A psicanálise, a ioga e o budismo quanto ao sofrimento mental: a mente, o eu e a diferenciação sujeito-objeto

Introdução

Aborda-se a psicologia oriental e ocidental em seu tratamento do sofrimento anímico, tendo por horizonte a especificidade de cada contexto histórico-cultural. Especificamente, enfocam-se as articulações e diferenças entre as ideias psicanalíticas, iogues e budistas acerca da mente, do eu e da diferenciação entre sujeito e objeto. Na psicologia oriental, elege-se a cultura hindu, na qual floresceram as ideias iogues e budistas sobre isso. Na psicologia ocidental, elege-se a psicanálise com seus conceitos relativos a essas questões. As diferenças teóricas e técnicas entre elas preponderam sobre suas articulações. Utiliza-se o método bibliográfico da pesquisa qualitativa.

O presente trabalho visa pesquisar as formas de o homem lidar com as ‘dores da alma’ ao longo do tempo, nos contextos das civilizações ocidental e oriental. O cuidado ocidental e oriental para com o padecimento anímico é diferenciado, dados os seus campos culturais. Enfoca-se, assim, sua terapêutica por parte da psicologia ocidental e oriental. A atenção das doutrinas hindus com o self foi gerado em um contexto cultural e religioso particular. A partir disso, examinam-se as semelhanças e as diferenças entre as leituras psicanalítica, iogue e budista sobre a mente, o eu e a discriminação sujeito-objeto. Destaca-se a especificidade do trabalho psicanalítico com esses tópicos.

Um percurso milenar visando à libertação do sofrimento psíquico está presente ao longo da história da humanidade, pois ele ultrapassa épocas e povos específicos. A busca humana de lidar com o sofrimento psíquico precede a psicologia ocidental e o trabalho da psicanálise com ele.

Quanto à psicologia oriental, vários autores discutem o corpus de conhecimento psicológico inerente às religiões orientais. Estas abrigam, há séculos, sistemas psicológicos práticos que visam à disciplina de corpos e mentes.

Fadiman e Frager (2002) escrevem que as religiões orientais buscam sistematizar uma série de ideias sobre a personalidade e o comportamento humano. Eles consideram a ioga, o zen-budismo e o sufismo como teorias orientais da personalidade: formas de psicologia oriental anteriores à psicologia ocidental. Hall, Lindzey e Campbell (2002) examinam o budismo e suas propostas para lidar com o sofrimento humano. Para Watts (1972), caminhos de libertação são: a ioga, o budismo e o taoísmo.

Contudo, o judaísmo, o cristianismo, o islamismo e o xamanismo – dentre outras – igualmente são sendas de libertação do sofrimento psíquico, anteriores à psicologia ocidental e à psicanálise. Então, feito um breve preâmbulo acerca da psicologia oriental e ocidental, cabe apresentar algumas ideias sobre a psicanálise.

Em paralelo com a psicologia oriental, a filosofia ocidental forneceu importantes contribuições para o homem pensar a si mesmo. A psicanálise vem a se inserir nesse panorama, de modo singular. Chauí (2001) afirma que a teoria do conhecimento filosófico tem como centro o sujeito do conhecimento, com consciência de si e com atividade racional que conhece a si mesma. Todavia, ele pode se deparar com seu inconsciente, desconhecido ou conhecido indiretamente por sua consciência, mas que determina aquilo que a consciência e o sujeito sentem, fazem, dizem e pensam. O sujeito do conhecimento descobre, então, um limite intransponível: o inconsciente.

A psicanálise introduziu esse conceito novo, que limita o poder soberano da razão e da consciência. Segundo Hall, Lindzey e Campbell (2002), Freud se contrapôs frontalmente à psicologia tradicional da consciência e nenhuma outra teoria tem sido submetida a tanta crítica como a psicanálise. Apontam que a capacidade de uma teoria de estimular pesquisas, por meio de ideias, dúvidas e resistências, constitui seu valor heurístico. Assim sendo, no horizonte da psicologia ocidental, a força da teoria psicanalítica revela-se por seu considerável valor heurístico.

Ademais, ela faz uma ruptura epistemológica quanto a duas concepções da filosofia ocidental: a consciência como centro do eu e a razão como ápice dos processos mentais. Esses descentramentos epistemológicos promovidos pela psicanálise, igualmente, estão no âmago dos sistemas orientais e consistem em pontos de similaridade entre eles. Por sua vez, a análise dos princípios da psicologia oriental evidencia a ruptura epistemológica feita pela psicanálise quanto à abordagem da mente, do eu e da relação sujeito-objeto. Na ruptura epistemológica, o conhecimento sobre um fenômeno é submetido a ideias novas, que abalam seus alicerces. Cumpre reorganizar os paradigmas vigentes até então, para que novo corpo de conhecimento se constitua na ciência. Na psicologia ocidental, a grande virada conceitual e práxica quanto à libertação do sofrimento psíquico deve-se ao advento da psicanálise no século XX.

Nesse campo, Zimerman (2010) aponta as disputas narcisistas entre as correntes psicanalíticas, visto que cada uma institui-se como a representante da verdadeira psicanálise. Contudo, a tendência atual evita as posições polarizadas, fomenta uma formação pluralista do analista e enfoca a multiplicidade e a diversidade de vértices.

Fundamentado nisso, destaca-se, então, o recurso ao pensamento de psicanalistas de diferentes escolas – quando for pertinente, elucidativo e enriquecedor com relação ao tópico abordado. Nesse contexto, o conceito de self – importante em psicanálise – também é utilizado por correntes do pensamento religioso e sociológico. Suas acepções, de acordo com os diferentes autores, são apresentadas no decorrer do trabalho. A despeito das diferentes bases metapsicológicas das escolas em psicanálise e dos diversos enfoques de autores de outras áreas, propõe-se um diálogo entre eles.

No campo religioso, apesar da complexidade e das diferenças entre os sistemas religiosos orientais, há semelhanças entre eles quanto aos princípios psicológicos básicos, que favorecem o aperfeiçoamento humano e o trabalho com a dor. Sendo assim, essa discussão parte da concepção hindu sobre a mente e o mundo. Ela reflete – em sua essência –as demais doutrinas. Constitui o campo cultural da ioga e do budismo.

Quanto a esse universo, Jullien (2009) afirma que na Índia há uma história em comum com as linguagens do Velho Mundo. Daí sua importância nesse estudo.

O universo cultural hindu e suas concepções sobre o eu

A riqueza e a especificidade das ideias hindus emanam de um melting pot cultural milenar. O universo cultural do hindu implica que ele se sinta à mercê de forças destrutivas – doenças, pragas, guerras, tirania – e submetido ao inexorável fluir do tempo, que a tudo destrói. Os órgãos dos sentidos apreendem tão somente as formas transitórias e perecíveis, das quais o homem toma consciência. A ignorância (avidya) é a força que constrói o ego, iludindo-o no sentido de tomar a si e a suas experiências como reais, dominando-o. Como efeito da ignorância, a ilusão (maya) é sobreposta à realidade, devido aos enganosos sentidos e à mente não iluminada. Sob os grilhões dos apetites, desejos, sofrimentos, paixões, posses, prazeres e virtudes, a personalidade é impedida de se transformar em essência divina. Já que a mente está em constante agitação, os desejos das coisas sensuais e do prazer levam à roda de nascimentos, morte e renascimentos (samsara). Em oposição a isso, bem e mal, prazer e dor, riqueza e pobreza, vitória e derrota, honra e desonra adquirem o mesmo valor, se o desapego interior for alcançado. Desse modo, a busca suprema hindu é liberar-se da ignorância e das paixões decorrentes da ilusão. O homem se desprende da vida mundana, através de técnicas de purificação, escapando à escravidão da existência. O ascetismo, a meditação e a ioga são caminhos da disciplina interior, que visam à quietude da mente, ao apaziguamento das paixões e à transcendência do jugo dos sentidos (Zimmer, 2003).

Cabe dissolver os traços de identificação com o ego ilusório, bem como com os atos bons e maus motivados por ele. Esse ego individual traz sofrimento, recomendando-se a indiferença frente às suas experiências falsas. O eu fenomênico é a personalidade ingenuamente consciente a ser destruída, enquanto o eu transcendente – atman − é indestrutível: o âmago real de cada ser, que transcende o universo. Aspirar ao eu transcendente implica desinteressar-se dos apelos mundanos, inclusive da existência individual. Nessa via, os hindus buscam uma identificação e uma fusão de atman com Brahman: a essência divina. O homem perde a si para ganhar algo muito maior: a desidentificação egóica. Ao final, a consciência é iluminada mediante a serenidade face às emoções, erradicando-se tendências básicas inconscientes vegetativas e animais. Dessa forma, chega-se à verdadeira natureza do ser, além do anterior sistema consciente-inconsciente (Zimmer, 2003).

A psicologia oriental: a ioga e o budismo oriundos do universo hindu

O background cultural do mundo hindu deu ensejo tanto ao hinduísmo quanto ao budismo, frutos de sua sabedoria milenar. Do hinduísmo, advém a ioga.

Compiladores das teorias de personalidade permitem conhecer ideias orientais sobre a personalidade, o ego e a mente. Fadiman e Frager (2002) apontam que a ioga consiste em desviar a consciência das atividades mundanas e concentrar-se na fonte da consciência: o self ou o espírito. A raja ioga acentua o controle da mente como uma disciplina eficaz e ativa. Sem uma vida calma e disciplinada, a concentração e a paz obtidas na ioga se esvaem. A interiorização remete ao desligamento dos sentidos, de modo que o iogue não seja submetido ao bombardeio de estímulos do mundo. É um método para levar os sentidos à pureza original da mente, sendo necessário retirar sua atenção de objetos que a distraem e direcioná-la para um objeto de cada vez. Com isso, refreia-se o fluxo ininterrupto do pensamento.

As cinco principais causas do sofrimento são: ignorância, egoísmo, desejo, aversão e medo. A ignorância leva a se pensar no perecível como imperecível, no doloroso como prazeroso, no não-self como self. Ela atribui qualidades do self ao mundo, tratando-o como fonte de prazer, de dor e permanece inconsciente do self como causa última das experiências. A identificação do self com o corpo leva ao medo, ao desejo. Os pensamentos levam à intranquilidade, à emotividade e ao egoísmo. O desejo é o anseio pelo prazer e a aversão é o recuo diante da dor, provocando um apego a aquilo que dá prazer. Não se apegar significa desfrutar o que se recebe, renunciando a isso, se necessário, sem tristeza ou perda. No desapego, o homem está no mundo, mas não é do mundo. O medo é o terror da morte – devido à identificação com o corpo perecível – ao invés de com o self imperecível (Fadiman e Frager, 2002).

As ondas de consciência dolorosas são os pensamentos e emoções, que aumentam a ignorância, a confusão ou o apego: a raiva, o desejo e o medo. As não dolorosas incluem o amor, a generosidade e a coragem. Cultivar as ondas de consciência não dolorosas cria tendências subconscientes positivas, que se contrapõem às negativas. Porém, inclusive as emoções positivas devem ser superadas, pois vinculam o sujeito ao mundo dos sentidos. Tendências subconscientes permanecem como influências sobre sua mente, até o iogue atingir a iluminação. Este estado da consciência em que a mente está totalmente calma e concentrada é o objetivo e a essência dessa prática. A ioga procura superar a sensibilidade ao calor, ao frio, à dor, ao prazer e às mudanças, controlando a emoção, a mente e o corpo (Fadiman e Frager, 2002).

Hall, Linzey e Campbell (2002) assinalam que o budismo clássico tem como premissa básica que o eu não existe, de modo que a aparência de personalidade decorre de um agregado impessoal de processos em fluxo contínuo. O evento fundamental que ele investiga é a relação presente entre certo estado mental e o objeto dos sentidos, através de uma observação sistemática da própria vivência. O principal fator doentio é a ilusão da mente que distorce o objeto, ao tomar consciência dele. Tal ilusão é a ignorância humana, raiz do sofrimento e dos estados mentais doentios: agitação, preocupação, inveja, ambição, avareza. O eu ou ego ocidental é uma falsa categoria para apreender os fenômenos mentais. Nesse contexto, a percepção nítida é o fator saudável central, que permite ver o objeto como ele é e perceber sua verdadeira natureza. Outros fatores saudáveis são: retidão, modéstia, desprendimento, imparcialidade e serenidade. Ele lida com eventos no presente – não com o inconsciente e a fixação no passado.

Visão ocidental e oriental sobre a mente e o eu

Há controvérsias radicais entre a abordagem oriental e ocidental da mente humana e do eu. Essas diferenças chegam às questões da motivação, da saúde psíquica e da psicopatologia. O eu é o fundamento da individualidade, segundo os ocidentais. Sua noção de um eu individual − no senso comum, na filosofia, na ciência e na academia − integra-se à ideia de que não há percepção pura e límpida do objeto, pelo sujeito. Essa concepção ocidental conjuga-se à noção oriental de que os objetos são ilusórios e os órgãos dos sentidos são falíveis. Porém, as diferenças entre elas são imensas. Ao abordar tais diferenças, cabe situá-las num contexto crítico.

Said (2003) pontua que o orientalismo se refere ao conjunto de concepções interdependentes, evidentes nas construções acadêmicas e doutrinárias dos ocidentais com relação aos orientais. Presente nas várias produções culturais do ocidente, ele aspira a sua dominação política, econômica, cultural e religiosa. A autopromulgada superioridade ocidental prescreve a inferioridade dos orientais. As ideias ocidentais sobre eles estão eivadas de preconceito, cuja visão distorcida e degradante destaca seu exotismo e sua barbárie. Faz-se necessário, então, o fim do narcisismo etnocêntrico ocidental, com espaço para a individualização das culturas e a pluralidade humana.

Nessa mesma linha, Jullien (2009) aponta as limitações da concepção ocidental de mundo, defendendo sua abertura para outras culturas. Nesse sentido, o diálogo intercultural inclui a proteção do singular, do outro inalienável. O homem reflete sobre si mesmo, quando confrontado com o diverso. Ele se descobre por meio das facetas iluminadas e desdobradas pelas múltiplas culturas, revendo suas tradições. Piovesan (2004) aborda a arrogância do imperialismo cultural ocidental, que visa universalizar suas próprias crenças. Essa concepção universal é mera imposição do modelo ocidental.

Posto isso, para Zimmer (2003) a concepção ocidental de personalidade inclui atributos, que são obstáculos para a libertação hindu. Eles consistem na noção de que ‘eu sou eu’, no apego e na vontade de viver. O hindu almeja à dissolução da máscara da personalidade consciente e dos impulsos animais inconscientes: fonte de sofrimento.

Além disso, a compreensão de saúde e doença psíquicas é muito particular a cada universo cultural, pois estados mentais patológicos no ocidente são enfocados de modo diferente no hinduísmo. Para a psiquiatria – de cunho ocidental – a despersonalização significa uma alteração, em que um sentimento de estranheza é dirigido à própria personalidade. O indivíduo assiste como um observador apavorado o desenrolar de sua vida psíquica, como se ela não tivesse relação consigo (Paim, 1998). Em contrapartida, Watts (1972) propala que a autoconsciência é revogada na despersonalização e o indivíduo se dissolve em uma consciência não mais ancorada em sua individualidade. Essa experiência no hinduísmo é a unificação final do indivíduo com Brahman – entidade cósmica supra-individual que transcende a individualidade. A mudança da consciência pessoal − realizada pelos caminhos orientais de libertação – não é a despersonalização, em seu sentido de regressão a um tipo primitivo ou infantil de consciência. A libertação não envolve a perda ou a destruição de convenções como o ego. Significa ver além dele, transcendendo-o. O ideal de personalidade no zen está longe de ser uma não-entidade coletiva ou a dissolução do frágil ego no útero materno.

A crítica junguiana quanto à realidade do eu e a sua configuração individual nas duas cosmovisões permite inserí-la nesse debate. Jung (1991) diz que o oriente não produziu algo equivalente à psicologia ocidental. Produziu tão-somente uma metafísica, ao passo que a psicologia ocidental é uma ciência de fenômenos sem implicações metafísicas. O espírito oriental concebe uma consciência sem eu e uma existência além do eu, que desaparece nesse estado superior. Porém, não é possível imaginar um estado mental sem um eu. Se não existe o eu, falta alguém que se torna consciente de algo. O sentimento de unidade – experiência típica do misticismo – provém da contaminação dos conteúdos psíquicos, dada a debilitação da consciência. Para o oriental, a objetividade ocidental é sinônimo da identidade completa do homem com o samsara. Para o ocidental, a iluminação é um estado onírico sem importância.

A relação sujeito-objeto no ocidente e no oriente

Outra questão que diferencia a psicologia oriental e ocidental envolve a relação sujeito-objeto. No pensamento ocidental, o sujeito diferencia-se de seu objeto. No pensamento oriental, sujeito e objeto não são separados.

Nessa perspectiva, Watts (1972) afirma que pensar em experiências religiosas e espirituais – como episódios da vida interior – se deve à falsa separação entre sujeito-objeto. São inseparáveis o ser e o não ser: sujeito implica objeto, homem implica mundo, vida implica morte. A libertação envolve o reconhecimento de si naquilo que o ser tem de mais outro e o reconhecimento da vida na morte. A identificação com o ego leva à confusão entre a pessoa e sua história. Na descoberta do ser, descarta-se a ilusão de que ele está dentro e em oposição a algo fora. Quando a pessoa se vê inteira, no campo unificado do mundo, vê que é imotivada.

O eu convencional é composto por uma história consistindo de memórias selecionadas e de eventos passados, que perfazem a identidade histórica do homem. Da infinitude real de eventos e experiências, algumas foram selecionadas e separadas como significantes – segundo padrões convencionais. O eu profundo é encontrado somente quando alguém não mais se identifica com a própria pessoa. Esta vê o mundo como separado dela, ao projetar nele sua confusão e ignorância (Watts, 2011).

Nesse sentido, Suzuki (1976) enfoca a dicotomia da ciência ocidental entre o sujeito que conhece e o objeto conhecido. Por sua vez, no zen budismo o conhecimento de si advém da identificação entre sujeito e objeto. Assim, o eu transcende o reino da abstração e da intelecção, não sendo passível de objetivação científica.

Quanto à relação entre o componente e o todo, Dumont (2004) aponta que a sociedade hindu tradicional é holístico-hierárquica e a sociedade ocidental é individualistíco-igualitária. Elas têm relação com a noção de individuo na Índia e no Ocidente e com princípios de organização de suas sociedades: hierarquia e igualitarismo. No sistema de castas hindu, o agente ocupa uma posição apriorística, cuja saída se dá pela morte, expulsão de sua casta e renúncia. Essa posição se define pela totalidade de oposições entre ele e outros elementos do sistema − não por um atributo substancial intrínseco a ele. Dada a complementaridade entre seus elementos, o indivíduo não existe em seu sentido estrito − não é ideologicamente possível. Assim, a hierarquia não se define como mera cadeia de ordens superpostas ou de seres com dignidade decrescente. Ela é uma relação de identidade, bem como de distinção e de oposição ente o todo e um elemento. Em contrapartida, na ideologia ocidental, a noção de indivíduo remete ao íntimo e ao cerne do ser humano. O individualismo do ocidente moderno se liga, igualmente, a uma posição cultural pré-existente e predeterminada.

A questão do individualismo tem desdobramentos nas reflexões ocidentais acerca da individualidade, da identidade e da alteridade.

Com relação à individualidade sob o ângulo de visão ocidental, Figueiredo (2000) propõe que o modo atual de entender os indivíduos como autônomos não é natural nem necessário. A noção de subjetividade privada foi estabelecida na passagem do renascimento para a idade moderna. No renascimento, se deu uma perda de referências com a falência do mundo medieval e com a abertura do ocidente para o restante do mundo. Desse modo, o contato com a diversidade dos homens e das culturas impôs novas formas de ser. A falta de referências absolutas fez renascer o ceticismo, que defendia ser impossível obter um conhecimento seguro sobre o mundo e que qualquer impressão pode ser um engano dos sentidos. A valorização da natureza opôs-se à civilização com suas regras e métodos. A razão foi destronada, o eu racional foi deslocado do centro da subjetividade e visto como uma superfície ilusória, que encobre algo profundo e obscuro. No século XIX afirmou-se o determinismo. Neste, o homem seria determinado por forças desconhecidas e submetido a leis, que não podia controlar.

Taylor (1997) diz que a identidade humana concerne às descobertas sobre si e suas referências, oriundas da interação com os outros. A identidade moderna é a compreensão do que é ser uma pessoa ou um self. Na sociedade contemporânea, a construção do self e da identidade diz respeito à busca de um eu autêntico, forte e individualista. A construção desses significados sobre o self inclui a noção de escolha, independente de padrões externos. No âmbito ocidental, a identidade tem relação direta com a alteridade − no plano de igualdade, fraternidade, liberdade e justiça – e se alimenta dessas influências. Como seus determinantes histórico-culturais, econômicos e religiosos são singulares, a formação do eu oriental e ocidental é bastante diferente.

Estabelecidas esses fundamentos acerca das culturas ocidentais e orientais, cabe examinar certos aspectos de aproximação entre psicanálise e zen-budismo.

O diálogo entre a psicanálise humanista e o zen-budismo

Nesse diálogo, o autor defende ideias e posições muito particulares. Assim, a psicanálise humanista não é incluída dentre as escolas da psicanálise. Ela sustenta que as emoções não se enraízam nas necessidades instintivas, mas na natureza humana. E, ainda, situa a cultura como fator mais preponderante para o homem do que suas pulsões, bem como acentua a necessidade de aproximação entre o homem e a natureza.

Fromm (1976) afirma que tanto a psicanálise humanista quanto o zen-budismo tratam da natureza humana e de uma prática que a transforma. Visam aperfeiçoar as forças produtivas humanas, mediante a maior percepção do inconsciente. A psicanálise humanista vida compreender a natureza humana, a aspiração à liberdade positiva, à felicidade e ao amor. O zen almeja à ampla liberdade de ação para os impulsos criativos e benévolos inerentes ao ser humano. É a arte de descobrir a natureza do ser, mostrando o caminho de libertação. As energias naturalmente armazenadas precisam de um canal apropriado para sua atividade. Ele libera as energias naturais, a fim de expressar a capacidade humana de ser feliz e amar. Sua essência é a aquisição da iluminação e da libertação/satori. Neste estado, a pessoa está afinada com a realidade fora e dentro de si, permitindo uma percepção aguçada para apreender e compreender sentimentos. No zen, o conhecimento de si é experencial − não intelectual. A experiência motiva o homem à reflexão, ao impulso a agir e à busca de respostas para a existência.

As similaridades entre eles são: independência do autoritarismo, necessidade de um guia que já passou pela experiência que o paciente ou discípulo devem passar, busca de libertação e transformação interna. O psicanalista e o mestre zen tem o cuidado de estimular sua independência e seu crescimento. Ambos pontuam as ficções da mente para que eles entrem em contato com a realidade, sem deturpações pessoais e/ou sociais.

São caminhos diversos, com os mesmos objetivos e nomes distintos. A psicanálise almeja tornar consciente o inconsciente − com abertura, consciência e apreensão imediata da realidade, sem distorções. Significa desfazer-se de ilusões e ficções e ver a realidade como ela é. No zen, o despertar implica desfazer-se de ilusões e mentiras. Visa à liberdade por meio da percepção da própria realidade e da realidade do mundo. A psicanálise é característica do pensamento ocidental, buscando acessar o inconsciente pela interpretação das associações livres. Esse método investigativo evidencia o significado do inconsciente. O zen é característica do pensamento oriental, em que a meditação aspira à libertação. É uma teoria e uma técnica para a iluminação.

Por fim, cumpre traçar a diferenciação entre ideias psicanalíticas, iogues e budistas quanto ao foco desse trabalho.

A psicanálise e sua relação com ideias iogues e budistas sobre a mente, o eu e a relação sujeito-objeto

A psicanálise se articula à concepção ocidental de individualidade e de determinismo. Com sua noção de determinismo inconsciente, ela se distingue das doutrinas orientais e ocidentais sobre a mente.

Com relação ao ocidente, ela se diferencia da filosofia com seu foco na consciência na razão. No que se refere ao oriente, há pontos de articulação e de diferenciação entre elas. A princípio, orientais e ocidentais partem de uma concepção coincidente a respeito das bases do sofrimento humano. São eles: a mente com suas ilusões e sua ignorância aliada aos enganosos órgãos dos sentidos. No mais das vezes, ambos consideram os impulsos, os desejos, as emoções e as paixões da mente humana como fontes de sofrimento e de dificuldades de manejo. Porém, a psicanálise instiga e revigora o pensamento científico ocidental, ao constituir um novo método para lidar com os conflitos da psique humana. Esse método consiste na associação livre de ideias, em que o paciente exprime pensamentos e imagens que acorrem a sua mente (Freud, 1900). Tal material passa pela atenção flutuante do analista, que não privilegia de per si qualquer elemento do discurso do paciente e deixa o mais livre possível sua atividade inconsciente, ao apreender seu mundo mental (Freud,1913). Assim sendo, a psicanálise acentua a brecha abissal entre as concepções orientais e ocidentais no tocante ao enfoque da mente, do eu e da relação sujeito-objeto.

O eu individual insere-se na psicanálise mediante seus conceitos de sujeito, ego e self. Os dois primeiros são discutidos por Freud (1920), enquanto o self é destacado por Kohut (1988), entre outros. O ego é basilar no edifício teórico psicanalítico, em especial com a virada conceitual dos anos 20. A metapsicologia se assenta nele, conferindo, assim, maior densidade teórica ao aparelho psíquico. Organizador do mundo mental, o ego está em interrelação com outras instâncias do aparelho psíquico − id e superego − bem como com a realidade. Caracterizam-no funções conscientes como percepção, memória, juízo e contato com a realidade, sob a primazia de impulsos, princípios de funcionamento e mecanismos de defesa inconscientes (Freud, 1923). Ele se constitui a partir da identificação do sujeito com atributos, características e traços psicológicos do objeto, em especial, das figuras parentais (Freud, 1924). Diferenciado do conceito de ego, o self refere-se ao si próprio, à pessoa (Laplanche e Pontalis, 2001). Quanto a esse conceito, Zimerman (2010) aponta o self como um conjunto de representações que determinam o sentimento de ‘si mesmo’.

Posto isso, o self psicanalítico distingue-se, sobremaneira, do self-espírito dos hindus, bem como do self psicológico-social de Taylor. Ademais, os conceitos de eu, ego e de identificação são muito diferenciados na psicanálise e no hinduísmo.

Na lente psicanalítica, não há psique sem ego: constitutivo do mundo interno do sujeito. Portanto, ela se aproxima das ideias orientais sobre o ego como ilusório, mas se opõe à ideia de ego irreal ou inexistente. Assim, na concepção de Lacan (1985) o ego é sintoma. Sua constituição − no estádio do espelho − caracteriza-se pelas identificações alienantes da criança ao desejo do semelhante. Esse estádio − próprio ao imaginário − dá acesso ao simbólico e ao real, se ocorrer a interdição paterna à captura narcísica da criança pela imagem especular da mãe. Porém, o ego constitui um sintoma até o final da vida, por ser marcado pelo registro imaginário: ilusão, imagem, percepção. O final da análise permite a redução drástica do imaginário: responsável pelo sofrimento humano.

Esse ego do enfoque lacaniano marcado pelas ilusões se confronta sobremaneira com a proposta de Fromm (1976) sobre a possibilidade de a pessoa se desfazer das ilusões e das ficções, de forma a ver a realidade tal como ela é.

Nas demais vertentes psicanalíticas, o ego de per si não é ilusório, mas seus mecanismos de defesa produzem distorções de si, do objeto e da realidade, a partir das quais o sujeito se ilude. Nem sempre a ilusão do eu é negativa na leitura psicanalítica. Winnicott (1975) enfatiza a capacidade da mãe de fornecer ao bebê a oportunidade de achar que o seio é ele. Esse processo ilusório fundante permite a ele desenvolver a capacidade de ser, o sentimento de existir, a capacidade de desenvolver um interior, ser continente e se relacionar com o mundo.

Com relação à polaridade indissociável sujeito-objeto em psicanálise, o objeto matricial da subjetividade da criança é a figura materna. Para Winnicott (1990), a preocupação materna primária é uma verdadeira fusão emocional entre a mãe e o bebê. Suas primeiras funções de cuidado do bebê viabilizam o desenvolvimento do sujeito e seu acesso ao mundo da emoção, do pensamento e da existência, segundo o autor. Permeando essa relação, a falta de distinção entre si /bebê e o outro/mãe se encontra em seu zênite nos primeiros meses. Essa fusão garante a imaginária completude e plenitude do eu. Dada a força da figura materna em seu mundo mental nos primórdios, várias defesas são erigidas pelo ego contra a dor pelo rompimento dessa fusão mãe-bebê e pelas faltas instauradas nele (Mahler, 1982; Winnicott,1990). Cabe ao ego conjugar seus impulsos, fantasias, desejos, emoções e viabilizá-los em sua relação faltante com esse objeto e a realidade. Assim, ele mobiliza uma gama de defesas contra a dor e o desprazer: clivagem, p. ex. Esse complexo emocional originário é reeditado em outras relações sujeito-objeto. Sendo basicamente inconsciente o funcionamento do ego, sua percepção do objeto é distorcida pelos fenômenos próprios a aquele registro. A confusão eu-outro se deve a seu influxo, desde os albores da relação mãe-bebê.

Em face disso, certa diferenciação sujeito-objeto é relevante. Freud (1930) posiciona o ego como diferenciado com relação ao mundo externo. Todavia, Bleger (1997) aborda um estado mental primitivo de não discriminação, de não diferenciação ou fusão self-objeto nos primeiros estádios de desenvolvimento, que persiste ao longo da vida. Kohut (1988) estuda as vicissitudes de parte do self que continua self-objeto o resto da vida, sendo confundida com o objeto. No amadurecimento ou na normalidade, mantém-se a necessidade dos self-objetos, mas com maior nível de maturidade. Mahler (1982) concebe o estado primitivo de indiferenciação self-objeto como processo normal do bebê nos primeiros meses. A separação-individuação remete ao estágio mais avançado do desenvolvimento. Na consolidação da individualidade, a criança adquire uma individualidade com sentido de self, junto ao outro individual e diferenciado dela. Nesse âmbito, Chasseguet-Smirgel (1985) diz que o desejo fusional de retorno ao útero materno é o mais fundamental desejo humano. Contudo, esse retorno ao estado de fusão com a mãe impede a constituição subjetiva e resulta em morte psíquica. Por sua vez, Zimerman (2010) considera que, ao final da análise, cabe renunciar às ilusões de cunho simbiótico-narcisistas, reconhecer o outro como pessoa livre, diferente e separada dele, fazer desidentificações patogênicas e neo-identificações, dentre outros.

Por conseguinte, há divergências entre psicanalistas com relação a maior ou menor diferenciação entre o eu e o outro. Inclusive a concepção de um eu único e integrado é questionada em psicanálise. Quanto a isso, cabe acrescentar:

Herrmann (1999) aponta que o conceito de eu inclui o ego, o id e o superego: sujeitos internos ou múltiplos eus. O ego constitui um eu − ao ser objeto da ação do id e do superego. Assim, não há um suposto eu total, mas eus parciais. Há um contágio entre os sujeitos a despeito da autonomia do objeto, que permite ao eu existir quase independentemente dele. Num registro, os objetos são não-eu; noutro, o sujeito participa intrinsecamente dos objetos, sem prejuízo de eles serem parte da realidade. A paixão, o terror, a vertigem,os fenômenos de massa desmentem a ilusão de que o eu não é o outro.

Não obstante a originalidade das ideias desse autor, em psicanálise releva-se a importância da constituição de um sujeito distinto, em grande parte, de seu objeto. A indiscriminação self-objeto é lida como uma perda da configuração ‘saudável’ do eu no adulto, que precisa se diferenciar do não-eu, numa boa medida. Assim, face à complexidade de processos internos que formam o eu nas relações iniciais, há que depurar suas identificações com seus pais e estabelecer neo-identificações.

Contudo, a aplicação dessas noções ao plano das religiões orientais é deveras delicada. A busca oriental de dissolução do ego em algo maior e sagrado não deve ser entendida como um desejo de indiferenciação entre o eu e o outro. Nesse vértice religioso e cultural singular, remete à busca de uma maturidade que ultrapassaria o eu.

Na clave psicanalítica sobre a maturidade que ultrapassa o eu, está em questão o concern – capacidade humana de amar e cuidar do outro. Nesse sentido, Winnicott (1990) afirma que saúde mental é maturidade. Esta depende da transição por seis graus de dependência: da mais extrema, no bebê; passando pela independência, como a capacidade de cuidar de si – até chegar ao senso social. Este designa a identificação com os adultos e a sociedade, sem a perda demasiada de seu impulso pessoal, de sua originalidade e de sua agressividade. A saúde mental caracteriza-se pelo concern: senso de responsabilidade para com o outro que revela integração e crescimento pessoal. O adulto maduro provê adequadamente a criança, como no cuidado materno ao bebê. Tal capacidade de cuidar do outro faz com que o homem transcenda seu próprio eu.

Certo plano de ultrapassagem do indivíduo e do eu liga-se à questão da vida e da morte, em psicanálise. Winnicott (1990) não aceita que a vida tenha a morte como seu oposto, exceto na esfera maníaco-depressiva. No desenvolvimento do lactente, viver se origina do não-viver e existir substitui o não-viver. A morte se torna significativa no processo vital do lactente ao surgir o ódio. Do ponto de vista hindu, a morte permite a reencarnação – com sua possibilidade do homem se superar e melhorar de vida, ao escapar do sistema de castas que determina seu lócus no mundo dos vivos. Ademais, a vida implica a morte e cumpre ao homem reconhecer a vida na morte.

Quanto à religião, Freud (1930) diz que o sentimento oceânico de comunhão com o mundo não é a fonte do sentimento religioso. Oriundo da extensão ilimitada do narcisismo primitivo, esse sentimento é confrontado pela necessidade do ego e do mundo se constituírem. Na religião, o aspecto essencial é a ilusão de que o mundo externo torna-se menos hostil pela ação de um pai protetor – não a fusão com o todo.

Feitas essas considerações, as diferenças entre o enfoque psicanalítico e o pensamento hindu sobre o eu se afirmam em dois planos. No plano metafísico, o hindu considera que há um eu fenomênico e um eu transcendente/atman. Espiritualmente superior ao primeiro, o eu transcendente é alcançado pelas vias espirituais. A isso, segue-se a imersão de atman em Brahman – desindividualização necessária para atingir a essência do sagrado. Portanto, o eu hindu – de natureza espiritual e dividido entre o fenomênico e transcendente – é fundamentalmente diferente do eu psicanalítico. Disso decorre que a diluição do eu transcendente num todo maior − para transcender seus sofrimentos – não pode ser aproximada do desejo de se fundir no casulo narcísico mãe-bebê. Esse desejo fusional arcaico do eu não está reimpresso naquele postulado filosófico hindu. Outros conceitos psicanalíticos − cisão do eu, fusão e narcisismo secundário − tampouco são aplicáveis a tal cultura holística. No plano psicológico-pessoal, as ideias hindus sobre a falsa separação sujeito-objeto e a libertação do eu − pelo reconhecimento do que ele tem da alteridade − dialogam com a visão psicanalítica e ocidental sobre o eu e a relação mais ou menos diferenciada sujeito-objeto.

No tratamento do sofrimento mental, o método hindu visa abolir os opostos − prazer-dor, bem-mal, vitória-derrota, sucesso-fracasso, riqueza-pobreza − que lançam a mente ao apego. A polaridade hindu prazer-dor pode ser lida na pauta da busca do prazer e da evitação do desprazer, caras ao ocidente. Trazida para o campo psicanalítico, pode ser pensada com base nos princípios do prazer e da realidade no funcionamento mental. O princípio do prazer visa reduzir a tensão das necessidades, mediante a descarga imediata das excitações que elas provocam. O princípio da realidade adia a descarga imediata da tensão, até se encontrar o objeto adequado de satisfação. A passagem de um princípio a outro implica passar da alucinação para o pensamento e a ação, que permitem a satisfação do desejo (Freud, 1911). Nessa medida, a psicanálise não visa abolir ou transcender os opostos de prazer e dor, tampouco superar os demais. Visa examinar as fontes inconscientes do sofrimento, trazê-las ao lume da consciência e da reflexão. Assim, favorece a ação que visa obter o objeto de prazer, na realidade.

As demais oposições binárias podem ser pensadas mediante a hipótese econômica sobre o funcionamento psíquico, o investimento das representações e a cisão. Freud (1915) diz que o enfoque econômico considera as vicissitudes das quantidades de excitação e que no inconsciente há conteúdos catexizados com maior ou menor força. O quantum de afeto investido nas representações pode ser aumentado, diminuído, deslocado. Em Freud (1938), a cisão ou clivagem do ego articula-se a grupos separados de representações, submetidos a vias associativas próprias a cada um.

A síntese do diverso é necessária à integração psíquica do sujeito. Como seu sofrimento psíquico se associa a um conflito que divide o ego, essa divisão se estenderia ao self. No conflito intrapsíquico, certas representações de seu self podem ser investidas de ódio: ser mau, ser pobre, ser desonrado, ser derrotado, ser fracassado. Em contrapartida, podem ser inconciliáveis com seu self: ser bom, ser rico, ser honrado, ser vitorioso, ser bem-sucedido. Por conseguinte, o trabalho psicanalítico com as oposições mentais pode consistir em rever a cisão do ego – bem como a cisão entre as representações do self − dissolver o investimento de ódio nelas e integrar as representações antes incompatíveis com sua consciência. Do diálogo com sua consciência crítica, essas oposições mentais passam a ser parte de sua vida psíquica. Com isso, reorganiza-se o sofrimento psíquico do sujeito.

Segundo a ioga, o trabalho com as paixões humanas se pauta na introspecção, no fortalecimento de estados mentais contrários aos indesejados e no controle de seus correlatos fisiológicos. Por sua vez, a psicanálise se vale da introspecção do paciente para reorganizar seus conteúdos mentais, mediante as interpretações do analista. A ioga fortalece estados mentais antagônicos aos que produzem o sofrimento.

Diferentemente da ioga, a psicanálise não entende que a raiva, o egoísmo e o medo aumentam a ignorância e nem que o amor, a generosidade e a coragem os combatam. Tampouco, diz que os opostos devam ser superados ou abolidos. Para ela, esses elementos opostos da psique precisam ser integrados à consciência. Nesse campo, amor e ódio são afetos basilares da mente, constituintes das pulsões de vida e de morte. Freud (1920) afirma que a fusão das pulsões consiste na mistura desses componentes em várias proporções e que, na defusão, a agressividade se separa da sexualidade. Para Laplanche e Pontalis (2001), quanto mais a libido prevalecer, maior é a fusão entre as pulsões.

Para a psicanálise, os desejos, emoções, paixões e impulsos antagônicos demandam ser integrados em seu ego, para que o indivíduo se constitua sujeito de sua própria história. Desse conflito doloroso pode advir a potência do desejo do sujeito. Quando seu eu se integra, seu desejo se dirige aos seus objetos − sem ser minado por conflitos patogênicos e censuras neuróticas do passado. Assim, Freud (1917) diz que a análise transforma o conflito patogênico em conflito normal, para o qual deve ser possível encontrar uma solução. Nessa proposição, o conflito é inerente ao homem.

Na ioga, chega-se à pureza da mente pela renúncia aos objetos do desejo e pela extinção do sistema consciente-inconsciente. No diapasão psicanalítico, não há uma pureza original da mente. Os processos inconscientes são constitutivos dela e não passíveis de ser erradicados ou transcendidos. Um bom funcionamento mental depende da adequada integração entre consciente e inconsciente. E ainda, propala que a mente sempre recebe um aporte de estimulação interna e externa, que gera desorganizações e reorganizações constantes. Para Freud (1920), o aparelho pára-excitações visa proteger o organismo contra o excesso de excitações do mundo exterior. Sintomas, neuroses e sofrimento psíquico revelam suas falhas. Assim, a suposta serenidade de uma mente calma e concentrada – via iluminação – perde terreno nessa inscrição ocidental.

Essas diferenças se situam num campo delicado, no qual a mente, o inconsciente e o eu são conceitos sobremaneira distintos em psicanálise, na ioga e no budismo.

Considerações finais

No labor analítico, faz-se mister trabalhar as distorções do ego decorrentes dos processos psíquicos inconscientes. Estas distorções se devem a sua tentativa de escapar ao sofrimento psíquico da infância. Seus dispositivos internos alteram os vínculos do sujeito com seu desejo e seu objeto, quando adulto. Desse modo, cumpre resgatar sua subjetividade e sua autonomia − ao se diferenciar de seus objetos.

Não é possível falar em iluminação ao final da análise, visto que ela não visa à dissolução do ego ou à imersão numa espécie de ‘não-eu’ para perder-se a si mesmo. Essas ideias orientais poderiam implicar a perda dos contornos que diferenciam sujeito e objeto. Pelo contrário, tais contornos são lapidados ao longo da jornada psicanalítica. Junto com a melhor discriminação entre sujeito e objeto, há a reconstrução de seus vínculos. O caminho para se lidar com sua dor intersubjetiva é fazê-lo voltar a vivenciá-la, para elaborá-la. Redistribuem-se as catexias de amor e ódio nas representações do sujeito, integram-se certas representações, ocorrem a intrincação entre amor e ódio e a prevalência do amor sobre o ódio. Esse trabalho é essencial para sua ligação ‘saudável’, amorosa e construtiva consigo e com o objeto. Nisso consistiria certa possibilidade de ‘iluminação’ e o caminho de sabedoria do ser − mediado pela psicanálise − ao favorecer os vínculos amorosos do sujeito com seu desejo e o objeto. Com isso, ele renuncia à antiga posição ilusória de viver sem qualquer dor. Pode vigorar a força de seu desejo, realizado na realidade compartida com seus pares.

Este é um assunto pleno de controvérsias, inerentes à construção e à desconstrução do conhecimento. Nessa empreitada ousada, ratifica-se o respeito à diversidade cultural infiltrada na unicidade das psicologias oriental e ocidental. Até mesmo no contexto ocidental, há diferenças notórias entre as abordagens psicológicas da mente humana.

Sobejamente se sabe que quando um estudioso de um campo do saber envereda pelos caminhos de outro, ocorrem lacunas na sua compreensão. Entrementes, não se poderia fugir a tal desafio, a despeito da autora guardar ciência desses limites. Face a eles, mais importante que se erigir como a melhor teoria e prática psicológica, é minorar o sofrimento humano, que não se faz pequeno nem recente nessa terra...

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Maria Emilia Sousa Almeida
Enviado por Maria Emilia Sousa Almeida em 25/01/2021
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