O mundo interno de um bad boy

Introdução

O intuito desse estudo é refletir sobre o mundo interno de um bad boy fascinado pela vida bandida, a relação com seu desejo e as mudanças de seus arranjos na análise. Os arranjos do desejo se referem ao modo como suas representações e afetos se organizam num momento da análise e se reorganizam, de novos modos, em outros momentos dela. A clínica psicanalítica constitui o solo de prospecção das mudanças psíquicas do paciente, cujo sofrimento estava articulado a questões em seu desejo – tanto de natureza mental quanto neurológica. Nesta reflexão, seu desejo é discutido à luz da psicanálise, fundamentalmente. Contudo, dada sua adição às drogas, o aporte teórico da neurologia é adicionado. Além disso, conceitos da sociologia discutem a cultura pós-moderna, na qual as questões do desejo, os distúrbios de identidade e o uso de drogas são sintomáticos.

De início, algumas informações sobre neurologia e sociologia são apresentadas.

O cérebro refere-se à estrutura anátomo-fisiológica composta por neurônios e neurotransmissores. Dentre suas estruturas, o córtex pré-frontal está ligado à iniciativa, à personalidade, ao planejamento estratégico, às decisões e às consequências das ações. O sistema límbico regula a vida emocional, inclusive vivências como medo, ansiedade e perigo. Em condições normais, as funções do organismo são organizadas pelo cérebro, enquanto sistema integrado e harmônico. Alterando essa condição, as drogas produzem distúrbios de identidade no usuário, entre outros efeitos deletérios (Atkinson, 2002).

As alterações de identidade e o uso de drogas se inserem na cultura pós-moderna, discutida por alguns pensadores.

Baudrillard (1991) investiga a força da imagem na construção da identidade, no pós-modernismo. Nesse universo, a identidade se desfaz face ao poder das imagens. À medida que a verdade é substituída pelo simulacro – imagem que inventa a realidade – perde-se o sentido das coisas. Dada a implosão da distinção entre o mundo real e a simulação-imagem, sobra um sujeito descentrado.

E, mais, Bauman (2005) analisa que a identidade não é definitiva, tampouco sólida no atual mundo líquido, mas passível de negociação e revogação. Seu habitante se depara com referências de identidade em movimento e com grupos móveis, velozes e fugazes. Sua exposição às várias comunidades leva à flutuação de sua identidade. Sua mudança é determinada por seu arbítrio ou por sua submissão ao outro. Conquanto se ressinta dessas identidades estereotipadas e estigmatizadas, não consegue abandoná-las.

Enfatiza-se, desse modo, que a influência da cultura pós-moderna sobre o sujeito favorece sua adesão às imagens-simulacros do eu, bem como às identidades estereotipadas e estigmatizadas. Elas inibem seu contato com seu próprio desejo.

O desejo, seus arranjos e o sistema das representações

Tanto o aporte sociológico quanto a seara psicanalítica estudam a identidade. No campo psicanalítico, inicia-se com os conceitos de dois autores acerca do desejo e da identidade. A eles, adicionam-se algumas hipóteses propostas pela autora.

Herrmann (2001) aborda a identidade como representação do desejo e a mudança das modalidades fictícias e inautênticas de identidade para as modalidades autênticas, na análise. Quanto a isso, Pacheco (1988) aponta as micro-experiências de identidades parciais. Numa análise, a integração de partes cindidas do self possibilita ao paciente os múltiplos encontros com tais aspectos de si. Isso constitui micro-experiências de reconhecimento próprio ou micro-experiências de identidades parciais.

A partir disso, propõe-se examinar os arranjos do desejo e suas mudanças na análise. Para tanto, dispõe-se de hipóteses investigativas ad hoc.

O desejo apresenta-se como uma ampla gama de representações e de afetos, que organiza o conjunto de forças psíquicas. A princípio, ele favorece movimentos psíquicos do sujeito em direção aos seus objetos de satisfação. Em geral, funciona como polo norteador desses movimentos, visando se realizar no mundo. Impedindo esse movimento, os bloqueios na satisfação do desejo do adulto derivam de sua fixação em certas representações e afetos, que limitam sua realização no mundo. Pois, grande parte do desejo do sujeito e de seus antecessores é atravessada pelo material psíquico, que se infiltra em sua família. Assim, vivências psíquicas de um tempo longínquo podem marcar o desejo do sujeito. Esse material forma seu sistema representacional.

O sistema das representações apresenta-se como um aparato psíquico do sujeito, com a função de representar seus impulsos, relações de objeto e estados mentais. Ele é composto por diferentes estratos psíquicos. Em seus estratos inconscientes são produzidas as representações do sujeito, de seus objetos e do mundo. Sua formação imbrica-se a dos vínculos primários da criança com os pais, nele prevalecendo os aspectos inconscientes. Em sua vida adulta, seu desejo se apresenta como fluxo ou como paralisia, com base no material psíquico herdado, pela criança, de seus pais. Esse sistema é constituído por representações, afetos, traumas e mecanismos de defesa: fragmentação, divisão, idealização, perseguição, identificação e contra-identificação. Eles atuam na formação de seu eu, de seus objetos e na construção do desejo do sujeito (Almeida, 2009).

Alguns desses mecanismos de defesa são estudados pela teoria kleiniana.

Retomando: Klein (1986) considera que na vida mental ocorre a fragmentação do ego e do objeto, bem como a divisão do seio materno em seio bom – que gratifica – e seio mau – que produz frustração. Essa divisão protege o seio bom, pois os ataques destrutivos são dirigidos ao seio mau. Este é reduzido a fragmentos persecutórios, enquanto o bom se torna idealizado – capaz de gratificação infinita.

Sob o vértice do desejo, a idealização pode ser considerada como a sobrecarga de amor e de valor nas representações do objeto, ao passo que a persecutoriedade pode ser enfocada como a sobrecarga de ódio nas representações do sujeito. Assim sendo, o sujeito idealiza o objeto, em detrimento do amor a si e de seu valor.

Por sua vez, o conceito de identificação advém da teoria freudiana, permitindo à autora propor aquele de contra-identificação.

No tocante à família e à cultura, Freud (1913) aponta os conteúdos transmitidos por identificação aos modelos parentais na história pessoal do sujeito e aqueles fundados em traços mnêmicos herdados de gerações anteriores, de sua pré-história.

Conjuntamente com a identificação, a contra-identificação constitui um processo de formação do eu do sujeito, face à transmissão da vida psíquica na família. No trauma severo, a criança se contra-identifica com características odiadas de seus pais, aos quais atribui seu sofrimento psíquico. Em contrapartida, essas características e suas representações favorecem a satisfação de seu desejo, quando adulta. Seu bloqueio ocorre devido ao sobre-investimento de ódio em algumas representações de seu desejo. Certo filho se contra-identificou com o desejo paterno de casar outras duas vezes – com mulheres que já tinham filhos – depois de se separar de sua mãe. A esse desejo paterno, ele atribui seu abandono e desamparo em sua infância e adolescência. Ao sobre-investir de ódio ser abandonado, ser desamparado e ser invulnerável ao amor, não investe de amor ser amoroso, ser amado e ser bom companheiro como seu pai o foi com a atual esposa. Tão somente essas representações e esse afeto favorecem realizar seu desejo no presente, elaborando o trauma vivido em sua infância.

Adiante, esses processos são relacionados às representações e afetos do paciente.

Os traumas, o desejo e o sistema das representações

Visando pensar os arranjos do desejo e suas mudanças em análise, cumpre articulá-los aos núcleos traumáticos no sistema das representações. Para tal fim, resgatam-se as fundamentais contribuições teóricas do mestre sobre eles e, a seguir, acrescenta-se o enfoque econômico sobre o funcionamento psíquico.

Estudando os núcleos traumáticos, Freud (1893) pontua uma sequência de traumas parciais e as cadeias de ideias patogênicas. O núcleo patogênico consiste em lembranças de eventos ou sequências de representações, oriundas das camadas inconscientes. Em torno dele, há material mnêmico constituído por certos temas. Trazendo a questão dos núcleos traumáticos para o plano de sua fundação na família, Freud (1939) afirma que o material operante na vida psíquica de um indivíduo pode incluir não apenas o que ele próprio vivenciou, mas conteúdos inatos presentes nele, com uma origem filogenética – sua herança arcaica. Além disso, os resíduos mnêmicos dos traumas primitivos são inconscientes.

Ainda de acordo com Freud (1915), o enfoque econômico se refere às alterações das quantidades de excitação no inconsciente. Neste, existem conteúdos investidos com maior ou menor força.

Dialogando com esses conceitos e articulando-os à clínica da autora, propõem-se algumas considerações.

Na formação psíquica do sujeito, um trauma – bastante repetido nas relações com seus objetos primários – tende a engendrar certos núcleos traumáticos no sistema. Esses núcleos abrigam temas traumáticos que perpassam sua família: valor próprio-valor do outro, vínculo homem-mulher, vínculo pai-filho, realização de projeto de vida, sucesso-fracasso, lei-transgressão, amor-ódio, vida-morte, entre outros. Nesse ponto, vale esclarecer que amor e ódio constituem tanto temas quanto afetos presentes numa família e no sistema. Fundamentalmente, o trauma atua no desejo do sujeito, sendo filiado ao desejo parental e ancestral. A herança do trauma é oriunda da identificação e da contra-identificação da criança com seus pais.

Atingido pelo trauma, o sistema representacional precisa lidar com quantidades intensas e desorganizadoras de excitação que, a princípio, configuram o trauma como irrepresentável. Além disso, o trauma gera um desarranjo econômico no que tange às quantidades de amor e ódio dirigidas ao seu desejo e dos objetos. Mais especificamente, o trauma aumenta o investimento de ódio nas representações do desejo. Esses processos se associam às formas fictícias de identidade, bem como originam alterações no potencial de realização de seu desejo. Posteriormente, o adulto projeta tal sofrimento com os objetos primários em seus objetos secundários – consortes. Aparentemente caóticas, as oscilações posteriores de seu eu entre amor e ódio – a si e a seus objetos – escondem suas tentativas de tornar-se o que ele pode ser e diferenciar seu desejo de seus objetos primários/ancestrais. Essas tentativas visam superar a dificuldade desse adulto de realizar seu desejo no presente, em suas formas mais genuínas e verdadeiras.

No sujeito, certo arranjo do desejo tem origem inconsciente precoce, provém de sua herança familiar e consiste numa formação fundante e fixa de seu desejo. Dependendo de seu legado psíquico, esse arranjo pode ser saudável ou patológico. A fixação da dor traumática nos núcleos do eu revela-se mediante os arranjos patológicos de seu desejo na vida. Na patologia, conjugam-se certas representações do trauma e a falta de outras representações coerentes com o desejo do sujeito, no sistema das representações. Em contrapartida, o projeto essencial ao eu de se diferenciar de seus pais/ascendentes e a análise fazem com que os arranjos patológicos sejam passíveis de mudança. Logo, a mudança psíquica do paciente parte de determinado arranjo patológico e demanda seu percurso por arranjos transitórios e intermediários de seu desejo – até chegar aos arranjos coerentes com ele. Estes tem relação com as modalidades autênticas de identidade, na análise (Herrmann, 2001). Por sua vez, os arranjos transitórios e intermediários de seu desejo são assimiláveis às micro-experiências de identidades parciais de Pacheco (1988) e às modalidades inautênticas de identidade, de Herrmann (2001).

A clínica dos arranjos do desejo

Nesta seção, primeiramente apresenta-se a historia clínica do paciente. Com base no método clínico psicanalítico, a mudança psíquica dos arranjos de seu desejo – na análise – é revelada em seguida. Certas expressões do paciente são relatadas entre aspas.

O período inicial da análise de certo jovem dura seis meses, com duas sessões semanais. Seu discurso inicial baseia-se em gírias e palavrões. Ele usa drogas, de forma compulsiva e irrefreada. Sua droga preferida – cocaína – é deletéria para seu cérebro. Além disso, ele gosta de brigar junto com seus ‘irmãos’ contra grupos rivais. Com a analista, sua agressividade aparece indiretamente, mediante atrasos e faltas às sessões.

Em sua infância, a relação com seu pai é relativamente boa. Na pré-adolescência, ele percebe a traição do pai com certa mulher. Em sua adolescência, as amantes do pai se sucedem. Ele teria destruído a família com suas traições, nas quais sexo, dinheiro farto e prazer destrutivo se mesclaram. O garoto passa a lutar com lutadores graduados, para vencer os mais fracos. Estabelece metas, dedica-se e se torna um bom lutador. Substitui a maconha pela cocaína, em suas crises de identidade ligadas ao seu pai e a sua namorada. Contraponto da relação do pai com suas amantes, sua namorada é idealizada por ele, devido ao amor e à pureza que nutriram o desabrochar do homem e da mulher. A faceta persecutória da relação surge em sua forte dependência dela, seu pavor de perdê-la e de ser traído, bem como em sua vigilância cerrada sobre ela. Ele tem ódio de seus supostos rivais, quanto à namorada. Ela é estudiosa, ‘tem propósito’ na vida, mas exige que ele se prive de coisas que ele gosta. Nesse contexto, por um lado, ele a ama. Por outro, sua violência com ela aparece no nível verbal: xinga-a com palavrões. Porém, nunca bateu nela.

Seus conflitos com o pai favoreceram um arranjo fictício e fixo de seu desejo. Assim sendo, ele primava por brigar com autoridades e se opunha ao ‘sistema’. Seu desejo/sua identidade era indiferenciada daquela de seu grupo jovem e violento. Neste, os ‘irmãos’ primavam pela lealdade, confiança e ajuda mútuas, num pacto tácito. Este facilmente chegava às raias do desagravo físico, se um membro de seu grupo fosse ultrajado por um grupo rival. Assim, ele se sentia forte, superior e macho, em situações de perigo, próximas à morte e com visibilidade social.

Não obstante, nas escarpas de sua transgressão da lei, o bad boy – cultuado por ele – revela brechas no arranjo de seu desejo. Sua tatuagem-imagem mais evidente tem aparência agressiva, mas seu significado não o é. Tatuagens com frases delicadas estão escondidas em partes pouco visíveis de seu corpo. E mais, ao defender que a ideologia das tribos urbanas deve ser melhor conhecida por seus adeptos, ele faz pressentir uma busca conturbada por seu desejo mais verdadeiro e recôndito. Com a análise, ele começa a buscar sua força interior e a entrever seu lado mais suave e mais reflexivo.

Forte fragmentação de seu desejo caracteriza o funcionamento de seu sistema representacional. Seu gosto por esportes, carrões, drogas e brigas não se integra a sua dedicação, inteligência, gosto pelo cálculo e pelo desafio de levar avante certo empreendimento. Tampouco, ele integra seus sonhos mais inconfessos. Seu desejo se encontra fragmentado em vários aspectos: seu eu e seus objetos, seus afetos amorosos e agressivos e, ainda, suas facetas divertidas e livres – ligadas a corpo – e sérias – ligadas as suas capacidades intelectuais. Seu desejo de reconstruir sua vida mistura-se com o desejo da namorada de que ele o faça. Ele a ama ‘acima de tudo’, visto que projeta, nela, seu amor, sua vitalidade e seus melhores atributos. No avesso disso, retém, em si, seu ódio, sua atração pela morte e suas características menos apreciáveis. Desse modo, ele nega suas porções amorosas, criativas e saudáveis. Em meio a isso, ele se sente falso junto à namorada e briga. Ao retomar a relação com ela, sente-se ótimo. Depois, briga novamente com ela e a trai. Para ele, o amor o enfraquece e o deprime, ao passo que o ódio o fortalece e o levanta. Contudo, paradoxalmente, ele busca ser inteiro através dela.

Conflitos com dois arranjos patológicos de seu desejo – envolvendo seu pai e sua namorada – deflagram ideias suicidas no paciente. Seu ódio ao seu pai suscita, nele, o desejo de se matar – visto ser o filho odiável desse genitor intensamente odiado. Trabalhada essa dor na análise, afirma seu propósito de estudar, trabalhar, ter uma família, uma casa bonita e uma vida boa construída por ele. Todavia, quando a namorada e ele se separam, tenta trabalhar como ela deseja e adiciona uma tatuagem delicada às demais. Ao falar dessa gueixa, ele associa amor, dor, martírio, sacrifício e desejo suicida, romantizando-os. Acredita que o sacrifício permite obter coisas sólidas e atingir objetivos duradouros, enquanto defende que o prazer mataria o amor. Nessa ocasião, ele usa várias drogas pesadas em festas regadas pelo êxtase dos sentidos.

Tais arranjos de seu desejo consistem em paradigmas mentais formados em suas relações primárias. Sua mãe amou seu pai, tendo sido fiel, traída e otária junto a ele. Seu pai destruiu o amor, ao visar tão-somente seu prazer. Assim, para o paciente, unir amor próprio e prazer legal parece sem nexo. Todavia, sem nexo ou alucinado articula-se a ele curtir cocaína, de modo alucinado. Seu fascínio pelo prazer destrutivo abarca o apelo dos gostos fortes: rum, vodka e uísque misturados às drogas. Assim, sua escala de fascínio começa com as ideias suicidas romantizadas, passa pela namorada, pelas bebidas fortes, pelas drogas e pelo cigarro, até chegar à ‘vida bandida’. Em meio a isso, sua namorada é mais importante que a cocaína, sendo que ambas o tornariam ‘completo’. Contudo, quando ela se recusa a retomar o namoro, ele reafirma seus objetivos de vida e se aproxima de seu pai. Porém, a seguir, fica deprimido, consome várias drogas e explicita seu desejo de se matar. Aceita consultar uma psiquiatra, mas logo desiste do tratamento. Descobre que seus impulsos agressivos se acentuam quando ele se sente inferior, traído ou defensor dos ‘irmãos’. Então, afirma que é ele que tem que se segurar e impor limites às drogas. Nesse período, olha com certa distância, humor e crítica, a agressividade dos ‘irmãos’. Sente-se feliz, sem dor, sem desejo de se destruir e experimenta outros prazeres na vida.

No sistema representacional do paciente, ser odiável e ser morto estavam ligadas a temas traumáticos que o fascinavam e perpassavam sua família: amor-ódio, vida-morte, valor próprio-valor do outro, sucesso-fracasso, lei-transgressão da lei. Imposta a ele essa herança psíquica, transgredir a lei aparece no método de seu pai ao ganhar dinheiro; no conflito de sua mãe entre endividar-se e pagar as dívidas, bem como na relação dele com os transgressores da lei. Os temas da vida-morte e do amor-ódio são bastante fortes nele, assim como em seus pais. Seu pai fala em matar um homem, em nome de seu amor ao filho. Sua mãe fala em matar o marido, quando eles se separam. No paciente, a perda de seus objetos de amor desperta desejo de morte/suicídio, tal como em sua mãe. Nessa confusão de afetos, seu ódio a seu pai escondia seu desejo de ter sido amado por ele. Suas brigas − saturadas de ódio − ocorriam em nome de seu amor pelos ‘irmãos’ do grupo violento. Nessas brigas, sua acuidade visual, sua coordenação motora e sua vitalidade estavam subjacentes à sua agressividade e ferocidade. Com a análise, ele foi integrando essas facetas saudáveis de seu eu.

Seis meses depois de parar as sessões, inicia uma segunda temporada da análise. Um novo arranjo de seu desejo é inaugurado em nome de seu amor por sua filha. Enverga uma nova tatuagem numa parte visível de seu corpo, que traduz seu desejo de ser um bom pai, pois ‘todo homem que desvaloriza mulher, acaba tendo uma filha...’ Ele perdoa seu pai, pois ‘todo homem é igual, se a mulher marcar...’ Diz que quer ser respeitado pelo que é e não pelo medo causado por um ‘irmão’, que o defende. Porém, seu horror é ser inferiorizado por quem ‘pensa que sabe mais’ que ele. Em meio a essas mudanças, começa a firmar sua autonomia, como sujeito e a seguir seu próprio desejo, como eixo de orientação na vida. Define que ser homem é ser bom pai e que sua namorada é sua pior droga. Num negócio, ele revela inteligência, determinação, dinamismo, boa articulação nos contatos e mentalidade de empresário, que administra impulsos e custos. Desse modo, o garoto briguento, rebelde e ‘fascinado pela vida bandida’ dá lugar ao guardião da família, que busca justiça, bondade e proteção dos desprotegidos. Assim, critica certo homem que ganha muito dinheiro, tomando-o dos mais fracos. Atento às profissionais que cuidam da família, a analista seria boa profissional e outra profissional seria falida. Então, ele passa do desejo de transgredir a lei para o de ser seu representante autodestrutivo. Nesse caso, sua lei é ‘passar fome para dar o que a filha precisa e trabalhar até a morte’ – que significa ‘levar algo até o fim’. Contudo, da força dos músculos passou a do amor, proteção e união. Nesse contexto, ele não tomou os remédios psiquiátricos, mas não usa cocaína há meses. Visto como sujeira e erro, seu uso passa a ser ‘coisa de moleque’.

Alternativa à cocaína, ser feliz é ser quem ele é e fazer o que gosta. Desliga-se da namorada, por quem se sente preso, vigiado e impedido de ampliar seus horizontes. Entretanto, acorda ‘a mil, feliz, cheio de energia e ideias’. Sente ‘fascínio’ por ter um negócio próprio. Sua excitação tem a ver com a realização de projetos profissionais, que envolvem prazer, seriedade, contato com a realidade, busca de sucesso e força pessoal, para se aprimorar. Como empreendedor, sua visão global visa otimizar seus negócios. Gosta de desafiar um concorrente, para quem ele é ‘de nada’. Por amor a sua filha, sua ambição liga-se à sua força de empreender e realizar seu sonho. É ‘sentimental com mulher legal’ e busca ter sucesso nessa relação. Em meio a isso, ele para a análise. Então, vivencia graves recaídas ao se decepcionar, novamente, com seu pai.

Discussão

Nesta seção, o uso de itálicos tem por objetivo destacar suas representações e suas mudanças nos dois períodos de análise. O uso do travessão visa deixar o presente relato mais claro para o leitor.

Para se examinar as mudanças nos arranjos patológicos de seu desejo nos dois períodos de sua análise, recorre-se a uma classificação, que comporta certas limitações. A primeira deve-se às fronteiras imprecisas entre os arranjos, pois certa representação pode ser inserida em mais de um deles. É o caso de ser odiável e de ser morto – da primeira fase da análise – e de ser empreendedor, ser bem-sucedido e ser feliz – da segunda. Imbricada à primeira limitação, a segunda resulta da rede de vínculos descritos nos arranjos. Assim, a relação do paciente com seu pai se infiltra na dele com sua filha, com homens de negócios, com homens mais velhos, com amigos e com rivais. A terceira abarca a escolha de um aspecto do desejo para a análise, que se interliga a outros do mesmo arranjo. A quarta restrição procede do foco de análise quanto aos conteúdos do arranjo em relação ao tempo. Assim, ao se privilegiar as mudanças das representações – na sequência das sessões – não é possível focar sua mudança – numa sessão específica. Apesar de seus limites, tal classificação permite pensar a mudança psíquica do paciente.

Esclarecidos esses limites, apresenta-se a trama psíquica que enreda seus objetos primários/pais e secundários/namorada, cocaína, ‘irmãos’ de briga e rivais. A seguir, consideram-se os aspectos de valorização, idealização, perseguição e sustentação onipotente de seu eu nesses objetos secundários. Posto isso, abordam-se os temas de seu desejo: valor como homem, vínculo homem-mulher, vínculo pai-filha, lei e amor, atualização de seu projeto de vida e profissão-competência-dinheiro.

Na primeira fase da análise, o funcionamento do sistema das representações do paciente parece assemelhar-se ao efeito da cocaína em seu cérebro. Ela o tornava eufórico, mas o deprimia, em seguida (Atkinson, 2012). De modo similar aos distúrbios de identidade e à oscilação de humor gerada no cérebro por ela, o sistema investia ora amor, ora ódio em seus objetos. O amor ao objeto exercia efeito depressivo nele, enquanto o ódio ao objeto gerava efeito eufórico, nele. Essa oscilação indicava a resolução patológica de seus conflitos – dada sua identificação e sua contra-identificação com seus pais, bem como seus efeitos nas representações.

Sua identificação com o objeto primário amado/mãe mobiliza seu amor pelo secundário/namorada. Ser amoroso, ser dedicado, ser fiel, ser fraco, ser traído, ser otário, ser sofredor e ser martirizado são representações favorecidas nessa relação. Sua contra-identificação com sua mãe – ser otária, ser traída, ser sofredora – faz com que ser amoroso, ser fiel e ser dedicado sejam inconscientes no sistema (Almeida, 2016).

Sua identificação e sua contra-identificação com o objeto primário odiado/pai parecem apoiar-se sobre certos traços dele e são reeditadas com o objeto secundário. Ser agressivo, ser arrogante, ser dominador, ser traidor com sua namorada e buscar prazer destrutivo formaram-se a partir de sua identificação com seu pai. Sua contra-identificação com ele fez com que características coerentes com seu desejo fossem investidos de ódio. É o caso de ser empreendedor e ser bem-sucedido: representações de atributos paternos associados a dinheiro, sexo e dor. Malgrado sua associação com o sofrimento anterior do paciente, são vitais para realizar seu desejo atualmente. Favorecem que ele construa uma vida boa e coerente com seu desejo (Almeida, 2016).

Seus traumas com seu objeto primário/pai produziram resultados psíquicos contraditórios, nele. Seu ódio a seu pai gera ódio a si: interface indissociável de seu ódio a aquele. Com isso, seu pai torna-se persecutório, propiciando sua idealização do objeto secundário. Assim, seu desejo de ser amado pela namorada transforma-se em desejo desesperado de completude por meio dela. A frustração dessa completude gera depressão nele. Porém, a junção entre sua identificação com o objeto primário/pai – ser traidor – e sua contra-identificação com o objeto primário/mãe – ser traída e ser otária – favorece ser agressivo e ser traidor quanto a esse objeto secundário/namorada.

Seu amor por esse objeto secundário tem sequelas paradoxais nele. A princípio, se a namorada o rejeita, aumenta a força de ele assumir seu próprio desejo. Todavia, a perda efetiva dela transforma-se em ódio a si mesmo. Depois, seu ódio a ela − quando ela se afasta dele − leva-o a se desligar dela e a se sentir feliz. Seus projetos de vida tornam-se um pouco mais consistentes, quando ele revê sua identificação de cunho persecutório com o pai, bem como a ameaça persecutória de perder o amor idealizado da namorada. Contudo, impera a indiferenciação entre seu desejo e o dela, assim como a indistinção entre amor e ódio, prazer e sofrimento, autorrealização e autodestruição.

Esses processos dirigem-se para quatro tipos de objetos secundários do paciente. Com o objeto idealizado-namorada, ele reedita a divisão entre suas identificações com os objetos primários, suas representações e afetos. Assim, as representações de facetas apreciáveis da mãe e seu investimento por amor imperam até ele efetivar o namoro: ser amoroso, ser dedicado e ser dependente. Firmado o namoro, imperam as representações de traços paternos desagradáveis e seu investimento por ódio: ser agressivo, ser arrogante e ser dominador. Visam evitar seu sofrimento ao amá-la, mas são contrárias ao seu desejo mais essencial: ser amado e ser autêntico. Objetos de sustentação onipotente do paciente, sua namorada e a cocaína facultar-lhe-iam ser completo, ser perfeito e ser todo-poderoso.

Objetos valorizados por se oporem à lei, seus ‘irmãos’, também, comportam parcelas de seu desejo – dada sua contra-identificação com seu pai. Ser fraterno, ser leal, ser confiável e ser defensor do irmão – até a morte – exemplificam essas parcelas. Objetos persecutórios, seus rivais ativam representações derivadas de sua identificação com o pai: ser agressivo, ser forte, ser superior e ser macho. Por um lado, elas se misturam a se sentir-se vivo nas fronteiras confusionais de sentir-se morto. Por outro, opõem-se a ser delicado, ser sensível, ser fraco e ser gay (Almeida, 2016). .

Nessa primeira etapa de sua análise, dois arranjos patológicos de seu desejo – investidos de ódio – são deduzidos das crises, que suscitaram seu desejo de se matar. O primeiro arranjo tem como eixo seu pai que favorecia: ser odiável, ser agressivo, ser forte, ser superior, ser macho e ser vivo – nas bordas autodestrutivas de ser morto. Seus objetos valorizados/irmãos e os persecutórios/rivais associam-se a essas ideias.

O segundo arranjo centra-se na namorada e reúne: idolatrá-la sem existir como sujeito, ser dependente, ser rejeitado, ser odiável e ser morto. Desdobra-se nas porções idealizada e persecutória de seu desejo, projetadas nela: ser perfeita, ser absoluta, ser idolatrada, ser cobiçada, ser passível de perda, ser fonte de vida e de morte. As representações ligadas à cocaína nutrem-se desse manancial de ideias e afetos. Um arranjo saudável ligado à figura materna contém ideias coerentes com seu desejo: ser amoroso, ser delicado, ser sensível. Porém, esse arranjo era inconsciente e negado.

Esses dois arranjos patológicos evidenciam a confusão entre o sujeito, seus objetos de afeto e o tratamento econômico dado a eles. Do ponto de vista econômico, seus objetos recebem diferentes cargas de afeto. O sobreinvestimento de ódio no objeto primário/pai gera a desvalorização de seu eu. As representações de autodesvalorização são atribuídas a si – ser rejeitado, ser odiável, ser feio – e suas representações idealizadas-persecutórias são projetadas no objeto secundário/namorada – ser perfeita, ser idolatrada, ser cobiçada. O sobre-investimento de amor nela o defenderia de seu ódio a si e ao objeto primário. Porém, ao fazê-lo, ele se destitui das representações de seu valor. A seguir, o fracasso dessa idealização evidencia o lado persecutório de seu desejo, favorece sua depressão e sua busca de suporte nos demais objetos secundários. Em síntese, ele descentrava seu desejo para o outro. Esses processos multifacetados ilustram o ódio investido em parcelas de seu desejo.

Nesse primeiro período de sua análise, as modalidades fictícias de seu desejo foram forjadas contra a figura paterna. Sua identidade estereotipada e estigmatizada incluía: tatuagens-imagens agressivas e a insígnia fictícia de bad boy marcadas pela visibilidade, a pretensa completude fornecida pela namorada/droga, sua fusão à irmandade transgressora da lei, as gírias como comunicação própria a esse grupo, o uso imperativo da força muscular em lutas violentas e as letras agressivo-suicidas dos grupos de rock idolatrados por ele. Contudo, ele sentia ser falso junto à namorada e ser desprezível, ao usar drogas. Ademais, seu desejo se confundia com o de sua mãe e de sua namorada, bem como se opunha ao de seu pai/autoridades, de forma violenta. Nesse ponto, Bauman (2005) denuncia que a identidade não é definitiva, tampouco sólida no atual mundo líquido. A exposição da pessoa às várias comunidades leva à flutuação de sua identidade. Conquanto se ressinta dessas identidades estereotipadas e estigmatizadas, não consegue abandoná-las.

No paciente prevaleciam valores, ideais e afetos-simulacros do desejo: ódio, arrogância, rudeza, força bruta, afronta e domínio. Quanto a isso, Baudrillard (1991) afirma que a identidade se desfaz, face ao poder das imagens no pós-modernismo. Quando a verdade é substituída pelo simulacro, perde-se o sentido das coisas. Dada a indistinção entre mundo real e simulação-imagem, sobra um sujeito descentrado.

A despeito da ressonância traumática dos objetos primários sobre ele, o paciente pode repensar sua agressividade, da qual sentia ora orgulho, ora medo (Almeida, 2016).

Na segunda fase da análise, arranjos transitórios, intermediários e mais elaborados de seu desejo adquirem maior força em relação aos patológicos. Portanto, seus núcleos traumáticos e temas traumáticos de seu desejo continuam a ser trabalhados. Desse modo, novas representações de si junto ao outro – no mundo das relações –aparecem em seu sistema das representações.

No tema do seu valor, ser homem, ser autônomo, ser autossustentado e ter valor são representações substitutivas para ser macho, ser inferior e ter horror a ser desvalorizado e ser inferiorizado. Deseja ser respeitado e não ser temido. No tema lei e amor, vivencia o desejo de ser justo, ser bom, ser protetor, mas preparado para a traição. Em meio a isso, ele deixa de ser transgressor e de ser extremista.

No tema vínculo homem-mulher, ser sufocado, ser vigiado dão lugar a ser livre, ser quem ele é, ser traidor com mulher errada, ser fiel e ser sentimental com mulher legal. Ter sucesso como homem é amar-se e ter uma mulher que lhe permita ser quem ele é. Todavia, restam representações de seu trauma: amar, ser traído, sofrer, odiar, submeter-se ao outro. Seu trauma ainda se revela em: amar-ser fraco e odiar-ser forte. No tema vínculo pai-filha associam-se: ser amoroso, ser protetor, ser feliz, ser dedicado, ser ambicioso, ser empreendedor, ser bem sucedido.

O tema realização de projeto de vida inclui: ser vivo, ser determinado, ser dinâmico, ser feliz, ser inteligente, ser empreendedor, ter visão global dos empreendimentos. Ser vivo suplanta a antiga mistura confusional: ser vivo para ser morto. Ter visão global supera ser completo por meio da droga e da namorada. Com isso, elabora seu desejo por drogas e por autodestruição. Sua excitação ao ser empreendedor resgata ser alucinado com a droga. Assim, ele integra amor próprio, prazer saudável e projeto construtivo de vida. Realizá-lo, supera o antigo valor do corpo e antigas frustrações: ser feio, ser baixo e morrer de ciúmes do ‘corpão’ da namorada.

O tema profissão-competência-dinheiro envolve a hierarquia superior-inferior e seu desafio aos homens mais velhos, que o desvalorizam: ser superior, ser inferior, ser de nada, saber mais, saber menos, ser desafiador, ser empreendedor, ser bem-sucedido. Tal tema inclui, ainda, as profissionais do sexo feminino: ser bem-sucedida, ser competente, ser honesta e, inversamente, ser falida, ser incompetente, ser desonesta.

Nessa segunda etapa, uma tatuagem-imagem delicada demarca novo arranjo de seu desejo. As fissuras em suas defesas se aprofundam e ele se diferencia de seus objetos. Ser a si mesmo prevalece sobre sua aparência e a verdade de seu desejo supera a ilusão de (a)parecer para o outro. Surgem valores e afetos de seu desejo genuíno: amor, bondade, justiça e proteção dos mais frágeis. Revê ser transgressor, ser extremista, ser traidor, ser infeliz, ser desconfiado. Assim, amar e ser amado se desligam do sofrimento e se ligam ao prazer. Ser bem-sucedido desliga-se da equação dinheiro indigno- mulher perversa- sexo sacana e vincula-se a dinheiro digno- mulher legal- sexo legal. Ser amoroso junto à sua filha – para se amar − supera ser o filho odiável do pai odiado. Contrapõem-se às ideias traumático-preconceituosas paradoxais: desprezar as mulheres, mas depender desesperadamente de uma mulher, bem como a mulher marcar bobeira com o homem, mas marcá-lo afetivamente.

Na mudança de seus arranjos, a analista utilizou certas brechas em seu desejo. Ser macho, ser vencedor e ser agressivo com o outro se ligavam a sua atração pelas lutas orientais. Portanto, elas deram lugar a sua ruptura, tendo em vista a ideia oriental de que ‘só é vencedor quem vence a si mesmo’. Ao se defender contra a integração entre amor próprio e prazer saudável, ele critica a fala da analista: ‘isso não tem nexo’. Então, sem nexo e ser alucinado foram confrontados a ele ser alucinado no uso da cocaína. Ademais, a fala da analista ‘quando você põe o valor da altura lá em cima, você se derruba’ mistura a dimensão real e a simbólica de altura. Ao promoverem insights em sua escala de valores, essas intervenções romperam a primazia da aparência sobre a essência de seu desejo. De modo geral, serviram como trigger points para sua mudança psíquica (Almeida, 2009).

Além disso, a cada sessão, representações dos arranjos patológicos eram confrontadas por novas representações de seu desejo. Ao longo das sessões, as representações coerentes com seu desejo foram investidas de amor. Quanto à análise, Herrmann (2001) aborda a mudança das modalidades factícias e inautênticas de identidade para suas modalidades autênticas e Pacheco (1988) aponta as micro-experiências de identidades parciais ou de reconhecimento próprio.

Do ponto de vista neurofisiológico, a integração entre suas estruturas cerebrais fora alterada pelas drogas. Reorganizando-as, os remédios psiquiátricos restabeleceriam as conexões entre o córtex pré-frontal e o sistema límbico. Sua impulsividade e agressividade seriam conectadas ao seu julgamento e decisão: processos racionais (Atkinson, 2012). Em tese, a reorganização de seu cérebro favoreceria elaborar seus conflitos quanto a seu desejo. Destarte, a complementaridade entre recursos da psicanálise e da psiquiatria poderiam atenuar sua destrutividade. Contudo, dada sua recusa a continuar o tratamento psiquiátrico, sua mudança psíquica parece ter residido na mudança dos arranjos de seu desejo.

Considerações Finais

Durante o percurso analítico, a relação do paciente com seu desejo é desvelada. No início, ele tende a projetar suas melhores possibilidades – como sujeito – no objeto idealizado/namorada. Todavia, ao fazê-lo, ele mantém a interdição ao exercício de seu desejo, no mundo. Essa proibição encontra-se cunhada no discurso parental, que limita o desejo do filho. Tal crivo patológico perpetua o conflito entre a atualização e a proibição de seu desejo, sendo que a segunda prevalece sobre a primeira. Desse modo, a falência de seus pais na satisfação de seu desejo é repassada para o filho.

Nessa transmissão, certo estado psíquico recorrente no paciente – depressão, ódio, medo, arrogância – tem parentesco com aquele típico de seus pais. Dada sua identificação com esse estado mental, ele o repete nos arranjos patológicos do desejo. Sua força destrutiva adquire grande magnitude no sistema, por não se comunicar com seu potencial. Engolfado por tais conflitos transgeracionais, não reconhece suas capacidades, funde-se às imagens distorcidas de seu desejo e se reduz aos simulacros de seu desejo verdadeiro. A modalidade fictícia do desejo – dada a contra-identificação com o objeto primário – leva-o a se indiferenciar dos objetos secundários. A tentativa de integrar seu eu falha – sem o concurso da discriminação crítica da consciência.

Com a análise, os temas traumáticos e os arranjos patológicos do desejo do paciente foram trabalhados. No que diz respeito a isso, o choque interpretativo que incide sobre esses arranjos rompe sua fixação mental. O turnover de seus arranjos se deve às rupturas de sentido, em que a analista utiliza as brechas em seu ideário, o confronto entre representações opostas, a aproximação entre simbólico e real e o uso de paradoxos interpretativos. Dialoga-se com as representações do objeto idealizado e persecutório, percorrendo os arranjos intermediários e transitórios. Em experimentando novos arranjos provisórios de seu desejo, passa das ideias contrárias à realização desse desejo para as harmônicas com ele.

Desse modo, muda a tonalidade afetiva de amor e ódio absolutos para as matizes do amor e do ódio. Não integrado, o ódio tem como efeito negativo a ruptura dos vínculos. Outras sequelas são: anestesia emocional, insensibilidade aos aspectos bons da experiência, confusão mental, descrença nos vínculos, tédio, desprazer, desejo de morte. Melhor trabalhado, surge o aspecto positivo do ódio: romper os vínculos ruins. Em fusão com o amor e subordinado a ele, pode favorecer o vigor do desejo. O movimento prospectivo do desejo − visando sua satisfação no mundo − facilita a ruptura dos arranjos patológicos. Seu movimento regressivo − oposto a sua realização − deve-se ao ódio fixado em representações dos arranjos patológicos.

Para elaborar os simulacros de seu desejo, a interpretação deve dissolver a fixação de ódio nas representações. Redistribuindo os investimentos de amor e ódio, desinveste as representações contrárias ao seu desejo e investe de amor as congruentes com ele. E, mais, demanda trabalhar a divisão entre amor e ódio a si e aos objetos, prazer e sofrimento, poder construtivo e poder destrutivo. Ao diferenciar aspectos próprios e objetais de seu desejo, pode integrar amor e ódio a si e ao outro, prazer saudável e projeto construtivo de vida. Suas potencialidades, agora atualizadas, permitem lhe satisfazer seu desejo no mundo, restabelecendo seu fluxo para a ação, com prazer e em contato com a realidade. Com a análise, os arranjos patológicos deram acesso aos arranjos solidários ao desejo mais genuíno e essencial do paciente.

Em meio aos conceitos centrais em psicanálise, as hipóteses de trabalho sobre o desejo, seus arranjos e as falhas representativas do sistema representacional podem contribuir para a teoria psicanalítica da representação e do desejo, suprindo brechas nesses aspectos de seu conhecimento. Enfim, delineiam-se sua pertinência e sua adequação ao campo de problemas e às lacunas do conhecimento psicanalíticos.

Referências

Almeida, M.E.S. (2008). A força do legado transgeracional na família. Psicologia:Teoria e Prática, 10 (2), 12-23.

Almeida, M.E.S. (2016). Constituição especular do desejo e sua atualização no adulto. Gerais Revista Interinstitucional de Psicologia, 9 (1).

Atkinson, R. (2012). Introdução à psicologia de Hilgard. Porto Alegre: Artmed.

Baudrillard, J. (1991). A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70.

Bauman, Z. (2005). Identidade. Rio de Janeiro: J. Zahar.

Freud, S. (2006). Edição Standard brasileira das obras completas de Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Texto original publicado em 1900).

Freud, S. (2006). Totem e Tabu. Edição Standard brasileira das obras completas de Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Texto original publicado em 1913).

Freud, S. (2006). O inconsciente. Edição Standard brasileira das obras completas de Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Texto original publicado em 1915).

Herrmann, F. A. (2001). O método da psicanálise. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Klein, M. (1986). Os progressos da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.

Pacheco, M. A. P. (1988). Identidade no Processo Analítico: Micro-experiências de Identidades Parciais. Revista Brasileira de Psicanálise, 4, 5-19.

Maria Emilia Sousa Almeida
Enviado por Maria Emilia Sousa Almeida em 02/02/2021
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