014) aponta que a teoria freudiana articula o complexo de Édipo em torno de um mito de origem: o patriarca da horda primitiva. Nesse enfoque, os grandes homens, os heróis reais ou imaginários têm direito à satisfação irrestrita quanto ao prazer e ao poder. Os grandes artistas e os homens do conhecimento seriam seus análogos - sob o prisma da cultura e da linguagem - possibilitando novas direções para a humanidade. Nesse caso, eles impõem choques narcísicos à humanidade em suas aquisições culturais. Eles podem fazê-la avançar por meio de obras extraordinárias e de valor inestimável. Logo, o tema dos grandes homens abrange desde uma satisfação maior- a afirmação irrestrita da sexualidade - até a sublimação, que alça a humanidade a patamares inéditos. Contudo, tal progresso rumo à cultura acarreta mal-estar, pois exige altos graus de sublimação - requisito que a maioria das pessoas não pode atender.

Complementando a relação pais-filhos, Biddulph (2003) propala que a criação do homem moderno precisa ser repensada. Os meninos estão abandonados na tarefa de se transformarem em homens amáveis, competentes e felizes. Falta-lhes um bom modelo masculino e a presença constante dos pais. Estes os deixam sem um modelo seguro de crescimento, visto estarem bastante ocupados em ganhar a vida. Além disso, a maior diferença na educação dos meninos é seu tempo de crescimento: eles são mais lentos que as meninas no desenvolvimento mental. Muitos meninos não estão prontos para a escola antes dos cinco anos e deveriam esperar mais um ano, se necessário, no jardim da infância. Se esperassem um ano, estariam prontos para sentar quietos, para desenvolver maior capacidade de linguagem. Além disso, eles precisam de ajuda para comunicarem seus sentimentos. Os pais deveriam ler e contar histórias, conversar mais com eles. Ainda que homens e mulheres possam, ambos, educar bem, há coisas únicas que cada um faz. Enquanto as mães deixam as crianças mais calmas, os pais estimulam os meninos, mas podem estressá-los. Os pais ensinam os meninos a controlar sua excitação, ensinando-os quando parar - para não ferir ninguém. As mães ensinam os meninos o que as mulheres gostam nos homens: conversa, gentileza, humor. Os pais podem conferir confiança às filhas e valorizar sua inteligência. As meninas - cujos pais são ausentes - confundem atração com amor paterno, sendo facilmente exploradas pelos meninos.

Ainda no que tange à formação da criança, a masculinidade e a feminilidade consistem num conjunto de convicções obtidas junto aos pais, confirmadas pela sociedade. O núcleo da identidade de gênero confere, à pessoa, a convicção de que a atribuição do seu sexo foi correta, por parte do outro. Logo, a masculinidade e a feminilidade existem em todas as pessoas, em formas e graus diferentes. Ela começa com a percepção do sujeito de que pertence a um sexo e não a outro (STOLLER, 1993).

Desse modo, a construção da masculinidade é um trabalho constante e o pênis – central na formação imaginária do eu e determinante para a identificação e para a construção de seus ideais – não constitui uma garantia tangível contra o fantasma de castração (CECARELLI, 1998). Então, o ‘feminino’ nos homens põe em evidência os riscos da passividade, associada à homossexualidade. No viés da dominação, os excessos do masculino são formações reativas ao feminino. A anulação do outro - sob a ótica do narcisismo fálico - dá forma ao machismo (CHAVES, 2008). No avesso de seu valor fálico na cultura, a feminilidade é um tabu para o homem, na medida em que todo tabu indica um desejo recalcado. Assim, a masculinidade/posição ativa pode ser uma construção defensiva contra a passividade (KEHL, 2004).

Desse modo, o imperativo de adesão ao gênero masculino mobiliza - nos homens - certas identificações e modos de construção da subjetividade, que os alijam da intimidade consigo mesmos. Com isso, eles se distanciam da percepção de certos desejos - principalmente de passividade - visto que não condizem com sua virilidade. Eles utilizam a negação, a supressão e a projeção de afetos de difícil manejo - medo, dor e tristeza - pois devem ser corajosos, fortes e insensíveis. Essas características fundam a construção da identidade de gênero tradicional - a ‘normalidade masculina’. Contudo, elas são potencialmente patogênicas para sua psique. Logo, a ‘normalidade masculina’ - segundo ditames culturais - produz sofrimento psíquico (BURIN, 2000).

Berlinck e Fedida (1999) confirmam a tendência masculina de defender-se da tristeza ou da depressão. Dessa perspectiva, há semelhanças entre as características tradicionais da construção de gênero masculina e as demandas da cultura contemporânea. Ambas demandam do homem, ação, performance, negação da tristeza, exaltação do prazer, entre outras. Por conseguinte, como não lhe é permitido sentir sua dor, ele a manifesta por meio da ausência de ação - depressão- ou da ação - impulsividade, adições, compulsões. Quanto a isso, Hornstein (2008) sustenta que a atitude manifesta do homem consiste em camuflar sua insatisfação e seu vazio depressivo, através da violência e das adições. Isso se agrava na medida em que o álcool tem uma conotação positiva para sua masculinidade, indicando força. Visando garantir uma mínima sobrevivência psíquica, ele se fecha libidinalmente e prejudica suas relações afetivas. Portanto, o processo de subjetivação masculina não é - como erroneamente pode parecer -menos complexo que o feminino.

Nesse rol do sofrimento masculino, entram os emblemas da ‘sexualidade masculina normal’. Assim, tomar a iniciativa no sexo implica um grau de exposição ao rechaço feminino, gerando sofrimento no homem. Além disso, ele teme a iniciativa feminina, pois o angustia não cumprir o desempenho esperado. Seu temor sustenta-se no estereótipo de que dizer não à mulher, leva sua masculinidade a ser questionada. Frente à exigência da performance, as drogas e o álcool o aliviariam (MELER, 2000).

Há outras defesas psíquicas do homem em seus vínculos erótico-amorosos. A hipermasculinidade visa expulsar sua debilidade/feminilidade, valendo-se do pênis como instrumento de submissão e poder. Esse homem mantém, no mais das vezes, vínculos amorosos pautados pela sedução machista e pelo domínio. Sua sexualidade intensa visa dominar a presa conquistada, deixando-a indefesa em sua entrega a ele/macho potente. Ele goza ao gerar paixão e desejo na mulher, para abandoná-la em seguida. O amor superficial consta de uma entrega parcial do homem, com frequentes infidelidades e atitudes fugidias para com ela. A dissociação da vida erótica – amor terno à esposa-mãe e sexo com a mulher denegrida-prostituta – favorece vínculos superficiais. A posse sexual da mulher converte-se num troféu, que reassegura sua potência. Mediante seu abandono ou menosprezo, ele afirma sua virilidade deficiente. Os emblemas de poder envolvem as estratégias do poder, nos quais assomam seus aspectos fálicos. O poder outorga gratificações narcísicas, que acalmam as ansiedades de castração e de finitude. Seu patrimônio – dinheiro, fama, cargos importantes, objetos valiosos – reassegura-o contra uma rejeição afetiva e reduz a exigência de bom desempenho sexual. Ele se faz senhor de bens materiais para deslumbrar e dominar a mulher, mas não cuida de seu prazer e seu desejo. O poder costuma aumentar na meia idade, quando diminui sua potência erétil. Recorre, então, a próteses para compensá-la: remédios, manobras estéticas anti-idade ou aquisição de mulheres-bonecas, nas quais projeta juventude e potência para si e seus congêneres (ALIZADE, 2009).

A masculinidade e sua abordagem pela psicologia junguiana

Para o presente diálogo, contribuem, ainda, vários autores junguianos, que discutem as feridas da masculinidade e o profundo trabalho interno para sua cura. Alguns deles partem de mitos gregos para investigar o mundo psicológico e social do homem. Igualmente, certos arquétipos masculinos ajudam a entender sua vida psíquica. Além disso, outros autores discutem as características específicas da psique masculina.

O mito grego de Príapo reserva relevante significado para a psique masculina. Tendo Dioniso e Afrodite como pais, ressalta-se sua conexão com o êxtase, o instinto, a dança, o vinho, a natureza. Assim, ele nasce do êxtase físico instintivo e da sexualidade. Ele tenta violentar Héstia, deusa que se oculta em modéstia e preside sobre o lar. Essa segurança da domesticidade foi negada a ele, ao ser abandonado na infância por sua mãe. Ao passar pela vivência de abandono, ele sente ódio por sua perda (WYLY, 1994).

Príapo associa-se ao tema da castração - oposto ao priápico. Para Jung (2001), o fálico leva ao território das mães e suas conexões com o ventre e o útero - a matrix ou o aspecto criativo do inconsciente. Separar-se de phallos - a castração - gera esterilidade e fascínio pelo falo, sob a forma de obstinação pelo seu resgate. Essa busca infla a importância do objeto e pode tornar-se incessante e infrutífera. Representado por meio do falo ereto, Príapo constitui uma metáfora para a busca masculina de poder: traço da inflação patriarcal. Em contrapartida, uma relação adequada com phallos levaria à conjunctio: encontro criativo entre o phallos e a matrix: masculino e feminino.

O mito de Parsifal - cavaleiro que parte em busca do Graal - retrataria a procura masculina do self. Para encontrá-lo, o ego precisa desvencilhar-se de sua arrogância, sua inflação e seu poder. Quando encontra o Cavalheiro Vermelho/sua persona sente-se um cavaleiro, sem sê-lo. No castelo, ele encontra o Rei Pescador - seu animus - que tenta incluí-lo na vida adulta. A partir de Branca Flor - sua anima - ele se separa da figura materna e descobre sua masculinidade. Encontra sua sombra, mediante a donzela horripilante/suas imperfeições. Ele esquece Branca Flor, tornando-se amargo e sua vida perde o sentido. Depara-se com o Velho Sábio - sabedoria do masculino. Ele lhe diz para voltar ao castelo e fazer a pergunta: ‘a quem serve o Graal?’ A resposta a isso é: ‘o Graal serve ao rei do Graal’ - ao self (JOHSON, 1987).

O mito grego de Cronos ilustra o percurso do homem, ao tratar do relacionamento entre pai e filho: essencial em seu desenvolvimento psíquico. Cronos sofre muito com seu pai, que tenta impedi-lo de nascer. Posteriormente, ele assassina seu pai e devora seus próprios filhos. Assim, ele dirige os homens rumo a uma desenfreada luta pela sobrevivência - inclusive mediante a devoração dos filhos. Estes são devorados quando são impedidos de crescerem e assumirem sua identidade. O pai negativo se constela como o pai devorador no inconsciente, quando se forma na psique do filho, o impulso do crescimento em direção à individuação (HOLLIS, 2004).

Nesse universo, o patriarcado é um contrapeso para a fraqueza do homem, que cresce indefeso, sem a figura do pai. Assim, o amor é substituído pelo poder, que compensaria o medo do feminino e de ser ferido por outros homens. Frente a isso, os homens carregam consigo alguns segredos: sua vida é governada por expectativas restritivas sobre seus papeis sociais; sua vida é basicamente governada pelo medo; o poder do feminino é imenso na organização psíquica dos homens; eles precisam abandonar a mãe e transcender o complexo materno; carregam consigo profundo anseio por seu pai; conluiam-se numa conspiração de silêncio, para reprimir sua verdade emocional; sua vida é violenta porque suas almas foram violadas; para serem curados, precisam ativar dentro de si o que não receberam do exterior (HOLLIS, 2004).

Dentre os arquétipos masculinos, encontram-se o arquétipo do pai, do animus, do Don Juan, do tricster, do Velho Sábio, do puer aeternus, do herói.

O arquétipo do pai associa-se à cultura e à tradição, manifestando o princípio da lei, o permitido e o proibido. Ele tem uma grande importância para a criança, visto ter a função de separá-la psiquicamente da mãe. O arquétipo paterno ou masculino associa-se ao desenvolvimento da consciência e do Logos, bem como à estruturação do ego (JUNG, 2001). Assim, o arquétipo paterno tem o pai guardião de seus filhos e fortaleza contra as ameaças do mundo - como um polo - e o pai devorador - como outro. O pai devorador se relaciona com a submissão do filho às normas do grupo, à rigidez e às convenções. Seu reflexo negativo é uma consciência submersa em restrições e deveres definidos pelas normas coletivas. Assim, o filho anula sua singularidade, afasta-se da dimensão feminina, sufoca Eros, não constrói relações de amor e de amizade, pois suas bases psíquicas não são autênticas (STEIN,1979).

O arquétipo do Don Juan - com seu falicismo obcecado e sua compulsão por conquistas sexuais - tipifica a imaturidade do homem, que não se separou de sua mãe. Desse modo, ele procura a imagem da mãe – mulher perfeita que satisfaz todos os seus desejos– nas demais mulheres. Ele busca uma mãe-deusa, de forma que ao se apaixonar por uma mulher, logo descobre que ela é um ser humano comum. Atraído por ela sexualmente, sua paixão logo desaparece, ele se decepciona e a deixa. A seguir, projeta a imagem da mãe perfeita em outra mulher e repete a mesma procura (JUNG, 2001).

O arquétipo do herói é associado aos ritos de passagem, ao nascimento mágico, à separação do seio materno, à iniciação por espírito tutelar, aos feitos mágicos, a hybris/orgulho, à punição, à morte e à apoteose. Ele realiza façanhas extraordinárias e dignas de elogio. Tradicionalmente, extermina monstros e salva as pessoas da morte. Com isso, ele satisfaz as expectativas acerca daquilo que é considerado bom e nobre, em sua cultura. Por sua vez, o arquétipo do tricster personifica o embusteiro que segue seu desejo, sem qualquer limite ou lei. Ele faz emergir material reprimido culturalmente, permitindo a expressão da sexualidade e da agressividade, num tom lúdico. Nos contos populares, ele aparece em figuras folclóricas: o bobo da corte e o bufão. Tais heróis negativos - com simplicidade - conseguem o que outros não conseguem (JUNG, 2001).

O arquétipo do menino eterno/puer aeternus retrata o masculino em estado nascente - sem poder fálico de penetração e de conquista - cujo poder de sedução se deve a sua fragilidade. Ele se nega a amadurecer, devido a seu intenso apego inconsciente à figura materna, permanecendo na adolescência. Em sua relação hedonista com a vida, foge de qualquer compromisso com sua transformação pessoal ou da realidade. Evitando sobrecarregar-se com a responsabilidade, muitas vezes, perde o contato com a realidade da vida. Em contraposição a ele, o arquétipo Senex - em sua forma positiva - inclui o Velho Sábio e a figura do mago, que remonta ao feiticeiro das sociedades primitivas. Ele é o iluminador, o preceptor e o maestro: condutor de almas. Em sua forma negativa, pode aparecer como um pai devorador ou como um velho estúpido. O arquétipo do velho sábio personifica o masculino em seu mais alto grau de diferenciação, produzindo transformações psíquicas sutis e eficazes (JUNG, 2001).

Estudos junguianos mais recentes revelam outros arquétipos masculinos: o santo, o mago, o bufão, o rei, o guerreiro, o amante, o selvagem. O homem santo/místico precisa desenvolver sua conexão com o divino, o cosmos e o não-manifesto, tendo-se desfeito de qualquer apego. Sua faceta obscura é o hipócrita, o fanático que menospreza a vida terrena e jura pela vida espiritual, o crente que não toma a si qualquer responsabilidade por sua vida. O mago personifica a compreensão, a visão e o poder criativo do pensamento. Seu lado obscuro é representado pelo falso conselheiro, o terapeuta que manipula seu paciente, o assessor inebriado com o poder. O bufão representa a comunicação e a expressão da vida interior, o pensamento, o sentimento, o canto, a dança, a escrita de poesia e de livros. Sua faceta obscura é o intrigante, o enganador e o dissimulador de feitos relevantes (VAN der KROON, 2010).

O rei simboliza o amor, o coração e a autoridade interior. Representa o amor que cria harmonia e ordem, justiça e compaixão, sabendo como proceder nas diferentes situações. Se o rei não está a serviço de seu desenvolvimento, está enfermo ou é tirano. Na vida familiar, remete à figura paterna. O guerreiro representa o poder, a ação, a retidão. Seu lado negativo se revela por meio da ambição cega e do abuso de poder. O amante remete à vida afetiva, ao prazer, ao sexo, à comida, à criatividade e ao lúdico. Inclui emoções como tristeza, tédio, ódio e ciúmes. Seu lado sombrio aparece na falta de contato com as emoções. O selvagem abarca o tutor, o sábio, o curandeiro, o vidente. Abarca a psique coletiva e conecta o visível e o invisível (VAN der KROON, 2010).

Nessa jornada interior, a ‘alma’ do homem pode se deparar com poderes que alimentam sua fúria e seus temores de castração. A posição masculina estrutura-se em torno do falo - pênis ereto - na qualidade de emblema de masculinidade. Ele permeia o desenvolvimento e os comportamentos masculinos. A grande luta do homem é manter seu vigor fálico, seja no aspecto concreto seja no simbólico. Em seu desenvolvimento, o menino sentiu-se castrado por não abdicar do amor materno ou sentiu-se castrado ao ceder ao maior vigor fálico do pai. Desde que tenha prevalecido transigir quanto ao maior poder fálico do pai, ele pode retomar sua luta pelo vigor fálico - na adolescência. Em sua vida adulta, seu poder fálico precisa ser desenvolvido e consolidado: demanda ser reconhecido pelas mulheres e pelos homens (MONICK, 1993).

Fortaleza, determinação, eficácia, penetração, avanço, dureza, força: efetivados pelo falo. Entretanto, os homens, igualmente, são: vulneráveis, assustados e firmemente decididos a se protegerem. Se a sociedade lhes permitisse entrar em contato com sua verdadeira masculinidade, não haveria tantas guerras de egos entre superpotências mundiais, que querem que seus falos sejam mais inflados do que os outros. Assim, muitos homens utilizam uma forma negativa de expor seu falo, substituindo-o por autoritarismo, superioridade, domínio sobre as mulheres, riqueza, heroísmo, competitividade em demasia e inflexibilidade. Dessa forma, ele se torna uma arma para subjugar os mais fracos, estuprar mulheres, dominar e fazer guerras. Faz-se necessário curar suas feridas e mudar o pensamento imposto pelo patriarcado (MONICK, 1993). Tendo-se em vista o fim do patriarcado, deflagra-se a crise do masculino vivida pelo homem ocidental, dada sua perda de status, seja como pater familias e provedor, seja como guerreiro, caçador e conquistador (CURVELLO, 2014).

O homem contemporâneo não contando com ritos de passagem e com figuras masculinas para iniciá-lo na masculinidade precisa realizar sozinho sua ‘jornada do herói’. Para tanto, precisa identificar os padrões paterno e materno - que mantém a dependência emocional do menino com relação à sua mãe - e se libertar deles. Ao pacificar-se com sua mãe e o feminino, perde o medo das mulheres, pode amá-las e honrá-las. Torna-se homem e integra sua anima. Sua relação mais consciente com o feminino se revela como criatividade, imaginação e sensibilidade (BOECHAT, 2008).

O exame das formulações teóricas dos diferentes autores evidencia a complexidade e os conflitos enfrentados pelo homem em sua relação com sua masculinidade e sua feminilidade, que adentram em sua interação com as mulheres.

A masculinidade no cotidiano e a psicanálise

A seguir, apresentam-se alguns recortes de situações sociais e algumas expressões linguísticas coloquiais sobre o masculino, típicas da cultura contemporânea. Para se pensá-las, cabe inserí-las no contexto da clínica extensa em psicanálise. Em suas entrelinhas, há referências culturais negativas acerca do feminino.

Segundo Herrmann (2005), a clínica extensa refere-se à aplicação do método psicanalítico a outros domínios para além do consultório, incluindo o hospital, a clínica universitária e, de forma ampla, a prática junto à população menos favorecida. Ela abarca a psicanálise da cultura e da sociedade, sua correlação com a literatura e as artes, bem como sua integração com o reino das ciências. Além disso, ela designa o movimento pelo qual se estende o método psicanalítico para o mundo e para qualquer produção humana: social ou individual.

A frase ‘seja homem’ exige do homem ser decidido, ser corajoso e ser agressivo, mas obediente com relação às ordens paternas e às imposições dos amigos - sob a égide da cultura. Sob o prisma de sua saúde psíquica, ‘seja homem’ configura ser autêntico, ser independente das ordens e das expectativas de outros homens e, ainda, ser adulto/responsável por seu desejo.

Outra frase reveladora do mundo masculino é: ‘Você é o cara’. Por um lado, a palavra cara - sem o artigo o - parece ser uma forma moderna de dizer homem, no sentido de ser mais um dentre outros. Por outro, a mesma palavra - com o artigo o - significa ser o máximo, ser o melhor de todos. Nesse sentido, designa o homem capaz de fazer algo que os demais não fazem tão bem, inclusive ‘pegar’ uma garota que os demais homens não conseguiram ‘pegar’.

Uma terceira expressão popular é dirigida a um homem, em certas situações familiares, sociais e políticas contundentes. Assim, ‘honrar as calças que veste’ exige dele que seus atos traduzam as esperadas dignidade e probidade masculinas. Pode ser contraposta à frase ‘abrir as pernas’, referida às relações sexuais no caso da mulher ou às situações em que um homem fica fragilizado frente a outro.

Num evento social, encontra-se um grupo de rapazes. Passa uma garota e olha para um deles, que continua conversando com os amigos. Um deles vira-se para ele e diz: ‘Vai lá e pega, cara’. Nessa frase, registra-se um fenômeno típico do universo masculino relativo à pressão do grupo de homens, ao incitar um deles a ter comportamentos de ‘macho’. Nesse caso, independentemente de o homem desejar ou se encantar pela mulher, ele é compelido a abordá-la como ‘macho’. Aliás, macho é um termo utilizado em biologia para se referir às espécies animais. Nesse contexto, o verbo ‘pegar’ remete a um mínimo contato verbal dirigido à garota e a um máximo de abordagem sexual para com ela. Essa abordagem, no geral, deve ser seguida de um relato da aventura junto aos demais, de modo que ele adquira reconhecimento de sua masculinidade, por parte deles. A mentira e o exagero de suas proezas sexuais tendem a ser bem vindos, dentro desse grupo. A possibilidade de ele conhecer a garota, gostar dela e se encantar com ela -antes da abordagem sexual - sequer é pensada por eles.

Numa conversa entre dois homens jovens, um diz para o outro: ‘Cara, eu até gosto de você, mas aonde cê chega, as mulheres vão pra cima. Não dá pra ser seu amigo, cê é ‘muito bom de pica’. Contudo, esse homem ‘bom de pica’ é capaz de ser leal e respeitoso para com um amigo, não abordando uma mulher que lhe interessa. A despeito disso, o emissor da mensagem não consegue acreditar nessa possibilidade.

Uma professora pergunta a um aluno: ‘Porque é melhor namorar uma mulher bonita do que uma feia? Ele responde: ‘porque dá prestígio’. Nessa resposta, destaca-se a importância de adquirir prestígio junto aos demais homens, ao namorar uma mulher bonita. Não há qualquer menção ao possível prazer visual ou tátil proporcionados pela beleza dela, visto que não é o seu eu - do homem em relação a si mesmo - que detém a primazia nessa questão. Seu eu submete-se à necessidade de aprovação, admiração e, inclusive, à inveja dos demais homens.

Certa feita, um empresário volta de viagem e encontra seu filho e seu neto em sua casa, visto que seu casamento acabara. Ele se fragiliza ante tal problema, pois isso demanda dele ser poderoso - como sempre – diante do filho. Ser poderoso - posição masculina importante, mas igualmente pesada para seu detentor - requer dele ser o provedor e ser o protetor de seu herdeiro masculino frágil. A despeito dessa conjuntura familiar difícil, ele precisa enfrentar uma rodada pesada de negociações relativas a uma empresa. Nessa ocasião, vende uma empresa para certo comprador, que se revela um perverso estelionatário, em seguida. Referindo-se a esse logro, o empresário diz: ‘como ele foi durão, achei que o cara era bom e abri as pernas para ele’. Em sua mente, a analogia que envolve a relação sexual homem-mulher - com sua forte carga cultural negativa - se estende para a esfera de negócios entre homem e homem. Em seu modelo mental, seus objetos de desejo relativos a sexo e negócios são almejados ardentemente, demandam grandes desafios, mas seus esforços trazem-lhe sucesso. Assim sendo, para obtê-los, ele deve negociar com dureza, agressividade e inflexibilidade com outro homem. Aplicado ao comprador, esse modelo mental de homem durão fez com que ele visse o primeiro como ‘bom’. Desse modo, ele ‘abriu a guarda’ para o negociador perverso. Em suas entrelinhas, a ilusão do poder masculino - agressivo e perverso - fez o empresário abrir-se para uma posição ‘feminina’ de fragilidade, submissão e vulnerabilidade em relação a outro homem - agressivo e perverso. Este o ludibria, tal como ele, geralmente, faz com as mulheres - do ponto de vista sexual - e com os homens - no plano dos negócios.

Discussão

Essa discussão é empreendida em dois momentos. No primeiro, discutem-se as formulações teóricas dos autores sobre o tema. Em seguida, as frases e as situações cotidianas são examinadas com base nas reflexões dos pensadores.

Em se examinando as contribuições teóricas quanto ao masculino, ressaltam-se alguns pontos nodais: as concepções culturais negativas acerca do feminino, a relação do homem com seus sentimentos e emoções, bem como sua relação com seu pênis/falo.

No que concerne às ideias culturais negativas acerca do feminino, Alizade (2009) diz que a debilidade do homem é associada à feminilidade. Assim, esta se torna um tabu, sendo que o tabu indica um desejo recalcado. Logo, a masculinidade como posição ativa pode ser uma construção defensiva contra sua passividade (KEHL, 2004). Igualmente, Chaves (2008) diz que o ‘feminino’ nos homens evidencia os riscos da passividade, associada à homossexualidade. Portanto, os excessos do masculino aparecem como formações reativas ao feminino.

Do mesmo modo, Cecarelli (1998) considera que fantasmas não integrados ao ego do homem – percebidos como passivos e femininos – retratam o retorno da corrente afetuosa em relação ao pai, que reativa a ameaça de castração. Desse modo, a posição masculina é bastante ameaçada e a feminina se torna tão temida pelos homens. A despeito desse repúdio ao feminino, reportado acima, Stoller (1993) afirma que a masculinidade e a feminilidade existem em todas as pessoas, em formas e graus diferentes.

Quanto à relação do homem com sentimentos e emoções, Santos (2010) pontua que ele é educado desde criança – inclusive pelas mulheres – para se tornar agressivo, competitivo, provedor e intolerante quanto a expressar sentimentos e emoções. No tocante a isso, Bourdieu (1999) afirma que a masculinidade é pautada na supressão dos sentimentos, sendo que isso gera um homem inflexível e agressivo.

No que se refere à sua relação com seu pênis/falo, estes constituem um instrumento de força e de agressão metafórica, exercendo uma violência simbólica (BOURDIEU, 1999). Nessa linha de raciocínio, Lipovetsky (2000) designa que o falo é uma arma e a penetração de uma mulher é aparentada a um estupro. E Alizade (2009) aponta que a hipermasculinidade faz do pênis um instrumento de poder sobre a mulher.

Um autor se contrapõe a isso, ao apontar a renovação da sexualidade fálica. Assim, Giddens (1993) propõe que, com a transformação da intimidade, surgem condições de democratização da vida pessoal. Transformações da sexualidade fálica podem dar lugar a uma sexualidade plástica, livre dos laços de parentesco e reprodução.

A seguir, a reflexão dos autores é aplicada às frases populares e às situações cotidianas referidas na seção anterior.

No que concerne a ‘seja homem’, Nolasco (1997) pontua as pressões sociais que ressaltam a representação do ‘homem de verdade’. Ao se adotar esse parâmetro - para socializar os meninos - defendem-se os cuidados a ser tomados, para que eles se tornem esse tipo de homem. Quanto a ‘você é o cara’, Santos (2010) afirma que o modelo tradicional masculino requer do homem, altivez, opressão, poder, força e virilidade: traços que afirmam sua superioridade física e intelectual. E, ainda, ‘Vai lá e pega, cara’ designa as provas de masculinidade apontadas por Badinter (1993). Assim, ‘prove que você é homem!’ designa os desafios que o homem enfrenta junto aos demais. Ao prová-lo, ele se livra da pecha de ser ‘efeminado’ ou ‘frouxo’. Todavia, ele se distancia da consciência de seus sentimentos e emoções.

Nesse cascatear de exaltação distorcida do masculino, ‘não poder ser amigo de outro homem ‘muito bom de pica’ confirma Alizade (2009) quanto à hipermasculinidade. Essa defesa do homem em seus vínculos erótico-amorosos visa expulsar sua debilidade – associada à feminilidade – por meio do pênis: instrumento de poder. Esse homem mantém vínculos amorosos pautados pela sedução machista e pela pulsão de domínio. Sua sexualidade visa dominar sua presa, deixando-a indefesa frente ao macho potente. Em se examinando ideia masculina de que ‘namorar mulher bonita dá prestígio’, Badinter (1993) aponta os diferentes métodos para fazer do jovem um ‘homem de verdade’. Esses métodos incluem provas de sua virilidade, junto aos demais.

No que tange à situação de ‘abrir as pernas para o homem durão e ser logrado’ retoma-se Santos (2010) quanto aos modelos tradicionais de relações de gênero. Eles dispõem o macho como forte, dominador, viril, rude e inflexível, em detrimento da mulher frágil, submissa e vulnerável ao homem. Além disso, ‘honrar as calças que veste’ se oporia a ‘abrir as pernas para o homem durão e ser logrado’. Evoca-se Bourdieu (1999), pois a masculinidade é vivenciada com base na desvalorização do feminino, incitando o homem a ser inflexível e agressivo.

Dessa forma, a clínica extensa – dirigida a essas situações sociais e às referidas expressões coloquiais – ressalta a relevância das concepções dos autores acerca do masculino, permitindo entendê-las mais adequadamente.

Considerações finais

As reflexões sociológicas permitem uma primeira aproximação ao universo masculino, sob o enfoque sócio-cultural: suas características, sua riqueza, suas dificuldades, sua força e sua fragilidade.

O pensamento psicanalítico e o junguiano acerca do masculino complementam-nas e aprofundam-nas no âmbito psíquico. O cabedal de conhecimento de ambos quanto ao tema comporta consonâncias, dissonâncias e especificidades.

Quanto às suas especificidades, a utilização de mitos arcaicos para se pensar a psique masculina aparece de forma evidente e frequente no approach junguiano. Ademais, sua formulação de mitos específicos; para se discutir diferentes aspectos da masculinidade; não encontra correspondência na psicanálise. Na psicanálise freudiana, o repúdio à feminilidade seria enfrentado ao final da análise. Contudo, essa concepção freudiana não é confirmada pelos demais psicanalistas e analistas junguianos arrolados. Além disso, na teoria junguiana, tanto o contato da psique masculina com sua contraparte feminina, quanto o contato da psique feminina com sua contraparte masculina geram grande conflito. Logo, o repúdio ao feminino não é crucial no final da análise junguiana. Caracterizado pelo encontro com o self, ela demanda a integração dos opostos à consciência: do masculino e do feminino, entre outros.

Com respeito às consonâncias entre elas, a maneira como a masculinidade tem se apresentado na cultura - agressividade, domínio, poder destrutivo e guerras, dentre outras é objeto de reflexão e crítica por parte das duas correntes do pensamento psicológico. Elas não as consideram uma maneira saudável e produtiva de se lidar com a masculinidade. E, ainda, o sofrimento masculino - frente ao feminino, sob o jugo do patriarcado - é discutido por ambas. Ademais, elas ressaltam que a complexidade da subjetivação/conquista de sua singularidade - por parte do homem - não comporta menos desafios que a feminina.

Nesse diálogo, temas caros à psicanálise são enfocados sob uma clave própria, na abordagem junguiana. Todavia, ressaltam-se os pontos em comum entre psicanalistas e analistas junguianos: o valor do falo para a identidade masculina, o poder/vigor fálicos associados ao pênis, a relevância da relação pai-filho para o engendramento da masculinidade, a imbricação entre psique e cultura nessa formação, o medo do feminino e da castração, o esfacelamento do patriarcado e seus efeitos sobre homens e mulheres.

Do ponto de vista psicanalítico e junguiano, forças psíquicas e culturais no tocante ao masculino e ao feminino têm confrontado a psique do homem em sua estabilidade ‘milenar’, tendo-se em vista os movimentos histórico-culturais, políticos, sócio-econômicos recentes na história da humanidade. Um novo homem pode surgir...

Referências

Alizade, A.M. (2009). Cenários masculinos vulneráveis. Jornal de psicanálise, 42 (77).

Badinter, E. (1993). XY: a identidade masculina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Biddulph, S. (2003). Revista Isto é, 3(2).

Bleichmar, S. (2009). Sostener los paradigmas desprendiéndose del lastre. Aperturas psicoanalíticas. Revista internacional de psicoanálisis. 14(6).

Boechat, W. (2008). A psique, o mito e a individuação. Petrópolis: Vozes.

Bourdieu, P. (1999). A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

Burin, M. (2000). El malestar de los varones. In Burin, M. & Meler, I. (Eds.). Varones: Género e subjetividad masculina. Buenos Aires: Paidós, 339-364.

Chaves, E. L. (2008). Violência, agressividade e dominação: uma reflexão psicanalítica sobre a masculinidade. Tese (Doutorado em Teoria Psicanalítica). UFRJ. Rio de Janeiro.

Ceccarelli, P. R. (1998). A construção da masculinidade. Percurso. São Paulo, 19, 49-56.

Curvello, P. Valle (2014). Sobre o masculino. Instituto Junguiano do Rio de Janeiro.

Fonseca, E.R. (2014). Mitos de origem e utopias: o patriarca primitivo e o além-do-homem. Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC- PR). Disponível em: http//:revistas.dwwe.com.br/index.php/nh/article/download/88/63.

Freud, S. (1937/2006). Análise terminável e interminável. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Freud. Rio de Janeiro: Imago.

Guattari, F. (2000). Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34.

Giddens, A. (1993). A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: Ed. Unesp.

Herrmann, F. (2005). A psicanálise e a clínica extensa. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Hollis, J. (2004). Sob a Sombra de Saturno a ferida e a cura dos homens. São Paulo: Ed. Paulus.

Horney, K. (1968). El temor a la mujer. In Klein et al. La sexualidad en el hombre contemporáneo. Buenos Aires: Hormé. 116-137. (Trabalho original publicado em 1932).

Hornstein, L.(2008). As depressões do viver. São Paulo: Via Lettera.

Kehl, M. R. (2004). A impostura do macho. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 27.

Johson, R. A. (1987). He. São Paulo: Mercuryo.

Jung, C. G. (2001). Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Obras Completas, Petrópolis: Vozes. 9(1).

Lax, R. (1997). Boy’s envy of mother and the consequences of this narcissistic mortification. The Psychoanalytic Study of the Child, 52, 118-139.

Lipovetsky, G. (2000). A terceira mulher: permanência e revolução do feminino. São Paulo: Companhia das Letras.

Meler, I. (2000). La sexualidad masculina. In Burin, M. & Meler, I. (Eds.). Varones: Género e subjetividad masculina. Buenos Aires: Paidós, 149-198.

Monick, E. (1993). Castração e fúria masculina: a ferida fálica. São Paulo:Paulus.

Nolasco, S. (1997). Um homem de verdade. In Caldas, D. (org.). Homens. Comportamento, sexualidade, mudança. São Paulo: Senac, 13- 29.

Nogueira, T. G. (2016). Gênero: E sobre os homens, o que se fala e o que se espera? Casal e família ao vivo.

Disponível em: http://casalefamiliaaovivo.com.br/artigo-genero.

Santos, S. C. M. (2010). O modelo predominante de masculinidade em questão. Revista de Políticas Públicas. São Luís, 14(1), 59-65.

Stoller, R. (1993). Masculinidade e Feminilidade. Porto Alegre: Artes

Maria Emilia Sousa Almeida
Enviado por Maria Emilia Sousa Almeida em 04/12/2020
Reeditado em 05/12/2020
Código do texto: T7127598
Classificação de conteúdo: seguro